Em 17 de Abril de 1905, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos anunciou aquela que é consensualmente identificada como uma das mais emblemáticas e embaraçosas decisões da sua história ― Lochner v. New York. No caso Lochner, o Tribunal julgou inconstitucional a imposição legal de um máximo de 60 horas semanais de trabalho nas padarias do Estado de Nova Iorque. A maioria dos juízes entendeu que a norma limitava a liberdade de empregadores e trabalhadores fixarem livremente o horário no contrato de trabalho ― o que era um facto ― e que tal liberdade constituía um direito fundamental consagrado na cláusula de due process of law, uma fórmula extraordinariamente vaga e abstracta acolhida na Décima Quarta Emenda à Constituição dos Estados Unidos.

Due process corresponde grosso modo, no direito constitucional norte-americano, ao nosso ― português e europeu ― princípio do Estado de Direito. É um daqueles compromissos constitucionais tão fundamental e imprescindível quanto delicado e complexo, e até perigoso se confiado à guarda de juízes incautos ou incontidos. A maioria na composição do Supremo Tribunal que decidiu Lochner era de inclinação ideológica conservadora, o que no início do séc. XX implicava a desvalorização ou mesmo o desprezo pela “questão social” associada ao desenvolvimento do capitalismo industrial e uma antipatia profunda pelo direito do trabalho, cuja autonomia relativa face ao direito civil, o domínio privilegiado da liberdade contratual, se funda sobretudo na necessidade de correcção da desigualdade de poder entre trabalhador e empregador. O grande herói intelectual do conservadorismo norte-americano de então era Herbert Spencer, um discípulo inglês de Darwin que aplicou a teoria da evolução à sociedade e defendeu no livro Social Statics uma filosofia política baseada no que designou por “lei da liberdade igual”, uma variante superficial e radical dos princípios fundamentais do liberalismo oitocentista.

Oliver Wendell Holmes, por sinal um conservador que partilhava com Spencer a veneração por Darwin, votou vencido em Lochner e explicou as razões da sua divergência na mais célebre declaração de voto na história da justiça constitucional norte-americana. Holmes escreveu que “este caso é decidido com base numa teoria económica que uma parcela alargada deste país não perfilha. Se a questão fosse a de saber se eu subscrevo essa teoria, desejaria estudá-la com mais cuidado antes de o decidir. Mas não é essa a forma como concebo o meu dever, porque acredito que o meu assentimento ou dissentimento não tem nada que ver com o direito da maioria de expressar nas leis a sua opinião. […] A Décima Quarta Emenda não consagra Social Statics do Sr. Herbert Spencer.” Para Holmes, o papel do juiz constitucional encarregue de interpretar princípios tão vagos e abstractos como o due process não é o de se substituir ao legislador que goza de legitimidade democrática e representativa.

Estando em causa questões para as quais o texto constitucional não oferece uma resposta minimamente clara, que sentido é que faz a opinião de uma maioria simples entre uns poucos juízes nomeados prevalecer sobre a opinião de uma maioria entre muitos deputados eleitos pelo povo?

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Certamente que uma constituição democrática não pode ser interpretada como confiando a última palavra nesses assuntos, em que há uma pluralidade de opiniões razoáveis, aos titulares de um poder que não tem legitimidade democrática. O controlo judicial baseado em princípios deve, por essa razão, limitar-se ao mínimo indispensável, nomeadamente a proibição do arbítrio ou do erro manifesto. Um escrutínio mais intenso das opções legislativas apenas se justifica quando estas atingem os interesses de minorias habitualmente excluídas do processo político democrático e vulneráveis a uma degeneração tirânica do governo da maioria.

Na passada sexta-feira, o Tribunal Constitucional “chumbou” três medidas de consolidação orçamental, entre as quais cortes de 2,5% a 12% nos salários dos funcionários públicos, com fundamento nos princípios da igualdade e da proporcionalidade. Em muitas dezenas de páginas de discurso digressivo, redondo, verboso, vago e em muitos pontos falacioso, a maioria dos juízes opinou que as medidas pecavam ora por “excessivas” ora por “irrazoáveis”. Na sua declaração de voto, que conclui com a afirmação de uma divergência “radical” em relação às decisões de inconstitucionalidade, a Conselheira Maria Lúcia Amaral articulou com grande lucidez um argumento semelhante ao aduzido há mais de um século por Holmes. “Não se invalida uma norma editada pelo legislador democraticamente legitimado invocando para tal apenas a violação de um princípio (seja ele o da igualdade ou da proporcionalidade) se se não apresentarem como fundamento para o juízo razões que sustentem a evidência da violação. Quer isto dizer que, nestas situações, o controlo do Tribunal, além de ser um controlo de evidência, deverá ter sempre uma intensidade mínima.” O futuro da justiça constitucional portuguesa depende do destino que a história reservar as estas linhas. É nelas que reside a chave para a deposição pacífica do governo de juízes que se instalou definitivamente no nosso sistema político e para a restauração do direito democrático inalienável da “maioria expressar a sua opinião nas leis”.