O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo conclui que a rejeição do navio Atlântida foi “a certidão de óbito” daqueles estaleiros pois representou mais de 70 milhões de euros de prejuízo.

A proposta de relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito, a que o Observador teve acesso e que é votada esta terça-feira, revela má gestão daquela empresa pelo menos nos últimos sete anos, mas declara como “infundadas” e “claramente despropositadas” as acusações de ilegalidade ou falta de transparência no processo que levou à privatização dos estaleiros. O relatório, elaborado por Ângela Guerra do PSD, aponta, sim, diversas falhas na gestão dos estaleiros desde 2006, tempo do Governo de Sócrates, ano a partir do qual todas as 13 embarcações ali construídas deram prejuízo à empresa.

“Nenhum depoimento” suportou a ideia de “falta de transparência ou ilegalidade”, refere o documento. Havendo maioria para aprovar o documento, falta saber como vota a oposição para perceber se a conclusão é pacífica – o que é improvável. As últimas comissões de inquérito no Parlamento, aliás, acabaram em divisões geométricas entre maioria a oposição. Foi assim no caso das swap e também na comissão das Parcerias Público-Privadas.

Ainda sobre o Atlântida, a proposta de relatório final diz que houve, neste caso, “uma clara intervenção política” e que o acordo arbitral feito pelos ENVC com a Atlânticoline (empresa pública da região dos Açores que encomendou o navio e depois o rejeitou por não cumprir o cadernos de encargos) “só serviu os interesses do Governo Regional dos Açores” e daquela empresa.

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Segundo o relatório, o contrato assinado em 2006 entre a ENVC e a Atlânticoline, para a construção do navio, “não foi levado a reunião do Conselho de Administração, tendo sido assinado apenas por um vogal do Conselho de Administração mandatado para esse efeito”.

Por outro lado, “não ficou, de igual modo, demonstrado das audições, o porquê, da resolução do contrato do segundo navio, Anticiclone, igualmente encomendado pela Atlânticoline”.

O relatório refere “graves deficiências na estrutura comercial e de orçamentação, no controlo financeiro dos projetos e no processo de aquisição de materiais e equipamentos”, bem como um “excesso de mão de obra”, o que levava a uma execução contratual “deficiente”.

O documento foi divulgado esta terça-feira de manhã pela TSF e a oposição já começou a contestar as suas conclusões.

As várias conclusões atribuem todas as culpas à administração dos ENVC. Salientam que todas as construções executadas ao abrigo do programa das contrapartidas deram prejuízo e que sempre houve excesso de mão de obra na empresa. Quanto ao novo plano de restruturação para a viabilização da empresa, feito pelo Governo de José Sócrates em 2010, considera que não era exequível.

Reações divergentes

O Bloco de Esquerda anunciou já a intenção de votar contra o relatório por considerar que este faz “um branqueamento das responsabilidades” do Governo.

“A relatora diz-nos claramente que há responsabilidades dos governos entre 2004 e 2011, e sobre os últimos anos de gestão dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo faz um absoluto branqueamento, o que nos leva a concluir imediatamente que o Bloco de Esquerda irá com certeza votar contra este relatório”, afirmou Mariana Aiveca no Parlamento. “Entendemos que há responsabilidades políticas do Governo enquanto acionista maioritário de uma empresa pública, Estaleiros Navais de Viana do Castelo, e essas responsabilidades não podem ser alijadas e muito menos branqueadas no relatório”, justificou.

Depois de referir que o relatório em causa vai ser discutido em comissão na quinta-feira, ocasião em que poderão ser apresentadas propostas de alteração, e será votado no dia 10, a deputada do BE acrescentou que a intenção de voto do seu partido “está praticamente clarificada”.

“Nós, Bloco de Esquerda, entendemos que este relatório já nos indica aquilo que tem sido o hábito dos últimos relatórios feitos pelos deputados e deputadas da maioria: branqueamento do Governo. É nesse sentido que este relatório vai, e é nesse sentido que naturalmente nós não poderemos concordar com ele, e a nossa intenção de voto está praticamente clarificada, e será o voto contra”, disse.

Também o PCP considera que o projeto de relatório “iliba o atual Governo” e anunciou que vai propor a reafectação da empresa no domínio público.

“O relatório quis aligeirar as responsabilidades do Governo e da atual maioria neste processo. É um relatório que elimina as responsabilidades do governo neste processo de liquidação de um setor que é fundamental que é o setor da construção e reparação naval”, afirmou Carla Cruz.

A deputada comunista considerou que o relatório “chega ao absurdo de apontar o excesso de trabalhadores como uma das causas para este desfecho”, referindo-se à extinção da empresa e subconcessão dos terrenos e infraestruturas.

“O PCP considera que esta foi uma má decisão. O que defendemos é a reversão deste processo. O que a comissão de inquérito demonstrou de facto foi a importância deste setor para a economia nacional, para a economia da região”, afirmou, propondo a “reinstalação dos ENVC na esfera pública”.

A deputada criticou uma das principais conclusões do relatório, que refere que o atual Governo “não teve qualquer alternativa” quanto à forma de lidar com os auxílios estatais à empresa, que classifica como “ilegais”. Para a deputada Carla Cruz, “havia alternativa” e a comissão de inquérito demonstrou que “o Governo não fez tudo” o que podia e que “baixou os braços”.

“O Governo tinha mecanismos. Se avançasse com a construção dos navios de patrulha Oceânica, e com a programação [da construção] militar para justificar ajudas de Estado. O governo optou por não fazer e para encontrar aí o alibi para justificar a ideia inicial, a privatização dos ENVC e a sua liquidação enquanto empresa nacional”, acusou.

Entretanto, o coordenador da União de Sindicatos de Viana do Castelo (USVC) também reagiu, defendendo a necessidade de serem “aprofundadas” as conclusões da comissão de inquérito aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC) no processo do navio Atlântida, admitindo ainda que a USVC “estava à espera destas conclusões, pese embora nunca tivéssemos concordado com essa posição porque entendemos que deveriam ter sido encontradas outras soluções, nomeadamente, uma parceria público-privada”.

“Estas conclusões têm que ser aprofundadas porque está em causa dinheiro do erário público. É preciso que sejam assacadas responsabilidade políticas às administrações e Governos que tiveram intervenção neste contrato”, afirmou Branco Viana.

De acordo com o sindicalista, a solução de uma parceria público-privada “daria garantias de que o futuro da construção naval ficaria assegurado. Face à entrega da empresa pública à iniciativa privada, essa garantia é mais falível”, sustentou o sindicalista. Segundo o coordenador da USVC “a construção e rejeição pelos Açores do Atlântida e do Anticiclone (navio que não passou da fase de blocos) contribui muito para o descalabro das contas da empresa pública”.

Já o PSD, através do deputado Afonso Oliveira, destacou que o relatório da comissão de inquérito aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC) demonstra uma “ausência total de empenhamento” por parte do anterior Governo, do PS, relativamente à empresa.

“Ficou claro que de 2005 a 2011 tiveram um processo de endividamento crescente e exponencial, ficou claro também que as administrações dos Estaleiros foram sucessivamente alteradas, houve uma ausência total de empenhamento da parte do anterior Governo nos Estaleiros”, afirmou.

Afonso Oliveira sublinhou que “resulta da comissão de inquérito” que a ação do atual governo PSD/CDS-PP foi “transparente”, numa alusão à iniciativa da criação da comissão de inquérito, por parte do PCP, com o apoio do PS.

“O PSD e a maioria na altura defenderam que não tinha que haver uma comissão de inquérito. O PCP e o PS resolveram avançar. Ainda bem que existiu, ficou claro que não havia nada a esconder. O PCP tinha conclusões precipitadas”, acusou.

Sobre a atuação do atual governo, Afonso Oliveira defendeu que “tratou do processo de reprivatização e que, não resultando, avançou com um processo de subconcessão” que teve como objetivo “manter os trabalhadores a trabalhar”.

O deputado manifestou abertura por parte da maioria para acolher “sugestões” de alteração ao relatório, que será votado em plenário no próximo dia 10 de julho.