A lei da cópia privada, que foi aprovada pelo Governo e, já em setembro na generalidade na Assembleia – com votos contra do PCP, BE, Verdes e de 11 deputados do PS (os restantes abstiveram-se) -, volta nesta terça-feira ao Parlamento para o debate na especialidade. Ainda há muitas dúvidas em torno da taxa de compensação equitativa e da transposição da diretiva europeia, e por isso o debate começa com uma maratona de audições de várias associações ligadas ao setor, umas contra outras a favor da polémica lei.
O debate na generalidade já tinha sido tenso, com o secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, a ser questionado criticamente pelas várias bancadas, mas a proposta de lei acabou por receber o aval do Parlamento com os votos da maioria PSD/CDS-PP. Na altura, os vários partidos com mais dúvidas – do PS ao CDS – empurraram o assunto para o debate na especialidade, que disseram que tinha de ser profundo e clarificador.
O CDS, que aprovou a proposta de lei na generalidade, sempre foi um dos partidos com mais reticências, nomeadamente sobre como o Governo chegou ao número de 15 milhões de euros como teto máximo para compensar os artistas, que é um dos valores mais elevados da União Europeia, e sobre a fundamentação e justificação das taxas aplicadas, no enquadramento da legislação europeia. Quando o diploma foi negociado no Executivo, houve até um encontro no Ministério da Economia liderado por Pires de Lima, de onde saiu o modelo final da taxa. Suficiente para contentar os centristas? Aparentemente não.
Ao Observador, o deputado centrista Michael Seufert, que apesar de não ter assento na Comissão dos Assuntos Constitucionais, onde vão ter lugar as audições desta terça-feira, vai estar presente nas reuniões, garantiu que as dúvidas do CDS se mantinham. Mas preferiu não se pronunciar antecipadamente sobre o tema, preferindo dar espaço às associações do setor que foram chamadas ao Parlamento para se pronunciarem e darem o seu contributo à discussão.
“O importante é garantir que há de facto uma ligação real entre o que está a ser taxado e a diretiva europeia. Não podemos correr o risco de estar a taxar uma coisa que não vai ao encontro do previsto a nível europeu”, diz o deputado centrista.
Que haverá propostas de alteração na especialidade, é uma certeza. Mas quanto a isso, Michael Seufert não quis avançar pormenores para, inclusivamente, não influenciar o leque de audições que terão lugar amanhã no Parlamento.
Uma longa dúvida
Já na discussão no seio do Governo, a proposta de lei da cópia privada que estabelece uma taxa entre 0,05 cêntimos e 20 euros, a aplicar aos equipamentos e dispositivos digitais como leitores de mp3, pens, telemóveis ou CD, teve de passar quatro vezes pelo Conselho de Ministros antes de ser aprovada em agosto. Pires de Lima foi dos que mais reservas levantaram. Contrariando os cálculos apresentados por Barreto Xavier (do PSD) sobre o impacto que a taxa – que é atualizada e alargada a mais produtos (smartphones, tablets, pen, discos rígidos, cartões de memória) – irá ter, António Pires de Lima dizia que o impacto seria substancialmente maior: falava em 30 milhões, enquanto a Cultura falava em apenas 11. No final, o Governo acabou por concluir que o encaixe com a taxa de compensação equitativa seria de 15 a 20 milhões de euros.
Também o PS, que viabilizou a proposta de lei com a abstenção na generalidade, remeteu todas as alterações para o debate na especialidade. Na altura, a deputada socialista Inês de Medeiros disse ao Observador que a versão da proposta de lei aprovada era “minimalista” e “pouco trabalhada”, afirmando que ainda havia “muito trabalho para fazer na especialidade”. Para os socialistas, que já tinham apresentado em 2011 uma proposta de lei de sentido semelhante, continua a existir a necessidade de atualizar a lei e “entrar em linha com a política europeia” no que diz respeito à compensação dos autores portugueses. Mas persistem “muitas dúvidas sobre como é que se vai fazer a distribuição [dos valores angariados]”, disse Inês de Medeiros.
Ouvir os críticos do setor
As audições na Comissão dos Assuntos Constitucionais vão durar todo o dia de terça-feira, começando logo de manhã com a audição da Associação Portuguesa das Indústrias Gráficas, de Comunicação Visual e Transformadoras de Papel (APIGRAF), depois com a audição da Associação Empresarial dos Sectores Eléctrico, Electrodoméstico, Fotográfico e Electrónico (AGEFE) e ainda antes do almoço com a Associação dos Operadores de Comunicações Eletrónicas (APRITEL). À tarde, os deputados vão ouvir a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), a Associação para a Gestão da Cópia Privada (AGECOP) e a Associação Portuguesa de Imprensa (Visapress).
Nos pareceres enviados à Assembleia da República em julho, a pedido dos deputados, muitas das associações do setor foram bastante críticas da proposta de lei, e serão essas críticas que vão levar amanhã ao Parlamento. Para a APRITEL, por exemplo, não devia ser o Governo ou a Assembleia a legislar sobre esta matéria no sentido de alargar o âmbito de aplicação da taxa, devendo ao invés aumentar-se o “escrutínio” e as auditorias sobre as entidades de gestão coletiva de direitos de autor.
Para aquela associação dos Operadores de Comunicações, o preço original dos dispositivos eletrónicos “já reflete o valor atribuído pelos consumidores para copiar”, pelo que não há substituição entre o conteúdo original e as cópias, não havendo por isso necessidade de taxar duplamente. O caso dos tablets e dos telemóveis, que o Governo quer incluir no leque dos produtos a taxar para compensar a possibilidade de cópia privada, é um dos mais criticados pela associação, que quer vê-los retirados da proposta. E explica porquê:
“As memórias e discos integrados nestes dispositivos são ocupadas maioritariamente pelo próprio software de funcionamento do equipamento e pelas aplicações (apps) pré-instaladas de fábrica e que não são suscetíveis de desinstalação. Ou seja, a taxa, tal como prevista neste diploma, incide sobre parte da capacidade do equipamento, que nem sequer está disponível e pode ser usada pelo utilizador”. Do que sobra, destina-se maioritariamente para uso pessoal do utilizador, e não para copiar ficheiros abrigados pelo direito de autor.
Também a Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED) é bastante crítica da proposta de lei. No parecer enviado à AR em julho, a associação criticou mesmo o princípio inerente à criação da taxa. A APED classifica a proposta de lei de “anacrónica”, na medida em que “ignora que, na era digital em que vivemos, um número cada vez mais significativo das gravações e cópias efetuadas pelos cidadãos são «obras» da sua própria autoria e que em pouco ou nada estarão relacionadas com a cópia privada”.
Para a APED, assumir que a compra de um cartão de memória de uma máquina fotográfica e a gravação das fotos em DVD irá traduzir-se em prejuízo para os autores, e a ideia de taxar todos os dispositivos (cartões de memória, gravadores de DVD, pens, etc.) para compensar essa possibilidade, é uma “distorção da realidade” e faz com que a lei trate todos os consumidores como potenciais piratas. O que não é justo, nem ético, diz.
De resto, a ideia de que a taxa de compensação equitativa resulta num prejuízo para a competitividade da economia e que há falta de transparência e de proporcionalidade na cobrança destas taxas é comum à posição manifestada pelas várias associações. Mas do lado da Sociedade Portuguesa de Autores e da Associação para a Gestão da Cópia Privada, a força é em sentido contrário, lembrando que a atualização da proposta de lei sobre esta matéria já foi prometida “há muito tempo” aos autores e, sendo um compromisso do atual governo PSD/CDS-PP, tem de seguir em frente.
Também a Ansol – Associação Nacional para o Software Livre -, que também será ouvida pelos deputados, lançou em setembro uma petição contra a proposta de lei, que em apenas três dias reuniu cerca de sete mil subscritores, muito mais do que os quatro mil necessários para o conteúdo da petição ser obrigatoriamente discutido em plenário no Parlamento.
A polémica proposta de lei da cópia privada, que marcou o final da sessão legislativa anterior, volta assim ao Parlamento para ser discutida aprofundadamente, numa altura em que a agenda parlamentar se centra à volta do Orçamento do Estado para 2015. A ideia do Executivo é ver a proposta de lei pronta para votação final até ao final do ano, ou seja, daqui a dois meses.