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Guerra, memória e fotografia

Este artigo tem mais de 5 anos

Conflict – Time – Photography é uma exposição que cobre lugares de conflito nos últimos 160 anos através do trabalho de mais de 50 fotógrafos. Esteve em Londres, e estará agora em Essen e em Dresden.

Cartaz da exposição. Veja a fotogaleria com algumas das mais marcantes imagens expostas.
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Cartaz da exposição. Veja a fotogaleria com algumas das mais marcantes imagens expostas.

Cartaz da exposição. Veja a fotogaleria com algumas das mais marcantes imagens expostas.

Comissariada por Simon Baker, Shoair Mavlian e David Mellor, Conflict – Time – Photography é uma exposição que surpreende pela clareza dos seus propósitos. O título enuncia sem equívocos nem artifícios aquilo que o público pôde ver na Tate Modern em Londres, até este domingo, 15 de Março, e, a partir de agora, na Alemanha: primeiro em Essen, até 5 de Julho; de seguida em Dresden, até 25 de Outubro.

A escolha de Dresden como derradeiro lugar desta mostra não terá sido fruto do acaso. A célebre imagem, captada em 1945 por Richard Peter, da cidade alemã completamente destruída pelo bombardeamento dos Aliados é uma das mais marcantes desta grande exposição, sendo aliás escolhida para servir de capa ao respectivo catálogo. Este, por sua vez, anuncia de forma cristalina que, com a presente exposição, se pretendeu explorar a relação entre a fotografia e o tempo. Assim, apresentam-se lugares onde ocorreram conflitos ao longo do tempo, cobrindo um amplo espectro cronológico (de cerca de 160 anos) e espacial, com imagens vindas dos mais diversos pontos do globo, da autoria de mais de 50 fotógrafos.

Naturalmente, a escolha deste tópico prestar-se-ia a reflexões mais ou menos densas e elaboradas sobre o tempo como matéria-prima da fotografia ou, por outro lado, da fotografia como agente mobilizador da memória, individual e colectiva. De facto, em inúmeras das obras expostas, como as de Don McCullin no Somme (2000), encontramos, sem dúvida, uma intenção deliberada de evidenciar a erosão que o tempo produziu na memória dos grandes conflitos – e até dos locais que lhes serviram de palco. Noutras vezes, pelo contrário, é patente o propósito de sublinhar a persistência dos dramas e das cicatrizes da guerra, de todas as guerras.

A exautoração da guerra – e até, mas explicitamente, a adesão ao pacifismo – pressente-se logo na abertura da mostra, que toma como ponto de partida a experiência pessoal de Kurt Vonnegut Jr. Encontrando-se aprisionado num matadouro alemão, Vonnegut saiu do cativeiro e viu a luz do dia na manhã seguinte ao bombardeamento de Dresden pelos Aliados. Dresden, sublinhe-se, não possuía instalações militares nem continha uma ameaça que justificasse aquela destruição apocalíptica. Tendo contemplado «a cidade mais bela do mundo» arrasada por bombas de fósforo, só 24 anos depois, no famoso livro Slaughterhouse Five (disponível em português com o título de Matadouro Cinco, numa edição da Livraria Bertrand, de 2013), prestaria testemunho do que vira em seu redor. E, desde então, passou a concluir todos os seus textos com a palavra «Paz». Vonnegut escreveu nesse livro que «as pessoas não devem olhar para trás. Não voltarei a fazê-lo».

Num certo sentido, esta exposição desobedece à promessa do autor das palavras que toma como ponto de partida. Toda ela, na verdade, é concebida como um olhar retrospectivo, pecaminosamente dirigido para uma realidade pretérita de carnificina e dor. Compreende-se, em todo o caso, o alcance da evocação de Vonnegut. Este não só surge associado à imagem icónica de Dresden em escombros como foi, ele próprio, confrontado com a acção do tempo na sua escrita. Testemunha directa da devastação logo após esta ter ocorrido, escreverá sobre essa experiência só depois de muitos anos volvidos sobre o raid aéreo de 1945. Vonnegut necessitou de tempo, quase três décadas, mas, em simultâneo, mostrou que a passagem do tempo não conseguira apagar o rasto do trauma e as feridas da memória. Mais decisivamente ainda, o autor de Slaughterhouse Five abraçara sem tibiezas a militância da paz, sendo esse o grande leit-motiv desta exposição.

Sintomaticamente, Conflict – Time – Photography, contém, quase no final, um espaço autónomo onde a causa pacifista é assumida em pleno. Actuando como um enxerto nesta mostra, mas em coerência com tudo o que nela se exibe, é reservado um lugar próprio para uma «exposição dentro da exposição»: A Guide For the Protection of the Public in Peace Time, organizada pelo Archive of Modern Conflict, uma entidade criada nos alvores da década de 1990 que possui um acervo de quase 4 milhões de imagens dos grandes conflitos dos séculos XIX e XX.

À excepção deste espaço – e, de certo modo, de uma sala praticamente dedicada em exclusivo aos bombardeamentos atómicos no Japão –, todo o percurso de Conflict – Time – Photography encontra-se organizado por um único critério, o que confere à exposição uma grande acessibilidade de leitura, nem sempre presente nas mostras contemporâneas de fotografia. Daí a sua enorme capacidade de atracção e sugestão do grande público. Para qualquer espectador, o que está em causa é imediatamente perceptível: não se pretendeu, de forma alguma, fazer uma exposição dos grandes conflitos do planeta seguindo a ordenação cronológica do momento em que aqueles ocorreram. Existe, obviamente, uma ordenação cronológica, mas em sincronia com o momento em que foram captadas as imagens desses conflitos, ou dos seus vestígios. A primeira sala é dedicada às fotografias tiradas momentos depois da ocorrência, a segunda às imagens captadas dias, semanas ou alguns meses depois dela. De seguida, as guerras fotografadas de um a dez anos após terem tido lugar; e assim sucessivamente, até chegarmos à última sala, onde encontramos fotografias de confrontos que deflagraram há 85 ou 100 anos atrás. Aí deparamos, por exemplo, com a série de 2013 em que Chloe Dewe Mathews fotografou os lugares onde, na Primeira Guerra, foram fuzilados ao alvorecer os desertores das trincheiras, aqueles que não suportaram mais o pesado fardo do front.

Entre as imagens que se destacam pela sua imediação temporal destaca-se a do marine em choque, de olhar vazio e perdido, captada por Don McCullin em 1968, no Vietname, no decurso da Batalha de Huê, uma das mais sangrentas da Ofensiva do Tet. De todas as imagens expostas, é, porventura, a que melhor corresponde ao fotojornalismo de guerra, à captura de imagens na linha da frente. O efeito que esta e outras imagens tiveram na opinião pública mundial, e sobretudo norte-americana, levou a que, em futuros conflitos, os repórteres passassem a ser alvo de um controlo muito mais apertado, deixando de poder envolver-se nas unidades em combate, perdendo liberdade de movimentos e tendo, por assim dizer, de se sujeitar a um «enquadramento» que os distancia do som e da fúria.

Este ponto, várias vezes assinalado na exposição, implica uma perda do «tempo curto» e da imediação na fotografia da guerra, o que suscita naturalmente debate e controvérsia sobre as formas actuais de cobertura jornalística e de representação visual dos grandes conflitos. Simplesmente, como também estes viram alterado o seu perfil, nem sempre é fácil às autoridades militares exercerem um controlo total do desenrolar dos acontecimentos. Com a guerrilha e os carros-armadilhados, diluíram-se as fronteiras entre amigo e inimigo, entre segurança e perigo, entre militares e civis, entre a frente de combate e a retaguarda de salvaguarda. Por isso, Luc Delahaye pôde fotografar os efeitos de uma emboscada a uma coluna militar americana, em Ramadi, no centro do Iraque, em Julho de 2006. As suas fotografias surpreendem pela suavidade cromática e pelo silêncio que delas irradia, a estranha quietude que imediatamente sucede a um grande desastre. Alguns tentaram rebelar-se contra o controlo das autoridades militares através de expedientes imaginativos, como sucedeu com Adam Broomberg e Oliver Chanarin no Afeganistão, ao acompanharem o exército britânico em 2008. O resultado, contudo, fica algo aquém da generalidade dos trabalhos exibidos nesta extraordinária exposição.

Um outro conjunto de imagens impressiona pela extrema proximidade ao acontecimento. Surgindo logo na abertura da exposição, trata-se da série de fotografias que, vinte minutos após a explosão da bomba em Hiroshima, o então estudante Toshio Fukada, na altura com 17 anos, captou do alto de um edifício. O cogumelo atómico, cuja imagem geralmente conhecemos à distância, aparece aqui terrivelmente próximo de nós, sob a forma de nuvens a preto e branco, subindo aos céus (segundo as testemunhas, essas nuvens adquiriram cores bizarras, entre o rosa e o laranja).

As bombas de Hiroshima e Nagasáqui, talvez devido à perdurabilidade dos seus efeitos no tempo, ocupam um lugar de destaque nesta exposição. Merece realce, evidentemente, o trabalho ímpar de Shomei Tomatsu, a par da colecção de diversos livros produzidos sobre as bombas no Japão, pertencentes à colecção de Martin Parr. Avulta aí, como o mais deslumbrante de todos, O Mapa (1965), de Kikuji Kawada, Nas páginas do Expresso, Jorge Calado qualificou-o, muito justamente, como, porventura, «o mais importante photobook do século XX». Cruzando imagens dos despojos da bomba e, por outro lado, de memoriais feitos em recordação de imberbes kamikazes, o livro de Kawada evoca as grandes feridas que a 2ª Guerra abriu no Japão. Construído como um desdobrável, em que cada imagem ocupa duas páginas, o álbum obriga o leitor a abri-lo e a percorrê-lo de forma pausada, reflectida, transmitindo uma sensação de serenidade elegíaca. Obra de culto, O Mapa foi reeditado, estando à venda na Tate Modern, a um preço nada módico.

O português João Penalva está presente com as solarizações de From the Weeds of Hiroshima (1997), mostrando ervas que nascem nos escombros de uma fábrica destruída no dia da explosão atómica. As solarizações de Penalva evocam o efeito produzido pela bomba nuclear, que, entre outras consequências, produziu um fenómeno singularíssimo: pessoas e objectos ficaram «impressos» nas paredes e nos muros, algo que nos é contado, por exemplo, na biografia do jesuíta Pedro Arrupe escrita por Pedro Miguel Lamet. O padre Arrupe, mais tarde Geral da Companhia, vivia como missionário nos arredores de Hiroshima, sendo dos primeiros a dirigir-se ao local da tragédia, que descreveria como uma «experiência fora da História». De certo modo, as fotografias das nuvens feitas por Toshio Fukada, pela extrema proximidade ao evento, devolvem-lhe a sua historicidade, de que nos apercebemos também ao ver a sombra de um soldado de Nagasáqui projectada na parede do quarte-geral da cidade, uma devastadora fotografia de Matsumoto Eiichi, feita cerca de três semanas depois da explosão da bomba.

Quando olhamos as imagens do Mercado Roque Santeiro, em Luanda, integradas na série Terreno Ocupado (2007), da sul-africana Jo Ractliffe, poderíamos questionar-nos que relação possuem com a guerra; no fundo, que motivo justifica a sua presença nesta exposição. O projecto de Ratcliffe, todavia, mostra claramente em que medida a guerra tem ramificações que se estendem muito para lá do epicentro dos conflitos: o Roque Santeiro e a sua miséria prolongam e são consequência da guerra civil angolana, uma face do conflito tão visível como imagens de mortos ou mutilados. O mesmo sucede com os projectos de uma das mais originais e imaginativas fotógrafas contemporâneas, Taryn Simon, amplamente representada nesta exposição (a Tate Modern, aliás, dedicou-lhe há poucos anos uma grande exibição, A Livng Man Declared Dead and Other Chapters).

Todas as imagens remetem para um mesmo universo – o do «pós-guerras» –, obrigando-nos a meditar sobre o impacto dos crimes e dos massacres ou tão-só das grandes operações militares. A História regista que os exércitos americanos, na primeira guerra do Golfo, expulsaram as tropas iraquianas do Koweit e, tempos depois, abandonaram também o território, ao qual foi devolvida a soberania. As fotografias de Sophie Ristelhueber, da série Fait, de 1992, mostram as sequelas e os despojos da passagem das tropas libertadoras, a incomensurável quantidade de material bélico deixado no terreno, os sulcos dos tanques gravados na areia. Além de mortos e feridos, a guerra produz lixo, toneladas de detritos metálicos abandonados nos lugares de combate. Noutros casos, gera ruínas em monumentos e edifícios históricos. As suas marcas perduram muito depois do desfecho dos combates. Talvez permaneçam para sempre. Pelo menos, duram o tempo suficiente para serem fotografadas – e apresentadas numa exposição notável, que conseguiu trazer-nos uma perspectiva surpreendente e nova sobre aquilo que julgávamos já ter visto centenas de vezes.

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