Título: Em Nome do Povo
Autor: Lara Pawson
Editora: Tinta da China
Páginas: 400
Preço: 24,90€
Em Maio de 1977, um ano e meio depois de ter alcançado a independência sob a égide do MPLA, Angola foi palco de um ajuste de contas sangrento que despertou uma escassa atenção internacional. Com o apoio das mais de 30 mil tropas cubanas estacionadas no país, o Presidente Agostinho Neto neutralizou o que parecia ter sido uma tentativa de golpe de Estado encabeçada pelo seu antigo ministro da Administração Interna, Nito Alves, logo seguida de uma vaga de prisões e execuções sumárias em vários pontos do país. Alves e os militantes e quadros do MPLA que lhe estavam mais próximos, como Jacob João Caetano (“Monstro Imortal”), José Van Dúnem e Sita Valles, seriam torturados e mortos, em circunstâncias nunca inteiramente esclarecidas. A “crise nitista” dividiu o partido, amigos e famílias, deixando sequelas praticamente até aos dias de hoje.
Na ausência de qualquer inquérito independente, as estimativas disponíveis oscilam entre os 2 mil e os 80 mil mortos. Qualquer que seja o balanço mais fiável, são números que dão que pensar, se atentarmos no tamanho da população de Angola na altura (cerca de 6,5 milhões de habitantes), ou nas baixas que resultaram de acções repressivas levadas a cabo por regimes ditatoriais que, sensivelmente na mesma época, causaram consternação entre as correntes de opinião mais à esquerda.
Os antecedentes da crise e a sequência dos acontecimentos continuam, também eles, rodeados de incerteza e controvérsia. Quem deu o primeiro passo para a espiral de violência? O que pretendiam ao certo os elementos do MPLA que a entourage fiel a Neto estigmatizara como “fraccionistas”? O afastamento de figuras, como Lúcio Lara e Iko Carreira, que exerciam um ascendente tido por nefasto sobre o Presidente? Ou uma mudança de rumo mais radical, susceptível de operar o corte com as hierarquias e privilégios do passado colonial que, segundo os sectores mais militantes do MPLA, ameaçavam reproduzir-se através da influência de uma elite de mestiços e antigos “assimilados” (Alves, um ex-guerrilheiro nascido nos Dembos que se convertera no ídolo dos musseques de Luanda após 1974, afirmara a certa altura que o país “só seria verdadeiramente independente quando brancos, mestiços e negros passassem a varrer as ruas juntos”)? Fosse como fosse, nada indica que uma Angola liderada pelo challenger de Neto se viesse a tornar num local mais auspicioso para as liberdades democráticas.
Lara Pawson, uma antiga correspondente da BBC em Angola entre 1998 e 2000, publicou recentemente uma obra que procura lançar mais alguma luz sobre este episódio ainda tão opaco. Aquilo que prendeu a sua atenção em relação aos acontecimentos de 1977 foi o extremo nervosismo com que o governo do MPLA reagia a qualquer manifestação pública de dissidência, por mais insignificante ou simbólica que esta pudesse ser (situação que não se alterou desde então).
Invariavelmente, as explicações que as suas fontes lhe forneciam aludiam à repressão que se abatera sobre os apoiantes de Nito Alves, ou todos quantos fossem suspeitos de simpatizar com as suas posições. A memória reprimida do 27 de Maio permanece, pois, como um dos trunfos que o regime angolano tem à sua disposição para intimidar potenciais críticos e opositores, tão brutal foi a retaliação exercida no âmbito da crise. Por outro lado, muitas das violações dos direitos humanos então cometidas implicam directamente figuras prestigiadas da cultura angolana – como os escritores Pepetela e Manuel Rui – que aceitaram integrar a chamada “comissão das lágrimas”, um comité que fazia a triagem dos depoimentos dos elementos dos sectores intelectuais do MPLA para depois decidir quem deveria ser sujeito a novos interrogatórios por militares ou agentes da segurança do Estado.
Com simpatias próximas da esquerda radical, Pawson confessa que, ao partir para Angola, ainda alimentava uma série de ilusões românticas acerca do papel desempenhado pelo MPLA, primeiro na luta de libertação da antiga colónia portuguesa, e depois na resistência à desestabilização promovida por potências “imperialistas” (EUA) e racistas (África do Sul) nas décadas subsequentes, através de movimentos rivais como a FNLA e UNITA. Em boa medida, parte dessas ilusões haviam sido bebidas nos artigos e livros produzidos por toda uma geração de “companheiros de estrada” do MPLA, de onde se destacavam nomes como o de Basil Davidson, pioneiro dos estudos africanos no Reino Unido, ou os jornalistas Michael Wolfers, Jane Bergerol e Victoria Brittain.
Durante anos, essas figuras foram responsáveis por muita da cobertura que vários jornais de referência britânicos dedicaram aos conflitos da África Austral e ao de Angola em particular. Alinhados com a liderança de Agostinho Neto, foram eles que ajudaram a filtrar muita da informação que saiu de Angola relativa aos acontecimentos de 1977, evitando que a verdadeira escala das retaliações alguma vez viesse a ser conhecida (a própria Amnistia Internacional, que em 1961 adoptara Neto como um dos seus primeiros “prisioneiros de consciência”, guardou na altura um silêncio comprometedor sobre o assunto). Várias passagens de Em Nome do Povo funcionam assim como um libelo movido pela autora contra esses seus compatriotas, num registo próximo das diatribes que George Orwell dirigiu aos esquerdistas britânicos empenhados em desculpar, ou negar, os crimes do estalinismo.
Parte investigação jornalística, parte livro de viagens, Em Nome do Povo assenta fundamentalmente num conjunto de entrevistas realizadas não apenas a testemunhas, sobreviventes e familiares das vítimas do 27 de Maio, mas também a indivíduos que estiveram envolvidos na criação de uma atmosfera de terror contra os alegados “fraccionistas”, como o antigo director do Jornal de Angola, cujos editoriais (“Bater no Ferro Quente”) a autora afirma serem comparáveis às emissões radiofónicas que no Ruanda de 1993-94 faziam o apelo ao genocídio da minoria tutsi pela população hútu.
A mistura de um registo autobiográfico, semi-confessional, com observações idiossincráticas acerca da presente situação política e social em Angola, faz deste livro uma obra difícil de classificar. Não é exactamente uma história oral do 27 de Maio, mas a autora não é indiferente às preocupações que acompanham os praticantes do métier (como arbitrar versões contraditórias; como aferir a fiabilidade dos depoimentos e controlar processos de reconstrução/manipulação da memória). Tendo prescindido de uma pesquisa arquivística, houve porém o cuidado de usar a literatura académica e memorialística na reconstituição do contexto histórico, tanto no plano internacional como no angolano (aqui, porém, com uma falha importante: a biografia de Sita Valles, da jornalista Leonor Figueiredo, editada em 2010).
Inevitavelmente, este é um livro que precisa de ser situado em relação a alguns contributos. Para a compreensão dos meandros das querelas políticas, ideológicas e pessoais no interior do MPLA que estão por detrás da confrontação de 1977, a obra de Jean-Michel Mabeko Tali (Dissidências e Poder de Estado. O MPLA perante si próprio. 1962-1977, 2 volumes, 2001) permanece como o trabalho mais exaustivo que se escreveu sobre o assunto. Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, por seu turno, apoiados em fontes inéditas (orais e escritas), colocaram em evidência os aspectos mais brutais da engrenagem repressiva desencadeada por Neto, numa obra (Purga em Angola, 2007) que até à data somou já nove edições.
Sob um ponto de vista mais “positivista”, digamos assim, Em Nome do Povo não acrescentará muito ao quadro traçado por estes últimos autores. Na realidade, continuamos sem uma estimativa fiável do número de vítimas da repressão governamental, a conduta de alguns actores internacionais (sobretudo os soviéticos) permanece envolta em ambiguidade, e acerca das reais intenções dos golpistas sobram ainda mais dúvidas do que certezas.
Mas será que esses aspectos poderiam ser esclarecidos com o tipo de abordagem escolhido pela autora? É duvidoso. Como ela própria reconhece, apenas uma equipa de investigação multidisciplinar (com a participação de peritos forenses), dotada de recursos consideráveis e com acesso a alguns arquivos ainda fechados, poderia talvez fornecer esse tipo de respostas. Na verdade, os seus principais méritos são de uma outra ordem. Eles residem na capacidade de Pawson para trazer ao debate temas que desde sempre provocaram desconforto nas fileiras do MPLA (como as questões raciais e dos privilégios de classe); na sua discussão de algumas asserções dadas como seguras (a alegada preferência dos soviéticos por Nito Alves); e no questionamento da obsessão com a contabilidade dos mortos enquanto argumento susceptível de comprometer as autoridades angolanas na realização de um inquérito sem tabus a este episódio. Livros como este são importantes para que um dia isso possa vir a acontecer.