Tunísia, França e Kuwait. Três países atacados esta manhã. Todos os ataques foram, aparentemente, levados a cabo por jihadistas do autoproclamado Estado Islâmico (EI). A dias do primeiro aniversário do também autoproclamado Califado (na próxima segunda-feira, dia 29 de junho), a Europa teme que possam vir aí mais atentados. Só esta sexta-feira, morreram pelo menos 63 pessoas e há centenas de feridos. Fomos tentar perceber o que motivou a escolha destes locais e fazer a pergunta que se impõe: os ataques foram ou não concertados?
O professor universitário José Manuel Anes, que foi fundador e presidente, em 2011, do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo acredita que os três atentados, sejam ou não reivindicados pelo Estado Islâmico, são concertados. E explica: “Só o do Kuwait foi reivindicado pelo Estado Islâmico, por agora. Também podia ter sido a Al Qaeda, mas o Estado Islâmico, de facto, tem os xiitas por infiéis mais do que qualquer outro grupo jihadista. Creio que o da Tunísia, mais hora menos hora, também será reivendicado. Só o de Lyon é que terá sido perpetrado por um chamado ‘lobo solitário’ — naturalmente, também ele, com ligações ou influenciado pelo Estado Islâmico”.
Mas a distância geográfica, apesar de tudo, não pode ter feito destes três ataques uma infeliz coincidência? “Não acredito. O Estado Islâmico fez somente três ataques, separados no globo, mas podia ter feito outros tantos; podia tê-los feito nas Filipinas ou na Nigéria. Os tentáculos do Estado Islâmico estão em todo o lado”, explica José Manuel Anes.
Quebrar a economia tunisina pelo terror
O movimento social da Primavera Árabe teve início, precisamente, na Tunísia, e com ele, em janeiro de 2011, o Presidente Ben Ali, no poder desde 1987, deixaria o país e a presidência. A transição para um regime democrático, com um Presidente democraticamente eleito, foi demorado. Houve dois Presidentes a prazo, Fouad Mebazaâ e Mencef Marzouki, vários nomes presidenciáveis, mas só em dezembro de 2014, Beji Caid Essebsi, de 88 anos, foi eleito nas primeiras eleições presidenciais livres da Tunísia desde a queda de Ben Ali.
Esta sexta-feira, dois resorts turísticos da cidade de Sousse, os resorts El Mouradi Palm Marina e Riu Imperial Marhaba, foram alvo de um atentado que fez pelo menos 37 mortos e 36 feridos. Mas não é de hoje que a Tunísia está em estado de alerta máximo. Está-o desde março, quando os militantes do EI mataram 22 pessoas no museu Bardo, na capital Tunes.
A intenção dos terroristas, hoje como em Tunes, crê Miguel Monjardino, professor no Instituto de Estudos Políticos e de Geopolítica e Geoestratégia da Universidade Católica, comentador de política internacional e especialista em Relações Internacionais, é de fácil compreensão e tem um objetivo meramente político. “Nós, por hábito, olhamos para o terrorismo como sendo irracional, como sendo emocional. Não é. O terrorismo que é levado a cabo por estes grupos sunitas tende a ter, sempre ou quase sempre, uma motivação estratégica muito forte. Na Tunísia, a transição política, o sucesso da transição política, depende da evolução económica do país. Quando se ataca um complexo turístico, um ataque que atinge maioritariamente turistas estrangeiros, o que se está a fazer é minar a economia da Tunísia num período que é crucial.”
O que está a acontecer é uma estratégia adotada pelo jihadismo, pelo líder do EI, no sentido de nos aterrorizar: é uma tática de terror”, defende Loureiro dos Santos.
Um outro especialista em assuntos militares, o general Loureiro dos Santos, considera que, apesar de tudo, a transição para a democracia não foi total. E a culpa é de um efeito de contágio. “O que está a acontecer é uma estratégia adotada pelo jihadismo, pelo líder do Estado Islâmico, no sentido de nos aterrorizar: é uma tática de terror. A Tunísia era, digamos assim, um exemplo, único, onde a Primavera Árabe conduziu a uma democracia. Todos os outros países em volta falharam. Mas, pelos vistos, essa mesma democracia está frágil, até por estar muito próxima dos países que falharam. O jihadismo está no seu interior. Há bem pouco tempo foram feitas rusgas a suspeitos de jihadismo, e foram presos uma série deles. Isto não é uma novidade. Os líderes tunisinos têm perfeita consciência disso, e vão reforçar as suas defesas.”
José Manuel Anes acredita que, apesar de tudo, na Tunísia, o poder não cairá nas ruas, ou, pior, nas mãos do jihadistas. “A Tunísia está mais estável do que a Líbia, por exemplo, que tem três governos e ninguém sabe quem é quem manda em quem. Na Tunísia houve uma eleição, um exercício livre, de democracia, e as pessoas têm participado no sentido de estabilizar um governo com influência francesa e próximo dos valores ocidentais.”, relembra.
O objetivo de um ataque destes, num país como a Tunísia, que está mais próximo dos valores ocidentais do que os outros países vizinhos, um país onde as mulheres têm uma participação ativa na sociedade, por exemplo, é claramente o de minar a economia do país”, reforça José Manuel Anes.
“O objetivo de um ataque destes, num país como a Tunísia, que está mais próximo dos valores ocidentais do que os outros países vizinhos, um país onde as mulheres têm uma participação ativa na sociedade, por exemplo, é claramente o de minar a economia do país. O Estado Islâmico exaspera com isto, com estes regimes democráticos, que funcionam ou tentam funcionar, e, para eles, há que dar cabo de tudo. Mas a Tunísia vai continuar a ser uma democracia”, reforça José Manuel Anes.
Ana Santos Pinto também é professora, na Universidade Nova de Lisboa, e investiga a Geopolítica do Médio Oriente e a Defesa e Segurança Internacional. “A situação na Tunísia, comparativamente com a do Egito ou da Líbia, tem uma maior estabilidade e regularidade nos processos democráticos. É o caso, de entre os três, que tem maior potencial de desenvolvimento político. Mas é uma zona geográfica e geopolítica instável. E a Tunísia é permeável aos seus vizinhos. Desde logo, é permeável à Líbia, que tem um caso de vazio de poder e controlo do Estado há muito tempo.”
O ataque não é por isso, para Ana Santos Pinto, uma surpresa, e não o é por dois motivos: “Primeiro, o turismo é um pilar fundamental da economia tunisina. E o turismo teve uma queda muito acentuada logo a seguir à Primavera Árabe. Mas os turistas foram regressando, a economia melhorando, e há que fazê-la quebrar — e quebrar com isso a democracia. Segundo, os ataques têm como alvo cidadãos ocidentais. O objetivo dos terroristas é o de enviar um sinal aos líderes europeus. Um sinal de terror.”
França, um “viveiro” de terroristas na Europa
Yassin Salhi, o principal suspeito do ataque terrorista que feriu duas pessoas e vitimou uma outra, perto de Lyon, numa fábrira de gás, tem 35 anos, vive em Saint-Priest, e foi identificado em 2006 por radicalização — mas não tem qualquer cadastro. Os contornos da morte — Salhi decapitou um homem, colocou a cabeça numa estaca e inscreveu na testa da vítima palavras em árabe — não deixam dúvidas a José Manuel Anes. “Eu creio que o atentado, mesmo não sendo reivindicado, é da autoria, ou, pelo menos, tem ligações ao Estado Islâmico. O corpo da vítima, decapitado, tinha frases em árabe. E isso é tipicamente uma assinatura do Estado Islâmico. Não o fazem por loucura, mas para assustar o ‘inimigo’ e trazer mais elementos para a sua causa. Faz parte da violência psicológica.”
O corpo da vítima, decapitado, tinha frases em árabe. E isso é tipicamente uma assinatura do EI. Não o fazem por loucura, mas para assustar o ‘inimigo’ e trazer mais elementos para a sua causa. Faz parte da violência psicológica”, sustenta José Manuel Anes.
Desde 1995 já houve pelo menos seis atentados em França relacionados com o extremismo islâmico. O último foi em Janeiro de 2015. O ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo provocou a morte a 12 pessoas, entre jornalistas e cartoonistas. Os dois suspeitos do ataque foram abatidos dois dias depois. “Em França, houve uma vigilância muito forte nos meses a seguir aos atentados do Charlie Hebdo. Quer os serviços de informações, quer a polícia e o exército, têm a situação mais ou menos controlada. Mas o risco de ameaça é grande. Apesar de tudo, vem diminuindo devido à vigilância”, considera o professor universitário.
O general Loureiro dos Santos acredita de Lyon que o atentado não será o último. “Eu julgo que o que aconteceu em França vai continuar a acontecer. E tende mesmo a aumentar. A França tem imensos muçulmanos — tal como a Alemanha, que tem muitos turcos, tal como Inglaterra, que tem muitos árabes –, e, no meio desses muçulmanos, haverá muitos que gostam de fazer os chamados ‘safaris jihadistas’, à Síria, por exemplo, e regressam a França capazes de verdadeiras barbárie.”
Julgo que o que aconteceu em França vai continuar a acontecer. E tende mesmo a aumentar”, prevê Loureiro dos Santos.
A atuação do Governo francês no combate ao terrorismo tem sido eficaz para Loureiro dos Santos. “O Governo francês tem plena consciência do que se passa, e a prova de que tem é que as Forças Armadas estão na rua. Desde os primeiros atentados que colocaram 10 mil, 20 mil militares em pontos sensíveis de França. Mas só isso não basta. É necessário que haja um serviço de informações muito hábil, com grande coordenação com os serviços de informação de outros países.”
“É impossível que um serviço secreto consiga impedir todos os atentados terroristas.”, considera Miguel Monjardino. O que é importante é que as sociedades, no caso as ocidentais, continuem a defender o seu modo de vida. “Nenhum atentado nas sociedades ocidentais, até hoje, mudou um regime político. E não devem ter medo destas pessoas. Estas pessoas, os extremistas, alimentam-se do medo que geram e, sobretudo, das reações que esperam dos governos europeus, reações que querem como excessivas. Tal como os terroristas pensam estrategicamente, nós devemos fazer o mesmo. Devemos acreditar na força da política, na força da moral, na força do que representamos, para resistir a este tipo de pessoas. E mesmo os muçulmanos, os do ocidente e os de toda a parte, devem mostrar um ‘cartão vermelho’ a quem usa a religião para intimidar os outros”, afirma o professor da Universidade Católica.
Mas o ataque perto de Lyon tem outra particularidade grave, que Monjardino não descura. “Em França, que eu me recorde, é a primeira vez que um complexo petroquímico é atacado. Um ataque, ou uma tentativa de ataque, na França, que é um país altamente industrializado, deve ser seguido com muita atenção. É que as consequências, em termos de saúde pública, de um ataque deste tipo, numa outra dimensão, podem ser muito, muito graves.”
Sunitas e Xiitas: um ódio que nem o Ramadão atenua
Uma explosão causada por um bombista suicida atingiu a mesquita xiita Imam Sadiq na capital do Kuwait, após as orações de sexta-feira. O ataque foi reivindicado pelo Estado Islâmico, segundo escreveu a agência France-Press. O autor, Abu Sleiman al Mouahed, terá utilizado um cinto suicida. Até agora foram contabilizados 25 mortos e pelo menos 202 feridos, reporta a agência Reuters. O Kuwait fica num perigoso enclave do Golfo Pérsico, entre o Iraque, o Irão e a Arábia Saudita.
Este atentado, à hora das orações, teve como objetivo estratégico o de fomentar a divisão entre sunitas e xiitas”, considera Miguel Monjardino.
“Para mim, não deixa de ser chocante que, no mês do Ramadão, um mês sagrado, da renovação da fé muçulmana, se fomente uma guerra religiosa com os xiitas. É importante perceber que 30 por cento da população do Kuwait é xiita. E este atentado, à hora das orações, teve como objetivo estratégico o de fomentar a divisão entre sunitas e xiitas. Na Tunísia o alvo é puramente económico e o alvo são os turistas; no Kuwait, não, o alvo é político e religioso, e o meio, chamemos-lhe assim, são os xiitas que rezavam”, considera Miguel Monjardino, que relembra que há no Kuwait financiamento privado, por parte de magnatas do Golfo Pérsico, ao EI. “Estamos a falar de centenas de milhões de dólares”.
José Manuel Anes considera que a zona do atentado, tal como o próprio Kuwait, é uma “zona vulnerável”. Loureiro dos Santos é da mesma opinião: “Pela sua localização, pela sua riqueza, o Kuwait é relativamente acessível e desejado por vários tipos de jihadistas, seja a Al Qaeda, seja o Estado Islâmico, e por outros grupos — porque há vários. Mas é sobretudo a riqueza do próprio Estado do Kuwait, a riqueza petrolífera, que lhe coloca todos estes problemas.”
E Portugal? Está ou não sob ameaça do terrorismo?
A questão que se coloca é se Portugal está ou não fora do radar dos jihadistas. José Manuel Anes crê que sim. Por enquanto. “Portugal tem um serviço de informações que funciona e é bom. Começou por funcionar com Espanha, mas também já está operacionalizado com outros países. Nós não temos recursos ilimitados nos nossos serviços de informações, logo, tem que haver cooperação.” Mas o risco é levado. “O norte de África é um problema. Na Argélia já existe um grupo clandestino ligado ao EI. Marrocos também tem elementos extremamente radicais. Em Espanha, por exemplo, já foram detidos alguns desses elementos, em Ceuta e noutros locais. Em Itália, há não muito tempo, um dos responsáveis pelo atentado no Bardo foi detido, misturado com outros migrantes ilegais. Sim, o norte de África, até pela proximidade geográfica pelo sul da Europa, pode ser um problema para nós.”