A disputa eleitoral foi “neck to neck“, melhor dizendo, ombro a ombro. Foi assim que, na última semana, Cavaco Silva descreveu a campanha e as sondagens ao presidente do Paraguai. E é esse ombro a ombro que promete dar dores de cabeça ao Presidente a partir desta noite, depois de os resultados serem conhecidos.

Os cenários que se colocam são muitos – oito, nas contas do Observador. E muitos deles deixam na mão do Presidente um papel central no processo de formação do próximo Governo. De resto, só em dois cenários Cavaco Silva terá a vida facilitada: se algum partido, para surpresa geral, vencer com maioria absoluta; ou se a margem da vitória for suficiente para evitar que outro bloco alimente a expectativa de governar. Um exemplo: se a coligação PSD/CDS tiver mais deputados, por exemplo, do que o PS somado ao Bloco de Esquerda.

Em Nova Iorque, esta semana, Cavaco foi muito comedido nas declarações aos jornalistas. Limitou-se a elogiar a “razoável normalidade” da campanha, “mais esclarecedora” e sem “os níveis de ataque pessoal como no passado”. Mas deixou um aviso, com destinatário incerto: “Sou totalmente insensível a quaisquer pressões, venham elas de onde vierem”. Em quem estava a pensar o Presidente? De que modo pretende ele agir nos próximos dias? O Observador foi ouvir algumas pessoas que têm acompanhado o Presidente – e conhecem o seu modo de pensar – para antecipar o que será previsível que faça a partir de amanhã. Aviso prévio: nenhum assume ter falado com Cavaco sobre o assunto.

Primeiro dilema: chamar Passos ou Costa?

Imagine o cenário: a coligação ganha, mas o PS tem mais deputados do que o… PSD. Sim, do que o PSD e não do que a coligação (que dividirá os deputados pelo PSD e CDS). Cavaco convida quem para formar Governo – Passos ou Costa?  A dúvida foi lançada por Vital Moreira, constitucionalista e ex-eurodeputado do PS. Defende Vital que o Presidente só tem uma opção: chamar o líder do PS. Porque a coligação só vale para as eleições e não para o pós-eleições. Passos já respondeu que “governa quem ganha, não é quem perde” e que confia que o Presidente o chama a ele. Mas e o que pensará Cavaco Silva?

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“A tradição é que o Presidente chame o partido ou coligação mais votada. E a coligação foi formada para governar”, diz um dos conselheiros do chefe de Estado, que tem acompanhado de perto a sua atuação. “São jogos de salão”, acrescenta um outro. “A tese vem do PS e o PS está já a prever o que pode acontecer”, acrescenta o terceiro ouvido pelo Observador. Será esta uma das pressões de que falava Cavaco? O certo é que Cavaco Silva “estudou todos os cenários” – a única frase que se ouve em Belém. E, mais importante, que todos eles as contas são feitas à coligação PàF e não ao PSD. Quem conhece o método de Cavaco não duvida que será essa a sua interpretação da Constituição.

Mas, claro, pode acontecer que nem tudo seja claro na noite eleitoral. No caso de, por exemplo, de uma derrota tangencial do PS e de os socialistas poderem somar mais deputados com o BE do que a coligação. Nesse cenário, que fará Costa? E o que fará Catarina Martins?

Não sabendo com que quadro vai ser confrontado, o Presidente decidiu já não ir às comemorações do 5 de outubro, resguardando-se no Palácio de Belém. É aí que vai receber os líderes partidários. E vai recebê-los, confirmou o Observador, por ordem crescente. Primeiro o partido menos votado e só no final o vencedor. Assim ficará com mais dados na mão, quando falar com o homem que vai indigitar para formar Governo. Nomeadamente saber quem terá disponibilidade para negociar o quê. “O Presidente terá de saber que tipo de solução cada um propõe”, anota um ex-ministro de Cavaco, membro da sua comissão de honra. “Fazer alguma afirmação seria interpretado como tentando condicionar aqui ou acolá”, disse o próprio Cavaco esta semana nos EUA, numa afirmação que se mantém atual na segunda-feira.

Segundo dilema: valem os mandatos ou a % de votos?

Outro problema levantado na campanha, aqui pelas sondagens eleitorais. E se um dos partidos ganhar em votos e o outro em mandatos? O caso só acontecerá se os resultados derem praticamente um empate – e nesse caso, o mais provável é que seja a coligação com mais mandatos, mesmo que o PS vença em votos (sobretudo porque a direita leva tradicionalmente vantagem na emigração).

“Do que conheço deste Presidente, ele vai seguir as regras de sempre. As explícitas na Constituição e as que decorrem da prática”, explica um destes ‘cavaquistas’. E que regras são essas, então? Interpretação: “Neste ponto, tudo é claro: ele chamará a força política representada com o maior número de deputados”, diz a mesma fonte. A questão chave é, acrescenta, “se a Assembleia viabiliza”. Dito de outra forma, se neste cenário tão empatado o nomeado pelo PR consegue evitar uma maioria negativa, que lhe chumbe o programa e derrube o Governo à nascença – mas “essa é a fase seguinte”, como explica um dos conselheiros ouvidos pelo Observador.

Terceiro dilema: assumir o processo ou deixar com os partidos?

É aqui que os dilemas do Presidente começam a tornar-se mais difíceis. Desde cedo, Cavaco Silva colocou a fasquia alta: começou a exigir estabilidade, chegou até a pedir um Governo com o “apoio maioritário do Parlamento” – expressão que usou no dia em que convocou as legislativas, em direto para o país ouvir.

O problema é como conseguir – ou pelo menos tentar – esse objetivo. “Será que ele quer assumir o peso da responsabilidade de promover um consenso – que não tem a certeza de conseguir?”, questiona com notória desconfiança um dos ouvidos pelo Observador. Ou deixa o processo na mão dos líderes partidários, pressionando apenas para que tentem uma solução? O Presidente quererá assumir um papel central e impulsionador de uma “maioria” no Parlamento – mesmo que seja um acordo parlamentar apenas?

Na memória dos mais próximos de Cavaco Silva está uma memória recente: quando, na crise política de 2013, forçou uma negociação entre Governo e PS para um entendimento que desse mais estabilidade às políticas e à governação. Há quem lembre que, nessa altura, Cavaco Silva colocou David Justino, seu assessor em Belém, à mesa das negociações. Mas que sublinhe que Justino tinha ordem para se manter em silêncio. “Não foi um mediador, foi apenas testemunha”. E agora? Cavaco quererá ser testemunha ou mediador? “É uma jogada muito arriscada, pode dar mal”, diz outro conselheiro. Outra opinião: “Dessa vez toda a gente percebeu que só não houve acordo por causa do PS, agora seria dele”. Ou outra ainda, de outro ‘cavaquista’: “Quanto mais abrir o jogo, mais comprometido fica.

A conclusão, então, será esta: “Acho que vai transferir para os partidos essa responsabilidade. Está escaldado com o que aconteceu em 2013”.

No mesmo discurso de junho deste ano, o Presidente pareceu indicar já esse caminho. Relendo-o, eis uma passagem esclarecedora:

“Cabe aos partidos a responsabilidade pelo processo de negociação visando assegurar uma solução governativa estável e credível que disponha de apoio maioritário no Parlamento. Os acordos interpartidários, como é evidente, só têm consistência e solidez se contarem com a adesão voluntária e genuína das forças políticas envolvidas”.

Último dilema: Exigir uma maioria, um Orçamento ou nem isso?

Foi já no final de agosto que Cavaco Silva deixou explícito o que considerava ser o mínimo exigível aos partidos no pós-eleições. O contexto é importante: a declaração aos jornalistas foi feita em agosto, depois de Alexis Tsipras ter convocado novas eleições na Grécia. E dizia assim:

“As eleições são uma jogada política, que é criticada por todos os partidos, mas quando um partido daquela área política perde toda a sua maioria de um momento para o outro, as escolhas são muito limitadas, porque é sempre difícil ficar nas mãos dos partidos da oposição, principalmente se não existe um acordo de incidência parlamentar. Em Portugal o compromisso pode também revestir a forma de acordo de incidência parlamentar”.

Antes, já Cavaco Silva tinha dado exemplos de como lá fora, na Europa, é tradicional os partidos sentarem-se à mesa depois de eleições (“são 26 os países”, disse). E justificou o porquê – e o método que lá é seguido:

“Em alguns países da União Europeia, as negociações não foram fáceis e exigiram tempo, mas o interesse nacional acabou por sobrepor-se aos interesses de cada um dos partidos. Os líderes políticos sabiam, de antemão, que um governo sem apoio parlamentar tem sempre muitas dificuldades em aprovar as medidas indispensáveis à resolução dos problemas nacionais.”

Mas o pós-eleições por cá não permite antever facilidades para o Presidente. Eis o que diz um dos conselheiros do Presidente: “Se o PS perder pode ser complicado. Não vi sinais de abertura de António Costa. Ele não sai do retângulo”. A opinião é partilhada por outro companheiro de rota do chefe de Estado – mas lembrando um fator que pode ajudar a desatar um nó: “Nessa altura terá que ver se se mantém o que o Costa disse, que não dava nenhuma garantia de governabilidade, até que não viabilizava um orçamento. Mas aí, nem sabemos se quem vai lá estar é o Costa”.

Uma saída de Costa, claro, implicava uma crise no PS – e essa crise poderia empurrar mais para a frente uma solução mais estabilizada do quadro político. Ajudando também o Governo a passar os primeiros obstáculos da legislatura – o programa de Governo e o Orçamento de 2016. Mas e o que pode o Presidente contar da liderança seguinte? Dois pontos importantes, sublinhados por dois conselheiros:

  1. “Há um incentivo à estabilidade nos primeiros meses: é que quem deitar abaixo será fortemente penalizado nas eleições. A questão central é se quem estiver na oposição mantém a cabeça fria ou não (sob pena de entrar em convulsão).”
  2. “O primeiro orçamento vai ser com ele [Cavaco Silva]. E é importante procurar que passe. Depois disso já será com o próximo Presidente – e já sabemos que se entra logo em campanha”.

Esta última questão é sensível. Cavaco, claro, quererá deixar uma ‘herança’ estável ao seu sucessor em Belém, já em março quando estiver de saída. Mas uma fasquia mais baixa terá, pelo menos, a vantagem de uma saída airosa.

Quem o conhece melhor diz que, pelo menos, não deixará de tentar a primeira – e com pressão pública: “Ele vai ter que medir que tipo de acordos parlamentares ou de coligações, seja com o PSD e CDS, seja com o PS. E terá que procurar esses consensos, acredite ou não que eles são possíveis”.

Mas e no cenário de uma vitória do PS (mesmo que curta)? Novo consenso entre cavaquistas: “O cenário de vitória do PS é, desse ponto de vista, mais simples: pode fazer acordos à esquerda e à direita”, admite uma das fontes ouvidas pelo Observador. Mas há aqui um risco, mais um: “Se o PS negociar à esquerda, como é que os investidores vão olhar para um governo aliado a quem aceita a saída do euro e quer a renegociação da dívida?”

A sombra do Syriza é das que mais assusta Belém. E, entre os seus próximos, há quem considere que Cavaco devia jogar duro: “Aí o Presidente terá que avaliar. Primeiro as lideranças, depois a disponibilidade do BE e PCP (deste último, acho que nunca acontecerá). Aí é até possível que o Presidente – como não pode convocar eleições – deixe o Governo em funções, mesmo que em gestão. É um risco, porque só será possível convocar eleições em junho, julho.” Já depois da sua saída da Presidência. Recusar um governo com um entendimento PS-Bloco tem, de resto, um precedente: em 1985, o Presidente Mário Soares recusou o pedido de Vítor Constâncio (PS) para fazer Governo com o PRD e CDU, marcando depois eleições antecipadas. Com outra diferença (para lá dessa hipótese de as marcar): é que essa ideia de Constâncio veio a meio da legislatura, depois de esses partidos terem deitado abaixo o Governo de… Cavaco Silva.

Este ponto não é, ao contrário dos outros, tão consensual entre os apoiantes de Cavaco Silva. Mas numa coisa todos se dizem seguros: Cavaco Silva vai fazer um apelo público a uma solução de estabilidade maior do que o de uma minoria. “E dará o tempo suficiente para os partidos se entenderem.” O que sair deste processo será, muito provavelmente, o que vai definir o seu mandato.

E foi assim que terminou um dos telefonemas do Observador para um dos ‘cavaquistas’, “No dia 5, o Presidente fará o melhor possível. Le jeux sont faits (os dados estão lançados).