Foram duros, os discursos da Ajuda. Para ajudar a ler nas entrelinhas, aqui ficam as farpas atiradas de lado a lado, explicando antes de cada frase o que Cavaco e Costa quiseram dizer (um ao outro, mas não só). A leitura, claro, não responsabiliza os protagonistas. E o número só traduz o tamanho de cada discurso – maior o do primeiro-ministro do que o do Presidente.

Cavaco Silva, Presidente da República

    • 1 – Esta foi uma crise política – e ela foi provocada pela esquerda: “O Governo que hoje toma posse foi formado na sequência da crise política aberta pela rejeição do Programa do XX Governo Constitucional”.
    • 2 – À esquerda não há acordos, os papéis são omissos e as dúvidas subsistem. “Quatro forças políticas assinaram três documentos de diferente alcance, designados ‘posições conjuntas’, com vista à apresentação de uma solução governativa alternativa. Os referidos documentos são omissos quanto a alguns pontos essenciais à estabilidade política e à durabilidade do Governo, suscitando questões que, apesar dos esforços desenvolvidos, não foram totalmente dissipadas”.
    • 3 – PCP e BE são “responsáveis” pelo novo Governo. “Trata-se de uma solução inédita na história da nossa democracia, suportada por uma maioria parlamentar que se comprometeu a não inviabilizar a entrada em funções de um novo Executivo, o que confere às forças políticas envolvidas a responsabilidade pelo Governo”. 
    • 4 – As caras mudam, as regras não. “A entrada em funções do XXI Governo Constitucional inicia um novo ciclo político. No entanto, os objetivos estratégicos do País permanecem”.
    • 5 – Um caderno de encargos para quatro meses (de Cavaco em Belém). “Que respeite as regras europeias de disciplina orçamental aplicáveis aos países da Zona Euro”; “que Portugal saia rapidamente do Procedimento por Défice Excessivo, reduza o rácio da dívida pública e alcance o objetivo de médio prazo fixado para o défice estrutural”.
    • 6 – Nada de afrontar os mercados e credores. “É uma ilusão pensar que um país como Portugal pode prescindir da confiança dos mercados financeiros e dos investidores externos e, bem assim, do apoio de instituições internacionais”.
    • 7 – Há mais vigilantes – OCDE, Conselho Finanças Públicas (CFP) e Banco de Portugal: “Importa, a este propósito, ter presente algumas verdades elementares de política económica que, por serem lembradas por entidades independentes e credíveis, um Governo não pode deixar de ter em conta.”
    • 8 – O modelo económico do PS não serve: “O País precisa de um modelo de crescimento estável da economia e do emprego, assente no aumento da produtividade e na competitividade da economia e não no seu endividamento e no aumento das despesas públicas” (citando o CFP); “o impacto de uma política em que o crescimento seria impulsionado pelo consumo privado e pela quebra da poupança seria insustentável” (idem); “Uma política virada para o curto prazo e assente num grau minimalista de consolidação orçamental não só não cumpriria as atuais regras europeias como teria implicações negativas sobre o endividamento do País e a produtividade” (idem).
    • 9 – Uma ameaça de demissão pendente – e uma legitimidade maior. “Não abdicando de nenhum dos poderes que a Constituição atribui ao Presidente da República – e recordo que desses poderes só o de dissolução parlamentar se encontra cerceado – e com a legitimidade própria que advém de ter sido eleito por sufrágio universal e direto dos Portugueses, tudo farei para que o País não se afaste da atual trajetória de crescimento económico e criação de emprego e preserve a credibilidade externa.”
  • 10 – Uma exigência final – negociar na concertação antes de aprovar medidas (como salário mínimo e leis laborais). “Uma prova para a capacidade de diálogo não só com as demais forças políticas mas também com os parceiros sociais e as instituições da sociedade civil.”

 

António Costa, primeiro-ministro

    • 1 – Consciente da exigência (não é preciso que lhe lembrem). “Não ignoro, e portanto não minimizo, as muitas dificuldades que temos pela frente, nem as restrições que limitam o nosso leque de opções e condicionarão a nossa ação”.
    • 2 – Confiante, também no Bloco e PCP. “Que não fique a mínima dúvida: este é um governo confiante. Confiante, antes de mais, no seu projeto mobilizador do País e na solidariedade da maioria parlamentar que lhe manifestou apoio e lhe confere inteira legitimidade.
    • 3 – A legitimidade do Governo é incontestável: “Da mesma maneira que numa eleição todos os votos contam, também contam todos os mandatos parlamentares, quer para efeito de representação, quer para efeito de governação”.
    • 4 – O PS desbloqueou o sistema de Governo – e tem mérito, não culpa. “A democracia portuguesa ficou demasiado tempo refém de exclusões de facto, que limitavam o leque de soluções políticas possíveis e defraudavam o sentido do voto de boa parte dos nossos concidadãos.”
    • 5 – Isto não foi um golpe, foi “normal”. “Termina um momento político, certamente complexo e delicado, mas inteiramente normal numa democracia parlamentar”.
    • 6 – O Governo responde só perante o Parlamento (não perante o PR). “O Governo provém da Assembleia da República – e é perante a Assembleia que responde politicamente“.
    • 7 – Por isso, é com o Bloco e PCP o seu compromisso (não com o PR). “É preciso, por isso, que a formação e a orientação programática do Governo respeitem a sua composição e realizem os compromissos que essa composição ao mesmo tempo exige e permite.”
    • 8 – O Governo vem para durar. “Formou-se uma maioria estável que assegura, na perspetiva da legislatura, o suporte parlamentar duradouro a um Governo coerente“.
    • 9 – … Quer queira, quer não. “Hoje empossado por Vossa Excelência, senhor Presidente, o XXI Governo Constitucional torna-se o Governo de Portugal“.
    • 10 – O Governo cumprirá os compromissos. “Este é um Governo de garantia. Da garantia da continuidade do Estado nos seus compromissos internacionais e no quadro da União Europeia”; “Será uma alternativa realista, cuidadosa e prudente”.
    • 11 – Mas vai mesmo mudar de políticas. “O respeito do sentido claro da votação popular exige que o Governo assuma como sua linha de orientação a mudança das políticas, dando prioridade ao crescimento económico, à criação de emprego, à redução das desigualdades”.
    • 12 – O passado não será esquecido. O trajeto que seguimos deixará marcas, e marcas profundas, ainda por muito tempo (…). Não podemos ignorar é que, infelizmente, e depois de tantos sacrifícios, a nossa sociedade está hoje mais pobre e desigual a nossa economia mais enfraquecida no seu potencial de crescimento e o País mais endividado”.
    • 13 – A missão: provar que há mesmo uma alternativa (ao contrário do que dizem Passos e Cavaco). “A austeridade não gera crescimento, nem a desvalorização interna prosperidade.”; Este Governo nasceu da recusa da ideia de que não haveria alternativa à política que vem sendo prosseguida e a sua posse por V. Exa. é a prova que a democracia gera sempre alternativas. Não viemos, portanto, nem com uma atitude de resignação ante as pretensas fatalidades do destino – seja o destino nacional, seja o destino do projeto europeu“.
  • 14 – Moderação – a promessa que tem uma exigência (a Passos e Cavaco). “Não é de crispação que Portugal carece, mas sim de serenidade. Não é altura de salgar as feridas, mas sim de sará-las. O bom conselheiro desta hora não é o despeito ou o desforço, mas a determinação em mobilizar as vontades para vencermos os desafios que temos pela frente.”

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