Quando o sabonete passou a gel, o pó de arroz passou a base e Portugal foi sofrendo, como a cosmética, as suas próprias revoluções, um creme viu tudo da sua bisnaga, impassível. Pierre Stark chama-lhe “o Nívea português” porque não conhece um caso de fidelização igual no país. As mães usaram-no “para conservar a mocidade”, depois vieram as filhas, também à procura de fazer “desaparecer as rugas prematuramente vincadas”, e depois as filhas das filhas, para “eliminar os pontos negros, manchas e aspereza da epiderme”. Todas se terão cruzado com a embalagem Art Déco, mesmo que não se lembrem. Basta cheirar, hoje, o produto que fazia todas estas promessas há 91 anos — cheira ao quarto da avó e aos beijinhos que ela dava.

Se houvesse uma história doméstica de Portugal no século XX, o creme de rosto Benamôr tinha de estar nela, ao lado da pasta dentífrica Couto ou dos sabonetes Ach Brito. Criado em 1925, é o creme milagroso que atravessou décadas e que se prepara para uma nova vida: conquistar o mundo e chegar à Ásia.

1956-Jun. Eva - Creme Benamor

Nos anos 50 o slogan continuava assente na mocidade do rosto.

A estratégia está montada e faz parte de um plano geral dos novos donos da marca que inclui outros produtos, novas embalagens e mais pontos de venda. Apesar de parecer o início de uma anedota, porque envolve um português, um francês e um japonês — novos sócios da empresa –, é coisa séria. “O nosso objetivo é internacionalizar a Benamôr e não ficar pela tendência do vintage”, diz Pierre Stark, o francês e CEO do grupo. “Assistimos a uma enorme valorização dos produtos antigos e do fabrico artesanal mas daqui a uns anos, quando a onda nostálgica passar, ainda queremos cá estar.” Por outras palavras, e como nas relações saudáveis, a beleza das embalagens não chega. “Não queremos fazer um sabonete que se oferece para servir de decoração, queremos fazer um sabonete que se compra porque é bom, porque se quer tomar banho com ele.”

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Pierre é natural de Paris mas conheceu a Benamôr em Lisboa, através de Catarina Portas, amiga da mulher, que é portuguesa. Diretor-geral de uma multinacional da indústria cosmética durante 20 anos, perguntou à fundadora das lojas A Vida Portuguesa quais eram as marcas de beleza nacionais mais conhecidas. Catarina Portas falou-lhe da Ach Brito e da fábrica Nally, mais especificamente do creme que tinha na loja e que estava no top 3 de vendas: o creme de mãos Alantoíne, da Benamôr. Falou-lhe também de uma experiência que tinha feito e em que tinha conseguido fazer chegar alguns exemplares à conceituada loja Christian Lacroix de Saint-Sulpice, em Paris: com o design cuidado dos anos 20 como grande cartão de visita, os cremes esgotaram rapidamente.

BENAMOR alantoine

O creme de mãos Alantoíne.

Rendido depois de testar os produtos, Pierre foi investigar a marca e chegou à Nally, cuja história se confunde com a da Benamôr mas é na verdade bem mais complexa. Sedeada no número 189 do Campo Grande, com três farmacêuticos a desenvolverem fórmulas em laboratório e cerca de 200 trabalhadores, nos tempos áureos a fábrica chegou a desenvolver produtos de cosmética para 35 marcas portuguesas, entre elas o protetor solar Bronzaline — o primeiro do país –, o pó de arroz Marquitta e os perfumes cujos frascos eram inspirados nos de Lalique e, por isso, iguais aos da cosmopolita capital francesa.

A Benamôr foi a primeira marca a ser desenvolvida — em 1925, com a criação da fórmula do eterno creme de rosto — e foi batizada com o mesmo nome de uma perfumaria que existia na Rua Augusta, mas ao longo das décadas era a partir do Campo Grande que se respondia às muitas necessidades das senhoras e senhores aprumados de Lisboa, num país cada vez mais fechado ao mercado estrangeiro. “A Nally era o maior produtor de cosmética em Portugal e nunca parou de produzir”, diz Pierre Stark. Na lista de clientes havia nomes famosos, da rainha D. Amélia ao próprio Salazar, que todos os meses enviava um motorista à fábrica para ir buscar uma caixa de Petróleo Químico Nally, “defensor dos cabelos fracos” e um dos primeiros produtos criados em Portugal para evitar a calvície. É que Salazar até podia cair da cadeira mas não queria que lhe caísse o cabelo. E fazia questão de pagar sempre a mercadoria, apesar de lha quererem oferecer.

fábrica nally

Como se vê por esta fotografia de 1927, todo o trabalho de embalamento era feito à mão.

Uma história de persistência e de perenidade

Quando chegou à fábrica, desde 2009 instalada numa zona industrial de Alenquer e desde os anos 80 mais vocacionada para a produção de cosmética para terceiros, devido à queda das marcas próprias, Pierre Stark encontrou toda esta história e encontrou também o “Sr. Nunes”, sócio maioritário da Nally, 83 anos de vida e mais de 60 de casa (a primeira família detentora do negócio vendeu-o nos anos 60, perante um processo de falência). “Andámos a negociar durante três anos”, conta o atual CEO. “Ele nunca quis vender a marca porque defende que ela é uma história de perenidade, mas ao fim de muito tempo, e de muito namoro, lá viu uma forma de assegurar essa perenidade através de mim.”

O processo de reinvenção da Benamôr começou há um ano e está agora a ganhar visibilidade, com a entrada na zona de perfumaria do El Corte Inglês, expositores próprios em farmácias selecionadas e uma maior gama de produtos. Ao lado do creme de rosto há agora mais 13 referências: quatro cremes de mãos em dois tamanhos, quatro sabonetes e um creme gordo de corpo. “Em 2017 queremos chegar às 25 referências e em 2018 às 50”, diz o administrador, que divide a quota da empresa com o sócio português Filipe Serzedelo e o japonês Takehide Takasa. “Temos um arquivo tremendo e podemos pensar em cuidados de pés, por exemplo, em bálsamos de lábios, ou em desenvolver os produtos de rosto com máscaras e incluir também uma gama para homens, já que fazemos cremes de barba há décadas.”

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Publicidade de 1929 à pasta dentífrica Benamôr, feita para “bocas que pedem beijos”.

“Isto só faz sentido se tivermos um enorme respeito pelo passado, por tudo o que foi feito pelos antigos sócios, tudo o que existe na fábrica e todas as pessoas que já estão connosco há mais de 30 anos”, diz Pierre Stark, dando como exemplo o encarregado da fábrica desde 1980, o “Sr. Fernando”, que chamou a atenção para a máquina dos anos 50 e para o molde graças ao qual recomeçaram a fazer sabonetes, ou ainda para a “D. São”, a quem o administrador chama de “cozinheira” por ser quem domina as fórmulas e sabe juntar os ingredientes.

Nas “receitas de beleza”, como o novo marketing gosta de dizer, entram os ingredientes tradicionais já usados pela Benamôr, como o alantoíne, mas também outros mais modernos como o aloé vera, o óleo de argão e a manteiga de karité. “A primeira coisa que fizemos, a nível tecnológico, foi retirar os parabenos e substituir, por exemplo, a parafina mineral por vegetal”, conta Pierre. Ao lado do logótipo da marca, redesenhado pelo designer gráfico Ricardo Mealha com uma bonita tipografia modernista, os cremes ganharam também nomes “mais atrativos” como Jacarandá, em homenagem a Lisboa, ou “Gordíssimo”.

JACARANDA benamor

A nova imagem sublinha a ligação da marca a Lisboa.

Apesar da internacionalização da estratégia, que passa por trabalhar com um parceiro próprio em cada país e fazer uma distribuição seletiva, posicionando a marca na área do luxo acessível, tudo continua a ser feito em Portugal: os cremes na fábrica de Alenquer, as bisnagas de alumínio no mesmo parceiro de há 90 anos — a Sociedade Artística, em Monção –, e as caixas de papel em Braga. “Estamos a reinventar a marca mas os valores de simplicidade e proximidade são os mesmos”, conclui Pierre Stark. “Temos de ser consistentes.” E continuar a combater as rugas, a caminho dos 100 anos de vida.

Nome: Benamôr
Data: 1925
Pontos de venda: Lojas A Vida Portuguesa, El Corte Inglês e farmácias selecionadas.
Preços: 4,50€ (sabonete) a 12,50€ (creme de rosto)

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