O Governo anterior não só não alcançou a meta de dar médico de família a todos os portugueses, como as medidas adotadas não chegaram sequer para dar médico de família a mais gente, até o final do primeiro semestre de 2015, afirma o Tribunal de Contas (TdC), num relatório de auditoria publicado esta terça-feira, avisando que a situação vai piorar.

E os auditores socorrem-se de números para fazer esta afirmação. Em junho de 2015, havia 1.280.425 utentes sem médico de família, mais 7,69% do que o número registado em dezembro de 2013 (1.189.041). É que apesar de terem sido contratados 592 médicos de medicina geral e familiar nesse período, 663 passaram à aposentação.

Precisamente para fazer face à falta de médicos, o Governo anterior adotou uma série de medidas que o Tribunal elenca: a abertura de procedimentos para a admissão de profissionais; a contratação de profissionais médicos aposentados; o aumento do horário de trabalho normal da carreira especial médica, de 35 para as 40 horas semanais, com o resultante aumento da dimensão da lista de utentes inscritos, por médico, de 1.550 para 1.900 utentes; e os incentivos à mobilidade geográfica. Mas, acrescentam os auditores, estas medidas “não foram suficientes para atingir uma cobertura mais abrangente da prestação de cuidados de saúde primários médicos”.

E, mais, o Tribunal avisa que “a carência de médicos tenderá a agravar-se pelo crescimento acentuado das aposentações previsto para o período 2016-2021, num total de 1.761 aposentações”.

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Limpar das listas utentes que não vão há três anos ao centro de saúde não é o melhor, diz TdC

Outra das formas que o anterior Governo utilizou para reduzir o número de utentes sem médico de família foi retirar das listas dos médicos os utentes que estão há mais de três anos sem ir ao centro de saúde.

Mas em relação a esta medida, o TdC refere que “a simples exclusão dos utentes menos utilizadores, da lista de cada médico, por razões administrativas, não se coaduna com o carácter preventivo e de promoção da saúde dos cuidados de saúde primários”.

E defende a manutenção desses utentes nas listas, “embora sem contar para o apuramento da dimensão ponderada da lista”, pois isso “permitiria ao SNS promover uma atitude proativa na gestão dos utentes não frequentadores dos cuidados de saúde primários, sem prejudicar o acesso dos utilizadores mais frequentes”.

O Tribunal considera que esses utentes não podem simplesmente ser esquecidos, que devem ser acompanhados e até contactados pelo médico de família, ao invés de serem simplesmente notificados através de carta.

Mais de quatro milhões de portugueses têm seguro de saúde

O Tribunal de Contas sublinha ainda que, por conta da falta de médicos, em todas as regiões de saúde se regista “uma média do tempo de espera, entre o pedido de consulta programada (efetuado pelo utente) e a realização efetiva de consulta, superior ao tempo máximo de resposta garantido” e que, por causa disso, muitos portugueses têm optado por subscrever seguros de saúde.

Apoiado num estudo da Entidade Reguladora de Saúde, o Tribunal de Contas conclui que “a opção pela obtenção de uma segunda cobertura resulta em grande parte de falhas de serviço do SNS, nomeadamente em termos de tempo de acesso, que não pode ser dissociado da ausência de atribuição de médico de família”.

E são já mais de quatro milhões (40% da população residente) os portugueses que têm essa dupla cobertura: 2,3 milhões de utentes subscritores de seguros de saúde e quase 1,9 milhões de utentes beneficiários de subsistemas de saúde públicos ou privados.

Faltam medidas para libertar médicos de tarefas administrativas

Já no anterior relatório de auditoria, o Tribunal de Contas tinha recomendado o Governo para adotar medidas no sentido de libertar os médicos de família para terem mais tempo para as consultas e para o contacto com os utentes, reduzindo o tempo que os mesmos dedicam a tarefas mais administrativas. E agora volta a tocar na mesma tecla, lembrando estudos que estimam que os médicos de família utilizam cerca de 33,4% do seu tempo diário em atividades que não o contacto direto com os utentes.

Esses mesmos estudos mostram que é possível reduzir os “8,6 minutos diários gastos com comunicações administrativas, os 7,3 minutos de contactos com delegados de propagação médica e os 5,7 minutos perdidos com problemas informáticos”.

Acontece que “com exceção da publicação do modelo de prestação de cuidados de enfermagem centrado no enfermeiro de família, no âmbito dos cuidados de saúde primários, tendo sido iniciadas experiências piloto em cada Administração Regional de Saúde, bem como da generalização da prescrição eletrónica de medicamento, não foram apresentadas quaisquer outras medidas, desenvolvidas pelo Ministério da Saúde do XIX Governo, que visassem este propósito”.

E mesmo assim “no caso do enfermeiro de família, a implementação da atividade não foi concretizada na sua plenitude por não estarem, ainda, aprovados preceitos essenciais para a identificação das áreas de partilha de responsabilidade na prestação de cuidados” e quanto à prescrição eletrónica de medicamentos, apesar das vantagens, “a grande maioria das unidades funcionais reporta, no início de 2015, que são despendidos entre 4 e 10 minutos de cada consulta com o processo de prescrição eletrónica de medicamentos (30,65% entre 4 a 5 minutos e 29,03%, entre 5 a 10 minutos)”.

Motivo pelo qual, numa classificação de 0 a 20, os utilizadores deste sistema dão seis valores, numa apreciação “claramente negativa”.

Governo continua sem esclarecer questão dos incentivos nas unidades de saúde familiares

A questão dos incentivos pagos aos funcionários das unidades de saúde familiares (USF) também não é esquecida neste relatório. O Tribunal de Contas frisa que “não obstante as reservas expressas pelo Tribunal no anterior relatório de auditoria, sobre o suporte legal do pagamento destes incentivos financeiros, os mesmos foram pagos, em 2014 e 2015, pelas várias Administrações de Saúde e pelas Unidades Locais de Saúde do Baixo Alentejo e do Norte Alentejano”.

E lembra que o pagamento de prémios de desempenho — que é como se configuram estes incentivos financeiros, na opinião do Tribunal — está vedado desde 2013.

Apesar disso, o Ministério da Saúde continua sem clarificar nem qualificar estes incentivos, na lei. E os gestores dos centros de saúde deviam (em 2014 e 2015) “ter solicitado, à tutela, informação sobre o estado do esclarecimento por via legal que tinha sido recomendado pelo Tribunal, antes de autorizarem a despesa e o pagamento dos incentivos financeiros relativos à atividade de 2013 e de 2014, não tendo agido com a prudência e a diligência que lhes são exigidas no desempenho das suas funções”.

Reforma dos cuidados de saúde primários continua sem avaliação

O Tribunal de Contas repete também outra chamada de atenção que tinha feito antes. “Decorridos 10 anos desde a implementação da reforma dos Cuidados de Saúde Primários despoletada pelo XVII Governo, com a criação das primeiras Unidades de Saúde Familiar (USF), ainda não foi realizada pelo Ministério da Saúde nenhuma avaliação ex post cujos resultados revelassem os ganhos de economia, eficiência e eficácia associados a cada tipo de unidade funcional, nem os ganhos em saúde das populações”.

E sublinha, em tom crítico, que “apesar da ausência de uma avaliação sobre os efeitos da reforma, o XXI Governo nomeou uma equipa técnica para o ‘relançamento da reforma dos cuidados de saúde primários’, visando finalidades não suportadas em metas quantificadas, incluindo a demonstração de comportabilidade orçamental e a sustentabilidade do SNS”.

O Tribunal refere ainda que o modelo atual de constituição de USF — voluntário — não serve e daí esta “tendência de diminuição do número de novas candidaturas”, pelo que há “necessidade de ser ponderada a alteração da forma de constituição das USF, de modo a que esta seja organizada” centralmente. E volta a deixar a recomendação para que seja feita a avaliação a esta reforma.