O ex-espião que fundou a empresa de segurança IntellCorp e que se apresenta como um “ex-oficial do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED)” terá sido apenas técnico-adjunto ou técnico auxiliar da “secreta” que trata das ameaças externas, nunca tendo desempenhado qualquer função dirigente. Ruben Miguel Ribeiro, assim se chama o ex-analista e ex-operacional, não é licenciado. Logo, nunca conseguiu reunir os requisitos para ser promovido à categoria de quadro superior dos serviços de informações portugueses. Chegou a frequentar três cursos universitários, como Ciência Política, por exemplo, mas nunca os concluiu.
De acordo com as informações reunidas pelo Observador junto de diversas fontes dos serviços, Ruben Ribeiro terá sido militar miliciano no Exército, chegando à patente de sargento, antes de se candidatar a um curso de admissão nos serviços de informações. Feita a formação, terá passado por diversos departamentos do SIED, tendo estabilizado no Departamento de África como analista mas também como operacional.
https://twitter.com/MikeIntell/status/762270959785107456
Conhecido pelos antigos colegas por usar regularmente um jeep clássico da marca britânica Range Rover, foi em missões em África que Ruben Miguel Ribeiro ficou conhecido como Mike R. — nickname que ainda hoje utiliza no twitter. Tendo tido várias missões de contacto com fontes humanas em diversos países de língua oficial inglesa, como o Zimbabwe, terá preferido usar um nome operacional naquela língua para facilitar a integração no teatro de operações.
De acordo com as mesmas fontes da comunidade de intelligence, terá sido no Zimbabwe que Ruben Ribeiro teve problemas de natureza pessoal que levaram à sua retirada de uma missão por decisão da direção do SIED liderada por Jorge Silva Carvalho.
Contactado pelo Observador, e sem revelar em que países esteve como operacional, Ruben Ribeiro desmente que tenha sido retirado de alguma missão. “Isso é um rumor de corredor e um disparate. Não houve nenhuma polémica e permaneci sempre no terreno”.
Ruben fez ainda questão de dizer que, apesar de formalmente ter sido sempre técnico-adjunto no SIED, desempenhou “desde sempre funções de técnico superior por falta de pessoal”. Apesar de ter tido diversas missões no terreno, garante ter desempenhado essencialmente funções de analista. Em 2014, acabou por sair do SIED:
Saí porque já tinha um filho e porque queria ajudar a desenvolver o projecto da IntellCorp e para isso contei com a ajuda de muitas pessoas dos serviços e da área da segurança”.
Diversas fontes dos serviços de informações, entre ex-operacionais e ex-dirigentes, manifestaram ao Observador a sua surpresa, e até mesmo estupefação, pelo protagonismo da empresa IntellCorp e de Ruben Ribeiro após a notícia avançada esta quinta-feira pelo Diário de Notícias, já que sempre encararam o seu ex-colega como um técnico da base do SIED.
Ex-espião quer trabalhar com o Estado
A IntellCorp foi apresentada por David Santos — um doutorado em Filosofia que é sócio de Ruben Ribeiro –, em declarações ao DN, como uma empresa de intelligence que pretende vender informações a empresários e a políticos e que consegue “em poucas horas saber tudo ou quase tudo sobre alguém”. A IntellCorp conseguiu disputar a agenda mediática desta quinta-feira com a abertura do ano judicial. De acordo com o DN, a empresa já contratou diversos ex-espiões, além de Ruben Ribeiro.
Questionado sobre qual é a fronteira ética da IntellCorp na recolha de informações para um cliente e se pretendem recolher dados da vida íntima e privada de um determinado alvo, Ruben Ribeiro responde ao Observador:
Depende do cliente e das suas necessidades. Pretendemos explorar via direta e indireta todo o tipo de informação que sirva o nosso cliente — seja um Estado ou privado. Mas respeitaremos sempre a lei portuguesa e os acordos internacionais”, afirmou.
A IntellCorp pretende trabalhar para o Estado? “Há um mercado que devemos explorar. A IntellCorp corresponde a uma necessidade das empresas portuguesas mas também do Estado. Confio que a sociedade portuguesa tem maturidade suficiente para encarar de forma positiva o regime de outsourcing”, respondeu o ex-espião ao Observador. “Pretendemos trabalhar com o Estado devido aos constrangimentos financeiros que marcam a sua atividade. Por exemplo, um bom analista demora 10 anos a formar e com custos elevados para o Estado”, afirma.
A resposta é insólita, pois em Portugal nunca se falou sequer da hipótese de privados trabalharem em áreas tão sensíveis como as informações que garantem a segurança do Estado. Ruben Ribeiro, aka Mike R., explica-se: “Podemos ajudar e auxiliar o Estado — seja o Governo, as Forças Armadas ou os serviços de informações. Imagine que Portugal necessita de acompanhar de perto uma situação numa zona de conflito. É perigoso enviar militares ou até agentes dos serviços de informações. A IntellCorp tem capacidade para enviar operacionais que prestarão um serviço sem que exista o perigo de um incidente ou de um conflito diplomático”, assegura.
Isso assemelha-se às empresas de segurança que a administração de George W. Bush contratou em 2003 após a invasão do Iraque, certo? “Sim, exato”, responde Ruben Ribeiro. “É como as empresas de segurança norte-americanas fizeram no Iraque. Diversos países europeus já fizeram o mesmo. Isso não deve ser um tema tabu. A sociedade portuguesa deve debater o tema sem preconceitos. Nós podemos auxiliar o Estado de forma eficaz e com poupança financeira. Tem é de haver regras”, afirma.
Questionado sobre se a empresa, que foi criada há 2 meses, já trabalha para algum Estado, Mike R. afirma: “Temos solicitações de diversos Estados estrangeiros”. Da Europa ou de África? “Desculpe mas não posso especificar a área geográfica por razões de confidencialidade”, justifica.
E qual a faturação da IntellCorp nos primeiros 2 meses de atividade? “”Não sei a faturação. Estou encarregue da vertente operacional, enquanto o David Santos tem a vertente empresarial”, explica. Neste momento, a empresa tem cerca de 50 pessoas a colaborar com eles. Não são funcionários a tempo inteiro, são pessoas contactadas em função da necessidade dos serviços contratualizados e que reportam as informações recolhidas.
Os colaboradores da empresa terão integrado a IntellCorp pela mão de Ruben Ribeiro, não se sabe quantos, mas David G. Santos confirma ao Observador que há “vários elementos” que integraram os serviços de informações. Ele chama-lhe uma “rede de contactos muito forte” que provêm da “rede de contactos” do ex-espião.
David G. Santos e o estranho caso da Up To Start
Ruben Ribeiro e David G. Santos são, para já, os dois nomes associados à IntellCorp. O professor universitário, “especializado em Filosofia”, nunca foi elemento dos serviços de informações portugueses. Há quatro anos, em Angola, David G. Santos terá mantido “contactos com pessoas” das “secretas” de Luanda. E a “rede de contactos” que então começou a formar levou a uma aproximação a Ruben Ribeiro.
De tal forma que, “há cerca de um ano e meio”, o ex-espião lançou-lhe o “desafio” para que avançassem juntos com a criação da nova empresa — a ideia já andava a ser pensada há uns seis meses pelo antigo membro dos serviços de informações. Ribeiro ficaria responsável pela parte operacional, Santos pelo desenvolvimento do negócio.
Nessa altura, o professor universitário ainda estava noutra fase da sua vida profissional. Era “presidente e acionista” da Up To Start, uma empresa de consultoria empresarial que, depois de cinco anos de atividade, acabou por desaparecer subitamente, em junho deste ano.
Nos últimos dois meses, na página de Facebook da empresa foram sendo publicadas denúncias relacionadas com a falta de resposta dos responsáveis da Up To Start aos pedidos de esclarecimento que lhes chegavam. Num dos testemunhos ainda públicos, um antigo cliente expõe o seu caso: “A Up To Start tratou do processo de abertura da minha empresa e conta bancária nos Estados Unidos [mas] há uns dias fecharam a minha conta bancária e limparam todo o dinheiro que lá tinha”.
Ao Observador, o antigo cliente garante que vai avançar com um processo judicial contra a empresa. E não será caso único. Além dos clientes com relatos de burlas, haverá neste momento vários antigos funcionários com queixas já formalizadas junto da Polícia Judiciária. Terão ficado com salários por pagar quando a empresa fechou portas e nunca mais conseguiram chegar ao contacto com os antigos responsáveis.
A mesma queixa surge também pela mão de alegados funcionários da empresa. Num e-mail (o único) de resposta a um dos clientes, pode ler-se que o responsável da Up To Start Portugal, chamado Henrique Pedro, “se encontra de baixa médica e sem previsão de regresso”. Uma ausência que se estendia à Diretora de Recursos Humanos e Comunicação, Cláudia Gouveia. “Estamos sem contacto com ambos desde dia 8 de junho, pelo que todos os processos inerentes à atividade da empresa se encontram em stand-by”, acrescentavam os funcionários.
David G. Santos garante que não tem qualquer relação com estes episódios. Chegou “há cerca de um ano” à Up To Start — na mesma altura em que a empresa foi integralmente comprada pela Up To Start Limited, sensivelmente com o mesmo nome mas com sede no Dubai (uma empresa de que o professor universitário era acionista). Na mesma altura, a Up To Start registou um aumento de capital social, passando dos cinco mil para os 50 mil euros. David Santos assumiu as funções de presidente da empresa-mãe mas, garante, ainda assim não passava de um mero “colaborador” da empresa portuguesa que acabara de ser adquirida. “Não era sócio” da Up To Start de Lisboa, justifica, apesar de ser acionista da empresa que a controlava.
Em abril deste ano (dois meses antes da crise na participada nacional), David Santos diz que saiu. “Por razões pessoais, resolvi vender a minha participação a outros acionistas”, diz ao Observador. Que acionistas ou quantos? O antigo professor universitário prefere não dizer.
“Presença física” em escritórios virtuais
As dúvidas estendem-se à IntellCorp. No site oficial da empresa são apresentadas cinco moradas e contactos telefónicos: uma sede em Lisboa, no Parque da Nações, e escritórios em Brasília, Nova Iorque, Dubai e Maputo.
Uma busca pelas moradas apresentadas redundam todas no mesmo resultado – trata-se de escritórios virtuais, uma forma de determinadas empresas poderem ter uma morada em vários locais sem lá estarem presentes fisicamente.
David G. Santos rejeita que assim seja. “Se reparar, a nossa morada em Lisboa também pertence a uma empresa de escritórios virtuais”, uma prática que o cofundador da IntellCorp considera ser habitual. Ao mesmo tempo, assegura, a empresa fundada este ano tem “presença física” em cada um dos pontos apresentados no seu site.
No entanto, as várias tentativas que o Observador fez para obter uma resposta telefónica das várias moradas revelam-se infrutíferas. Em Lisboa, o telefone geral da empresa, é atendido diretamente por David G. Santos. No Brasil, Estados Unidos, Moçambique e Dubai não se consegue obter qualquer resposta (e apenas no Emirado se consegue chegar a um gravador de mensagens).
Como funciona o “período de nojo” dos espiões
Um especialista em informações explica ao Observador que Ruben Ribeiro pode não estar numa situação ilegal — pelo menos no que se refere às incompatibilidades dos espiões — porque quando saiu dos serviços secretos podia ainda não haver legislação que enquadrasse os impedimentos para funcionários que quisessem dedicar-se à vida privada. Tudo depende se saiu antes ou depois de agosto de 2014.
Ruben Ribeiro saiu do SIED em 2014 — disse ao Observador — podendo estar ou não abrangido pelo artigo 33º-D que atualizou a Lei-Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) com as incompatibilidades para os espiões que saem do SIS ou do SIED. Desde agosto de 2014 que os funcionários dos serviços de informações estão sujeitos a um “período de nojo” que pode chegar a três anos. Os impedimentos são estabelecidos “por despacho fundamentado do secretário-geral” do SIRP — o chefe das “secretas”, cargo que é ocupado por Júlio Pereira –, em caso de “manifesta incompatibilidade” com os serviços de informações ou com a “segurança e interesse nacionais”.
Posteriormente ao despacho do secretário-geral, o funcionário pode desistir de abandonar o serviço. Mas, no caso de optar pela desvinculação, e se for considerada a existência de impedimentos, tem de passar o “período de nojo” “integrado no mapa de pessoal da secretaria-geral da Presidência do Conselho de Ministros” numa categoria equivalente.
Artigo atualizado à 16h46 com informações sobre os escritórios da IntellCorp.