Madre Teresa de Calcutá foi canonizada este domingo no Vaticano perante uma multidão de mais de 100 mil pessoas. Para os crentes que se deslocaram até à Praça de São Paulo, a canonização da religiosa, apenas 13 anos depois da sua beatificação, não passou de uma mera formalidade. A vida austera e o trabalho que realizou junto dos mais pobres é para eles prova suficiente da sua santidade. Porém, para alguns, Madre Teresa continua a ser uma figura controversa, com milagres que continuam a ser contestados pelos mais céticos.
Anjezë Gonxhe Bojaxhiu nasceu a 26 de agosto de 1910, em Escópia (capital da Macedónia, então parte do Império Otomano), no seio de família católica de origem albanesa. Fascinada com as histórias dos missionários, decidiu que iria dedicar a sua vida à religião quando tinha 12 anos, depois de rezar à Virgem Negra de Letnice, que costumava visitar.
Destinada à vida religiosa, partiu aos 18 anos para a Irlanda, onde integrou as Irmãs de Nossa Senhora do Loreto, em Dublin. Foi aí que escolheu o nome que a haveria de seguir para toda a vida — Teresa, em homenagem à carmelita descalça Teresa de Lisieux. Nunca mais voltou a ver a sua família.
Chegou à Índia em 1929, ainda como noviça, e começou por trabalhar como professora, ensinando Geografia numa escola de raparigas — a St. Teresa’s School –, que ficava perto do convento, em Darjeeling. Foi professora durante cerca de 20 anos até que, em setembro de 1946, descobriu a sua verdadeira vocação durante a viagem anual para Calcutá, onde costumava fazer um retiro. “Tinha de deixar o convento e ajudar os pobres, vivendo no meio deles. Era uma ordem. Falhar seria quebrar a fé“, lembrou mais tarde.
Aos 37 anos, Teresa mudou-se para os subúrbios de Calcutá para ensinar os mais pobres e prestar cuidados básicos, ganhando o nome de “santa dos esgotos”. Começou a usar um simples sari branco e azul e, em 1951, fundou com antigas alunas as Missionárias da Caridade. No ano seguinte, a descoberta de uma mulher moribunda à beira de uma estrada levou-a a pressionar as autoridades da cidade para que lhe arranjassem um velho edifício onde pudesse a receber os doentes que os hospitais se recusassem a receber.
“Uma morte bonita é, para as pessoas que viveram como animais, morrer como anjos — amados, queridos”, disse.
Seguiram-se casas para receber leprosos, órfãos, mães solteiras e seropositivos. Inicialmente fundada com 13 irmãs, a congregação das Missionárias da Caridade expandiu-se para outros países, como Albânia, Rússia, Cuba, Canadá, Palestina, Bangladeche, Austrália e Estados Unidos da América. Pelo seu trabalho, reconhecido no mundo inteiro, recebeu em 1973 o Prémio Templeton, atribuído a um indivíduo que tenha “contribuído para afirmar a dimensão espiritual da vida”, de acordo com o site do galardão. Em 1979, foi distinguida com o Prémio Nobel da Paz.
Madre Teresa morreu a 5 de setembro de 1997, na casa-mãe da sua congregação em Calcutá, o Motherhouse Convent, enquanto preparava um serviço fúnebre em honra da Princesa Diana, que tinha morrido uma semana antes, a 31 de agosto. O seu trabalho missionário persiste através das irmãs Missionárias da Caridade, hoje espalhadas por todo o mundo, que seguem o seu exemplo de caridade e de amor ao próximo.
“O que nós fazemos pelos pobres é uma gota de água no oceano: mas se o não fizéssemos, se não deitássemos no oceano essa gota, ao oceano faltaria algo, faltar-lhe-ia essa gota.”
A “santa dos esgotos” que nem todos souberam amar
Quando em 1979 recebeu o Prémio Nobel da Paz, Madre Teresa chocou a plateia ao denunciar o aborto como “a maior força de destruição da paz” e “uma morte direta pela própria mãe”. Radical em algumas questões, a religiosa sempre se mostrou contrária ao uso de contracetivo e ao divórcio — opiniões que nem sempre foram bem recebidas pelos círculos mais liberais.
Alguns dos seus críticos acusaram-na também de tentar converter aqueles que ajudava ao catolicismo, uma versão da história que as Missionárias da Caridade sempre procuraram negar. “Ela cuidava de toda a gente como o mesmo espírito, quer fosse muçulmano ou sikh“, disse à CNN Kumar, uma sikh que chegou a conhecer Madre Teresa. “Quando rezava com ela, ela dizia-me: ‘Vem para a capela e senta-te à tua maneira, que eu sento-me à minha. Vamos dizer as nossas orações juntas.”
Outros defendem que a santidade de Madre Teresa não passa de um mito, uma opinião em parte fundamentada pela falta de condições das instalações geridas pelas Missionárias da Caridade e de transparência no que diz respeito aos fundos recebidos, que muitos acreditam serem usados noutros locais em vez de serem utilizados para melhorar a vida daqueles que as irmãs ajudam.
Hemley Gonzalez trabalhou de perto com a congregação em 2008, altura em que se voluntariou para trabalhar com as Missionárias da Caridade em Calcutá. À CNN, Gonzalez descreveu o que viu como uma “cena tirada de um campo de concentração da Segunda Guerra Mundial”. Nenhum dos voluntários tinha treino médico, e não havia enfermeiras ou médicos; as agulhas eram reutilizadas depois de serem passadas por água, e os doentes e moribundos tomavam banho em água gelada. Quando questionou porquê, a única resposta que recebeu foi: “É assim que Jesus quer”. Quando se ofereceu para pagar o aquecimento, disseram-lhe: “Não fazemos isto aqui”.
No famoso artigo “O Demónio de Calcutá”, o jornalista Christopher Hitchens chegou mesmo a afirmar que as palavras de Madre Teresa são a prova de que não pretendia ajudar os mais pobres. De acordo com Hitchens, Teresa terá inclusive mentido a alguns dos seus apoiantes sobre o destino das suas contribuições. Apesar das críticas ferozes, o jornalista foi o único a ser chamado ao Vaticano como testemunha nos processos de beatificação e canonização da religiosa.
Já Aroup Chatterjee, um outro crítico, afirma que a imagem de Madre Teresa foi deturpada. O médico acredita que o número de pessoas que recebem auxílio das Missionárias da Caridade não tão grande quanto os ocidentais são levados a acreditar.
Uma canonização precoce
Tradicionalmente, o processo de beatificação só pode ser iniciado cinco anos após a morte do candidato. Este período de espera serve para garantir que o indivíduo tem uma reputação de santidade que perdura ao longo dos tempos, mas pode ser dispensado pelo Sumo Pontífice. Na maioria dos casos, porém, o processo só começa várias décadas depois. Com Madre Teresa não foi bem assim.
Para os fiéis, a santidade de Madre Teresa sempre foi mais do que clara, ainda mesmo em vida. Por esse motivo, logo após a sua morte, em 1997, começaram a pressionar o Vaticano para que a religiosa fosse beatificada. Em 1999, João Paulo II concedeu uma dispensa especial e o processo começou. Muitos acreditam que o Papa dispensou o período de espera por causa da reputação de Madre Teresa, conhecida pelo seu trabalho junto dos mais pobres.
Curiosamente, os cinco anos de espera só foram dispensados por duas vezes: em 1999, com Madre Teresa, e em 2005, com o próprio João Paulo II. O Papa foi beatificado por Bento XVI apenas um ano depois da sua morte, perante uma multidão de 900 mil pessoas.
A beatificação foi anunciada por João Paulo II em 2002, depois de um milagre atribuído a Madre Teresa, após a sua morte, ter sido verificado e aprovado. A religiosa terá curado a indiana Monica Besra, de 30 anos, de um tumor no estômago, uma cura para a qual parece não existir “explicação científica”, de acordo com o Vaticano. A cerimónia decorreu no ano seguinte, em 2003.
O passo seguinte, a canonização, foi decretado mais de dez anos depois da beatificação pelo Papa Francisco, em março de 2016. O anúncio foi feito depois de a “cura extraordinária e inexplicável” do brasileiro Marcilio Haddad Andrino ter sido reconhecida como milagre. Marcilio foi internado em outubro de 2008 com vários tumores no cérebro. Apesar do seu estado grave e da aparente ineficácia dos medicamentos, os seus familiares nunca deixaram de rezar a Madre Teresa de Calcutá.
“Tinha uma relíquia da Madre e colocava-a na cabeça do Marcilio, nos pontos em que o médico tinha apontado os abcessos”, contou mais tarde a mulher, Fernanda. “Além de fazer a oração que tinha na relíquia, eu também pedia, dizia palavras que brotavam do meu coração.” Mas a situação de Marcilio foi piorando e, a 9 de dezembro, foi levado para os cuidados intensos. Antes, pediu à mulher que rezasse, que rezasse muito, e que pedisse por ele à Madre.
No dia seguinte, os exames revelaram que os oito tumores que lhe tinham sido diagnosticados tinham diminuído. Três dias depois, já só restavam as cicatrizes.
De acordo com Fernanda Andrino, o médico ficou surpreendido e garantiu que não podiam ter sido os tratamentos a causar a regressão dos tumores. Incrédulo, o pai de Marcilio insistiu e perguntou se havia alguma coisa que pudesse explicar a súbita cura do filho. “Alguém lá em cima gosta muito de vocês”, respondeu-lhe o especialista.
Madre Teresa voltou a abençoar o casal menos de um ano depois. Devido aos tratamentos e a um transplante renal quando tinha 18 anos, Marcilio tinha 1% de hipóteses de ter filhos. Porém, contra todas expectativas, Fernanda ficou grávida. “Aí vimos a extensão do milagre”, afirmou Marcilio.
Um milagre questionável
Apesar de terem passado 13 anos da beatificação de Madre Teresa de Calcutá, há quem ainda duvide da veracidade do milagre operado sobre Monica Besra. Apesar de a indiana garantir que foi a Madre que a curou de um cancro, os especialistas defendem que a cura de Monica se deve única exclusivamente à ciência.
Monica Besra foi diagnosticada com um tumor no estômago em 1998. Durante a doença, Monica, que estava tão mal que nem conseguia andar, foi ajudada pelas Missionárias da Caridade. Quando estava a ser levada para um pequeno quarto, passou por uma foto da religiosa. Quando parou para olhar para ela, sentiu, segundo o seu próprio relato, uma “luz ofuscante” a atravessar todo o seu corpo. Rezou à Madre e, durante a noite, acordou a sentir o seu corpo mais leve, como se o tumor tivesse desaparecido.
“Fiquei tão contente que quis dizer a toda a gente: ‘Estou curada!'”, relatou recentemente durante uma entrevista em sua casa, na aldeia de Nakur, no leste da Índia. “Tomei os medicamentos dos médicos, vomitei-os e tinha muitas dores. Mas rezei à Madre Teresa com todo o meu coração. A Madre abençoou-me e hoje estou saudável“, contou à CNN.
Contudo, alguns especialistas contestam o seu relato e acreditam que a sua cura se deve aos medicamentos que tomou. Há até quem fale em fraude. De acordo com alguns médicos, Mona Besra nem tinha cancro, mas um tumor causado por um quisto que desenvolveu devido a uma tuberculose. Prahir Ghosh, secretário-geral da Secretary of Science and Rationalists’ Association of India é um deles. “A nossa organização não acredita em nenhuma espécie de milagre“, frisou também à CNN.
Quem também parece não acreditar no milagre de Madre Teresa é o próprio marido de Mona. Numa entrevista à Time em 2002, Seiku Murmu deixou claro que a mulher “foi curada por médicos e não por um milagre”. “É muito barulho por nada”, garantiu. Mais recentemente, porém, Seiku voltou atrás na palavra negando ter feito qualquer tipo de afirmação, anunciando que acredita na versão da sua mulher.