O povo vs. Washington.

“Estamos a dar o poder ao povo”

Nada mudou: o discurso inaugural de Donald Trump como novo Presidente americano podia ter sido feito durante a campanha eleitoral. Mais uma vez, Trump assumiu-se como representante dos cidadãos americanos contra as elites políticas e económicas. “A cerimónia de hoje tem um significado muito especial, porque hoje não estamos apenas a transferir o poder de uma administração para a outra, ou de um partido para o outro. Estamos a transferir o poder de Washington, D.C., e a dá-lo a vocês, o povo”. Aliás, Trump voltou a repetir a mesmíssima frase que usou na noite 8 de novembro, quando ganhou as eleições: “Os homens e mulheres esquecidos nunca mais vão ser esquecidos”.

Insistindo na ideia de que só agora o povo norte-americano estará verdadeiramente representado no governo, Trump criticou o establishment de forma violenta. E quem é o establishment? Simples: são eles. “O sistema protegeu-se a si próprio mas não os cidadãos do seu país. As vitórias deles não foram as vossas vitórias. Os triunfos deles não foram os vossos triunfos. E enquanto eles celebravam na capital do nosso país, as famílias em dificuldades em todo o nosso país tinham pouco que festejar”, disse Trump, a poucos passos de Barack Obama (um dos “eles“), a quem antes tinha agradecido por ter sido “magnífico” no processo de transição do poder.

“Os politicos prosperaram, mas os empregos faltaram. E as fábricas fecharam”, disse Trump. “Nunca mais vamos aceitar políticos que são só conversa e nada de ação, sempre a queixar-se sem fazer nada relativamente aos problemas”. A simpatia com que se dirigiu aos antigos presidentes no início do discurso foi substituída em poucos minutos por ataques diretos às políticas anteriores à sua eleição.

Agora, garantiu, “as coisas vão começar a mudar”. E regressou à retórica populista: “Este é vosso momento. Pertence-vos”. E insistiu: “O que verdadeiramente importa não é que partido controla o nosso governo, mas se o nosso governo é ou não controlado pelo povo. O dia 20 de janeiro de 2017 será recordado como o dia em que as pessoas se tornaram novamente nos governantes desta nação”.

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Sobre este novo poder do povo, um dos temas que mereceram mais destaque durante os 16 minutos que durou o discurso de Trump, o novo presidente dos EUA não foi contido. “Toda a gente vos está a ouvir agora. Vieram dezenas de milhões para fazer parte de um movimento histórico, um movimento como o mundo nunca viu antes.”

A segurança da América e dos americanos

“Esta carnificina americana acaba aqui e agora”

Foi a expressão mais marcante do discurso: “carnificina americana”. Conhecido apoiante do direito dos americanos a terem armas, Donald Trump dedicou uma parte significativa da sua retórica à criminalidade nos EUA. “O crime, os gangues, as drogas, que roubaram tantas vidas e tiraram ao nosso país tanto potencial… Esta carnificina americana acaba aqui e agora”, disse Donald Trump. Mesmo que os números mostrem uma progressiva diminuição das taxas de crime ao longo dos últimos anos (uma das excepções foi Chicago, a cidade de Obama), o último ano ficou marcado por um conjunto de crimes muito mediáticos, como o tiroteio em Austin.

A nível internacional, houve referências à NATO, ainda que implícitas. “Durante décadas”, criticou Trump, “subsidiámos os exércitos de outros países enquanto permitíamos a triste diminuição do nosso exército. Defendemos as fronteiras dos outros e recusámo-nos a defender as nossas”.

O novo Presidente americano deixou ainda uma afirmação que pode ser interpretada como mais uma abertura a futuras relações de proximidade com um novo aliado, a Rússia: “Vamos reforçar velhas alianças e formar novas”.

O combate ao extremismo islâmico

“Vamos erradicar completamente o terrorismo islâmico da face da Terra”

A proposta parece simples: “Vamos erradicar completamente o terrorismo islâmico da face da Terra”. O método também parece harmonioso: “Vamos procurar uma relação de amizade e boa vontade com os países do mundo” e “unir o mundo civilizado contra o terrorismo”.

Tudo isto, referiu Trump, tendo sempre em conta “que é direito de todos os países pôr os seus interesses em primeiro lugar”. Contrariamente ao defendido pelos neoconservadores do tempo de George W. Bush, Trump considera que os EUA não devem forçar os outros países a implantarem a democracia pela força das armas americanas: “Não queremos impor o nosso estilo de vida a ninguém, mas antes deixá-lo brilhar como exemplo. Vamos brilhar para todos nos seguirem”.

A importância do protecionismo

“América primeiro, América primeiro”

A defesa do protecionismo foi uma das principais bandeiras de Donald Trump em campanha — e também ocupou uma grande parte do discurso inaugural. “De hoje em diante, vai ser só América primeiro, América primeiro.” Depois de ter forçado um acordo com a Carrier, uma fábrica de equipamentos de ar condicionado, impedindo-a de desviar mil postos de trabalho dos EUA para o México, e de ter acusado a Ford de querer despedir trabalhadores norte-americanos, Trump voltou a defender a manutenção dos empregos norte-americanos, criticando as empresas que retiraram fábricas do país. “Fizemos outros países ricos enquanto a riqueza, a força e a confiança do nosso país se dissipou no horizonte. Uma a uma, as fábricas encerraram e deixaram o nosso país sem pensar nos milhões e milhões de trabalhadores americanos que deixaram para trás”, disse no seu discurso.

“Cada decisão que tomarmos em termos de comércio, impostos, imigração e negócios estrangeiros vai ser feita para beneficiar os trabalhadores e as famílias americanas. Temos de proteger as nossas fronteiras do saque de outros países, que estão a fazer os nossos produtos, a roubar as nossas empresas e a destruir os nossos empregos”, afirmou ainda, com grande dureza retórica, garantindo que vai “reconstruir o país”.

A promessa que deixou no discurso foi que, “de hoje em diante, uma nova visão vai governar a nossa terra”: “De hoje em diante, vai ser apenas a América primeiro, a América primeiro”. E, contra todas as críticas a este modelo económico, garantiu: “O protecionismo vai conduzir à prosperidade e à força”.

O novo Presidente prometeu novamente uma política de investimento em infraestruturas, que terá de negociar com o Congresso, e que poderá ascender a um bilião de dólares (que poderão misturar fundos públicos e privados): “Vamos trazer os nossos empregos de volta, vamos trazer as nossas fronteiras de volta. Vamos trazer de volta a nossa riqueza e vamos trazer de volta os nossos sonhos. Vamos construir novas estradas e auto-estradas e pontes e aeroportos e túneis e caminhos de ferro por toda a nossa nação”. E concluiu: “A América vai começar a ganhar outra vez, vai ganhar como nunca”.

O apelo à união entre raças

“Negros, castanhos ou brancos. Todos temos o mesmo sangue”

O último grande tema do discurso de Trump foi a unidade dos americanos, com muitas referências bíblicas e religiosas. “Quando a América se une, a América é totalmente imparável”, afirmou. “Partilhamos um só coração, uma só casa e um só destino glorioso”.

Comprometendo-se com todos os americanos, Trump evitou referir-se às discórdias internas provocadas pela campanha presidencial (uma das mais duras de sempre), exceto numa pequena expressão entre referências bíblicas. “A Bíblia diz-nos quão bom e agradável é quando o povo de Deus vive em unidade. Temos de nos expressar abertamente, debater os nossos desentendimentos honestamente, mas procurar sempre a solidariedade”.

O novo Presidente tem sido criticado por ter escolhido uma administração com pouco equilíbrio racial: o governo Obama tinha 48% de afro-americanos e latinos, enquanto o governo Trump tem apenas 14%. No discurso de tomada de posse, usou a retórica para apelar à união: “É tempo de lembrarmos aquela sabedoria antiga que os nossos soldados nunca vão esquecer — que quer sejamos negros, castanhos ou brancos, todos sangramos o mesmo sangue vermelho dos patriotas”. Mais: “Todos nós beneficiamos das mesmas liberdades gloriosas e todos saudamos a mesma grande bandeira americana”.