São 17h01, lá dentro ouvem-se passos e a porta abre-se. Um senhor sorri. A esta hora nem parece o Belcanto. As mesas estão despidas e as toalhas brancas caem tristes nas mesas redondas. Na cozinha, Rodolfo Tristão está ao telefone andando de um lado para o outro. Faz sinal com o dedo, demora ainda um pouco. Trata de assuntos importantes. Um rapaz passa com uma palete de águas minerais, estão a preparar o stock para esta noite. Casa cheia. Rodolfo desliga e convida para a cozinha, para o seu ambiente. David Jesus (braço direito do chefe José Avillez) está sentado a um canto com o computador à frente. Rapidamente Rodolfo traz uma cadeira e fica de pé. Ao fim de algum tempo a porta das traseiras abre-se. Começam a entrar alguns trabalhadores. Rodolfo divide-se nas atenções. Há coisas que só ele pode responder. Afinal, ele é o sommelier.

Começou na vida de hotelaria cedo, apesar das suas convicções adolescentes de um dia vir a ser médico. Ao mesmo tempo a carreira de futebolista profissional piscava-lhe o olho. Fabrício Martins conhece-o desde os tempos dos balneários, são amigos de infância, e passados quase 24 anos ainda se lembra do antigamente: “Sempre se diferenciou das outras crianças porque levava o futebol muito a sério”, diz. Rodolfo jogou futebol de 11 na Azambuja, mais tarde no Cartaxo e na União Desportiva de Santarém. Foi campeão distrital e jogou a nível nacional. Quando foi para a faculdade mudou-se para o clube Quinta dos Lobos, em Carcavelos.

“No fundo ele nunca largou a carreira de futebol”, recorda Fabrício, mas foi a restauração que captou a sua atenção quando, ainda jovem, ajudava no café dos avós no Cartaxo. André, o irmão mais novo, conta que “apesar de trabalharem os três no café, Rodolfo era o único que estava no atendimento ao público, e o que realmente gostava era de estar à frente do balcão a comunicar”.

Sempre de bola no pé e a correr para as aulas, “não tinha rodeios para dizer o que queria” e para o seu irmão não foi surpreendente que se desse bem nesta área, já que não tinha problemas em relacionar-se: “Quando aparecia um estranho ele começava a falar”. No sangue pairavam ainda outros indícios do percurso que se avizinhava: em jovem ajudava nas vindimas da família, mas “de forma lúdica”.

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Rodolfo Tristão, Belcanto, escanção, Lisboa, 2017,

O escanção de 37 anos dá ainda aulas de Enogastronomia na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril. © HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

A restauração chegou aos 21 anos, quando o escanção agora com 37 começou a frequentar a Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril (ESHTE), onde atualmente dá aulas de Enogastronomia. “Tive a sorte de ter o professor Mário Louro desde 1999, que me abriu as portas a este mundo”, reconhece Rodolfo Tristão.

“Era aluno de dezanoves e vintes, e isto diz tudo”, brinca Pedro Aguiar que, a par de Rodolfo, era o aluno mais velho da turma e por isso, igualmente o que “levava mais a sério as aulas”. Também ele reconhece a importância de Mário Louro. Em poucas palavras, diz, “incutiu-lhe o bichinho”.

Carlos Costa, docente na ESHTE, recorda Rodolfo como um aluno que “respirava vinhos” e “já estava muito nessa onda, nem conseguia esconder”. Destacava-se dos colegas por trazer sugestões de vinhos novos, por estar a par das tendências e até do que estava do outro lado do mundo. “Notava-se que não era uma pessoa que estava a fazer o curso só porque sim, tinha uma paixão latente e não havia qualquer dúvida quanto ao futuro.”

No mundo profissional Rodolfo começou por ser responsável pelo serviço de sala, mas não passaram muitos meses até assumir o controlo da escolha de vinhos. Nos últimos dez anos cimentou-se como escanção de vinho e também de café, até lá “dividia funções”. Ser chefe de sala foi vital para ser um bom sommelier, saber os timings e conhecer o serviço, conta o escanção, na cozinha do Belcanto. O telefone toca. Espreita quem é mas não atende.

“Falávamos a mesma língua”, lembra Pedro Aguiar, que mais tarde foi novamente colega de Rodolfo, primeiro numa empresa de eventos e depois na Casa da Dízima, em Oeiras. A par de muitas provas de vinhos e jantares gastronómicos, são também amigos. Pedro só não se atreve a oferecer-lhe vinhos. “Nunca na vida!”, diz, divertido. “Ele é que me oferece a mim.”

“Que país vai desejar provar hoje no seu menu?”

Antes de chegar ao Belcanto, Rodolfo Tristão passou algum tempo em Londres, e num mercado tão exigente teve a oportunidade de realizar vários estágios. Apresentou cartas com mais de duas mil garrafas à escolha. Tinha liberdade para escolher, tal como os seus clientes, a quem perguntava frequentemente: “Que país vai desejar provar hoje no seu menu?”.

Passou por aquele que já foi considerado o melhor restaurante do mundo, o Celler de Can Roca, em Girona, e como bom português foi “carregado de vinhos”. No dia da sua chegada estava agendada uma formação de vinhos dada por um sommelier espanhol, formação essa que lhe disseram, à chegada, ter sido cancelada para que pudesse ser ele próprio a elucidar sobre a enologia dos vinhos portugueses, ao invés dos espanhóis. “Quis levar a nossa bandeira e jogar para a liga dos campeões”, afirma orgulhoso.

A família sempre o acompanhou. Margarida Ferreira conheceu-o na Escola de Hotelaria através de “amigos em comum” e não passou muito tempo até ficarem juntos (estão casados há 10 anos). Desafiada a apontar os desafios da profissão, aponta a “constante mudança” e a necessidade contínua de “estudar, aprofundar conhecimentos e conhecer novas quintas e produtores”. “Temos um mundo um inteiro para explorar”, sorri.

Antes de ir para a Escola de Hotelaria, Rodolfo “bebia apenas Coca-Cola”, conta o irmão mais novo, e nem sabia que existia um mundo dentro dos vinhos. Atualmente a realidade não podia ser mais diferente: conhece os vinhos como se fossem pessoas, atribui-lhes personalidade e adequa-os a cada cliente. Para além de obedecer a muito rigor, a harmonização de vinhos é para si um trabalho pessoal, onde é preciso respeitar os gostos de cada um e tentar, todas as noites, proporcionar momentos únicos de combinações improváveis.

Rodolfo Tristão, Belcanto, escanção, Lisboa, 2017,

Em 2010 o escanção publicou o livro “À Descoberta do Vinho” (Prime Books). © HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

Considera-se “workaholic” porque faz exatamente aquilo que gosta e “perde a noção do tempo”. A maior pressão que sente é precisamente a das horas, quando repara no relógio e percebe que já tem de estar a ir para outro lugar. Já passaram dois anos desde as suas últimas férias “a sério” e nos primeiros dias só teve “dores de cabeça”, diz.

Entre horários repartidos e aulas na Escola de Hotelaria, é “bastante difícil conciliar os horários”, diz Margarida. Casada com um entendido no assunto, também ela admite, divertida, que “nem se atreve a oferecer uma garrafa” ao marido. E que “em casa de ferreiro, espeto de pau”, isto é, no ambiente doméstico não bebem vinho regularmente, “apenas nos jantares com amigos”.

Ligado ao setor há 18 anos e professor de Gestão de Alimentos e Bebidas na ESHTE, Carlos Costa afirma que Rodolfo não é simplesmente um escanção mas, mais do que isso, um “wine director“, porque o seu know-how vai “mais além”. Como “wine director” as suas responsabilidades são acrescidas: para além das funções diretivas na parte dos vinhos e bebidas, há a coordenação e treino de equipas, as encomendas e compras de vinho e a gestão do orçamento no setor.

Com um master em escanção completado recentemente, Rodolfo Tristão já trabalhou com muitos nomes da cozinha e orgulha-se de manter relações de amizade com os chefes e os seus projetos. A comida é fundamental, já que, por vezes, “um vinho por si só pode cansar”, diz. Os primeiros três meses no Belcanto, onde está desde fevereiro de 2016, foram uma adaptação ao modo como a equipa, que “era a mesma desde há algum tempo”, funcionava.

Hoje, abraça o projeto ao lado do chefe José Avillez — que trata simplesmente por “José” — no primeiro restaurante de duas estrelas Michelin em Lisboa, considerado um dos 100 melhores do mundo. Conhece a casa, a comida e os clientes. Está exatamente onde gostaria de estar e faz aquilo que o apaixona.

Já anoiteceu, as mesas estão postas e os trabalhadores prontos. O serviço vai começar. A música está ligada e a luz não fere os olhos. É mais uma noite de degustação para os que, pela primeira vez, vão entrar neste lugar. E mais um dia para os que podem proporcionar essa experiência.

Texto editado por Ana Dias Ferreira.