A celebração do dia internacional da mulher é o pretexto para a realização de um debate, esta quarta-feira, promovido pela Ordem dos Advogados sobre igualdade de género no meio empresarial. Em causa está uma proposta de lei aprovada pelo Governo, que está em discussão na Assembleia da República, sobre a imposição de quotas nos órgãos de administração e de fiscalização não só das empresas públicas, como também das empresas cotadas em bolsa. A questão da paridade e da igualdade de género é habitualmente consensual, mas uma da oradoras — mulher –, a constitucionalista Teresa Violante, não acredita que a via legislativa, “mais agressiva”, seja o caminho certo para mudar mentalidades.

Ao Observador, a constitucionalista especialista em direito comparado nota que não é, por princípio, “contra quotas enquanto instrumentos de discriminação positiva”, mas considera que “a existência de quotas não é por si condição segura de que vamos alcançar a igualdade efetiva”. O problema, segundo Teresa Violante, não reside na imposição destas metas nas empresas públicas, nas quais o Estado assume simultaneamente o papel de legislador e de acionista, mas sim na imposição de quotas em empresas privadas cotadas em bolsa, sobretudo numa altura em que “o mercado bolsista enfrenta muitos dificuldades”.

Em cima da mesa está uma proposta de lei que estabelece o regime da representação equilibrada entre mulheres e homens nos órgãos de administração e de fiscalização das empresas do setor público empresarial e das empresas cotadas em bolsa. A proposta foi aprovada em Conselho de Ministros no início de janeiro e deu de seguida entrada na Assembleia da República, estando a ser discutida em sede de comissão dos assuntos constitucionais desde meados de fevereiro, recebendo pareceres de várias entidades. Antes de entrar em vigor ainda terá de passar pela discussão e aprovação em plenário e depois seguir para o gabinete do Presidente da República, para promulgação.

Se entrar em vigor tal como está desenhada, a ideia é que a proporção de pessoas de cada sexo designadas para cada órgão de administração e fiscalização de cada empresa não seja inferior a 33,3%, a partir de 1 de janeiro de 2018 para os casos das empresas públicas, e o mesmo deverá acontecer nas empresas cotadas em bolsa mas de forma mais gradual: 20% a partir de 2018, e 33,3% a partir de 2020.

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Paralelamente a esta proposta, o primeiro-ministro António Costa anunciou esta quarta-feira, durante o debate quinzenal, em pleno dia da mulher, que o Governo iria apresentar brevemente uma proposta, na concertação social, com vista à igualdade salarial entre homens e mulheres. António Costa aproveitou a ocasião para recordar que há duas “persistentes marcas” nas diferenças entre homens e mulheres, que passam, primeiro, pelo “acesso a funções de gestão” e, depois, pelas “desigualdades salariais”. Daí que o Governo tenha avançado com a proposta legislativa sobre a paridade nos cargos de decisão quer em empresas públicas, quer em empresas cotadas em bolsa, e se prepare para avançar com outra sobre as diferenças salariais.

Impor quotas é “ingerência muito forte” do Estado

Para a constitucionalista Teresa Violante, que vai integrar o painel de oradores no debate promovido pela Ordem dos Advogados sobre o tema, o problema é de “ingerência” do Estado nas empresas privadas. “A estatística diz que a média de representação [do género menos representados, neste caso, o feminino] nessas empresas é de 10% em média e o que esta proposta indica é que terá de aumentar até 2020 para 33,3%. Ou seja, num curto espaço de tempo o Estado vai ter uma ingerência muito forte no modo como as empresas privadas se organizam e escolhem os seus quadros“, diz ao Observador, lembrando inclusive as dificuldades que o sistema financeiro português tem tido nos últimos anos em manter 20 empresas cotadas em bolsa, no chamado Psi20.

Há outros mecanismos, para lá da via legal (que deve ser o último recurso), que podem ser usados e combinados entre si até se esgotarem todas as opções. É o caso, diz a constitucionalista, do “envolvimento voluntário das empresas, do softpower, de medidas autoregulatórias, ou da via reputacional, que passa por forçar as empresas a tornar pública a informação sobre as desigualdade, dando por exemplo conta à CMVM dessas mesmas desigualdades” e instituindo metas para caminhar progressivamente para um quadro empresarial mais paritário. O importante, diz, é “não legislar sem ter a certeza de que as outras vias foram esgotadas”.

É esse caminho que Teresa Violante diz poder não estar ainda esgotado. Lembrando que a proposta legislativa já vem sendo preparada desde o anterior governo, que chegou a aprovar resoluções em 2012 e em 2015, tendo sido celebrados acordos com empresas cotadas em bolsa para agirem nesse sentido, a constitucionalista aponta para dados da CMVM que dizem que, de 2010 a 2016, a taxa de feminização em Portugal aumentou cerca de 10% “sem imposições legais”, enquanto em Espanha, que impôs quotas, o aumento no mesmo período foi semelhante. Já o Brasil, diz, é um dos maiores exemplos de elevada taxa de feminização “sem nunca ter enveredado pelo caminho legislativo”.

De acordo com a especialista em direito comparado, seis países da Europa adotaram leis de imposição de quotas em empresas privadas, mas em nenhum a legislação foi “tão longe” como a que é agora proposta pelo Governo português, nomeadamente ao nível das sanções aplicadas. “Não encontramos no direito comparado sistemas sancionatórios tão elevados como este, sendo que na Alemanha, por exemplo, também há sanções semelhantes mas aplicam-se apenas a empresas grandes, com mais de 2 mil funcionários. Na lei em Portugal não há, para já, nenhuma clausula de salvaguarda”, diz, criticando a desproporção entre

“Vamos utilizar todo o arcaboiço legislativo para aplicar quotas a empresas que não têm a dimensão de outras empresas noutros países onde essas leis nem são aplicadas”, resume, sublinhando ainda que “o tribunal de justiça da UE sempre disse que o sistema de quotas nunca pode servir para recrutar mulheres que tenham mérito inferior a um homem, e que o recrutamento deve ser feito com base no mérito”.

Outras vozes contra. CMVM contra quotas, prefere auto-regulação

Esta não é, contudo, a primeira vez que a proposta de lei recebe críticas. No passado dia 18 de fevereiro, um dia depois de a proposta ter chegado à comissão dos assuntos constitucionais, Rui Rio discordou publicamente do timing para introduzir obrigações deste tipo às empresas. Falando num encontro empresarial no Algarve, o ex-autarca do Porto considerou que, na conjuntura atual, a obrigatoriedade de integrar mulheres nos órgãos de gestão era um “luxo saudável” a que as empresas não se podiam dar neste momento. “Peço desculpa às senhoras, que merecem o maior respeito”, afirmou, mas a obrigação de “ter mais senhoras ou mesmo mais homens é um luxo saudável que as empresas não podem ter nesta fase”, disse.

E em pareceres pedidos pelo Parlamento sobre a constitucionalidade e viabilidade da proposta sobre a fixação de quotas para empresas públicas e empresas cotadas em bolsa, as opiniões dividiram-se. Se, por um lado, entidades como a Ordem dos Advogados ou a Procuradoria-Geral da República não veem problemas de cariz jurídico ou constitucional com a aplicação das quotas de paridade, outras entidades como a CMVM opõem-se particularmente à extensão das quotas às empresas privadas cotadas em bolsa — defendendo antes a criação de outros mecanismos “regulatórios ou autoregulatórios” sem força de lei.

Para a Ordem dos Advogados, contudo, não há entraves ao princípio constitucional da igualdade. “Por entender que a proposta de lei concorre ativamente para a promoção da igualdade, concretamente da igualdade de género, ao mesmo tempo que procura criar condições para uma mais efetiva realização, entende por bem a Ordem dos Advogados sufragá-la, no seu essencial, aderindo ao núcleo medular do conteúdo normativo que veicula”, lê-se no parecer enviado ao Parlamento em meados de fevereiro.

Também a PGR tem opinião semelhante, escrevendo que “a iniciativa legislativa e o seu respetivo conteúdo normativo não parecem ofender qualquer princípio ou regra constitucional”, e rejeitando que a imposição de quotas seja uma forma de discriminação. “Não se considera discriminação a medida legislativa que beneficia certo grupo, desfavorecido em função de fator de discriminação, com o objetivo de garantir o exercício, em condições de igualdade, dos direito previstos na lei ou corrigir situação de desigualdade que persista na vida social”, lê-se no parecer.

A CMVM, contudo, no parecer enviado à AR a 17 de fevereiro, defende que, “nesta fase”, “o regime previsto na proposta de lei não deve ser aplicado às empresas cotadas em bolsa, em relação às quais faria mais sentido adotar um mecanismo regulatório ou autoregulatório de lógica de comply or explain, sugerindo mesmo que esse sistema, que funcionaria com objetivos e metas definidos, pudesse vir a ser estipulado através de uma resolução do Conselho de Ministros.

Para a comissão de mercado de valores mobiliários, o problema maior prende-se precisamente com a imposição de quotas em empresas privadas cotadas em bolsa.

Esta matéria seria mais adequadamente tratada num quadro global (…) e objeto de reflexão alargada, nomeadamente com os demais critérios julgados relevantes para o desempenho de funções neste tipo de sociedades, como a qualificação, a experiência e/ou a idoneidade das pessoas em causa”.