É um lugar-comum dizer-se que cada viagem começa com o primeiro metro percorrido. Há um filósofo chinês da antiguidade, daqueles que os mais eruditos citam, mas que não me recordo, que diz que cada viagem começa com o primeiro metro percorrido. É evidente que sim e no caso desta Expedição Todo Terreno Peugeot 3008 Lisboa-Dakar-Bissau, ao primeiro metro seguiram-se quase sete centenas de quilómetros, logo na primeira jornada. E uma das mais famosas travessias marítimas que os viajantes podem fazer: cruzar o Estreito de Gibraltar, para ligar Espanha a Marrocos, deixando a Europa pelo seu ponto mais a sul, na vila de Tarifa, para entrar em África pelo ponto mais a norte do continente, na cidade de Tânger.

Há pouco mais de uma década, só para atravessar o “estreito”, como se diz, o mais prudente era reservar boa parte do dia e não contar fazer mais nada, senão isso. Os ferries que faziam a ligação entre o porto espanhol de Algeciras e o marroquino de Tânger eram tão grandes quanto vagarosos. E transportavam sempre imensos camiões, que largavam apenas o atrelado dentro do navio, para no final da viagem serem retirados por um tractor do porto de chegada. Só por isso, as operações de embarque e desembarque levavam algumas horas. E os próprios navios também ajudavam a prolongar a viagem, pois eram lentos.

A cereja em cima do bolo era a morosidade dos trâmites fronteiriços à chegada a Tânger, onde era frequente atracarem quase em simultâneo dois ou três ferries, que de uma assentada desembarcavam milhares de pessoas e largas centenas de viaturas, entupindo por completo o posto fronteiriço, que mesmo cheio de gente para atender os passantes, não conseguia dar vazão às solicitações com celeridade.

Quando finalmente recebíamos ordem de marcha e nos abriam os portões para entrarmos em Marrocos, o mais certo era estarmos cansados e desejosos de desaparecer dali quanto antes. Nem que fosse para recuperar o tempo perdido, pois havia sempre a secreta esperança que “desta vez” seríamos os primeiros.

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Tânger: a entrada do Mediterrâneo e a Europa

O “milagre” aconteceu quando um armador alemão se propôs introduzir nesta rota um tipo de operação diverso: em vez dos grandes ferries, cheios de camiões, lançou um serviço com catamarãs rápidos, onde apenas são transportados passageiros e automóveis ligeiros, além de autocarros. Os catamarãs da FRS foram os primeiros e o sucesso da ideia levou a que outros armadores se aventurassem, alargando a oferta ao ponto de fazer pensar se ainda fará sentido a ideia de romper um túnel pelos 20 e tal quilómetros do “estreito”? Navegando a 30 nós de velocidade, agora chegamos a Tânger em pouco mais de meia hora. A abertura, há alguns anos de um novo porto comercial entre Tânger e Ceuta, reduziu imenso a actividade nesta fronteira. Entre embarcar no ferry da FRS em Tarifa e começarmos a conduzir o Peugeot 3008 pelos boulevards de Tânger, não se passou mais de uma hora e um quarto.

Desconhecida e cheia de encanto

Tânger é uma das cidades mais cosmopolitas e curiosas que podemos conhecer. E está mesmo aqui ao lado, o que faz dela um destino perfeito para uma viagem rápida, uma “escapadinha”, com a vantagem de, em poucas horas, mudarmos de continente e entrarmos numa realidade completamente diversa. Quando a noite cai sobre Tânger, olhamos para norte e vemos as luzes da Europa a brilhar, mesmo ali em frente.

É isso mesmo que fazem, desde há longos anos, imensos africanos que se arriscam rumo ao norte, em busca desta miragem. Lawrence, um jovem nigeriano que conhecemos a vaguear pela cidade, confessou-nos que a Europa é mesmo uma miragem, pois todos os dias olha para o Velho Continente sem o conseguir alcançar, “já lá vão perto de dois anos”, cheios de sofrimento, “com muitos sacrifícios, muita fome e algumas passagens pela polícia, que não foram nada agradáveis”, conta-nos, desejoso por uma conversa e, se possível, algo mais, que “as dificuldades são mais do que muitas”. Perguntamos-lhe porque se sujeita a tudo isso e encolhe os ombros, enquanto nos responde: “O que ficava a fazer na Nigéria? Melhor não podia ser…”

Lawrence e Alexandre Correia

Quando lhe estendemos uma nota de 20 Dirhams, qualquer coisa como dois euros, os olhos de Lawrence até brilharam. E na mão tinha ficado outra de 50. Não conseguimos resistir a oferecê-la também. E tivemos de prosseguir de imediato o nosso passeio, para não fazermos este jovem nigeriano sentir-se mais envergonhado, de lágrimas nos olhos. Para ele, acreditamos que tenha sido uma ajuda preciosa. Para nós, foram apenas menos alguns cafés. Poucos, porque aqui o café é caro e o que mais se bebe muito é chá de menta, cheio de açúcar, para os pobres, coitados, enganarem a fome e receberem um pico de energia a cada copo, mal sabendo que esse é um dos factores que os leva a ficarem desdentados ainda muitos jovens. Lawrence nem para um chá de menta ganha. Mas ainda não perdeu os dentes e, quando fizemos uma fotografia juntos, diante do atelier de uns artesãos de peças em ferro e latão, mostrou um sorriso perfeito. Estava animado. E tinha ganho o dia!

O nosso encontro com Lawrence foi quase o último momento da nossa permanência em Tânger. Chegámos pela hora do jantar e partimos ao início da tarde seguinte. Desde logo revigorados da tirada inicial. Mas bastante satisfeitos por mais esta visita à cidade que deu o nome às laranjas tangerinas, os doces citrinos que estão omnipresentes em todas as bancas dos mercados que enchem de cor e alegria as ruas, num ritual diário, de manhã até à noite.

Encantadora, Tânger é uma cidade cheia de história e onde essa memória do passado, desde o mais longínquo ao mais recente, nem sempre é evidente. Isso e o seu ambiente cosmopolita, que a torna especialmente acolhedora. A maioria dos que ali chegam prosseguem de imediato para outros destinos e o mais frequente é escutarmos que “não há tempo a perder, que não tem interesse nenhum”. Que mentira cruel, mas os que assim pensam, coitados, ficam na ignorância e nem sabem o que perdem!

Ao longo dos tempos, por esta cidade passou uma boa parte do mundo, desde os fenícios e cartagineses aos mouros, do antigo reino da Mauritânia, passando pelos romanos e berberes, mas também vândalos do norte da Europa, que ainda chegaram antes dos portugueses. As nossas caravelas só à terceira tentativa, em 1471, tiveram sucesso.

Volvidos 90 anos, “oferecemos” Tânger à coroa britânica, no “pacote” do dote de casamento de Catarina de Bragança com o rei Carlos II de Inglaterra, que 23 anos depois renunciou a esta prenda, ordenando a retirada da cidade, por considerar ser uma presença desnecessária, face aos encargos da guarnição que a protegia. Passaram-se cerca de dois séculos e meio até aos britânicos regressarem, para partilharem a liderança de Tânger com Portugal, Espanha, França, Estados Unidos da América, Rússia, Bélgica, Holanda e, um pouco mais tarde, ainda a Itália. Acordada em 1925, no termo de um longo processo negocial, que se arrastou por décadas, Tânger tornou-se numa Concessão Internacional e a influência de todos os que nela mandavam modernizou-a e conferiu-lhe um forte encanto, que atraiu as elites. Foi uma fase em que toda a gente que “era alguém” passava por Tânger, muitos até por demoradas temporadas.

Rue du Portugal

Restam dois grandes hotéis, que remontam a esses tempos de elegância e cosmopolitismo. Um é o “velho” Continental, mesmo em frente ao porto. O outro é o El Minzah, que domina a mesma vista, mas desde o alto da cidade antiga, resguardada pelos muros da medina. As paredes de ambos estão repletas de fotografias que recordam essa época gloriosa. Nelas reconhecemos figuras famosas do mundo do cinema, da literatura, da política ou simplesmente daquilo a que um dia se começou a chamar jet-set.

O Continental parou no tempo em que enchia com imensas estrelas, mas hoje já não merece nenhuma, pelo que “acampámos” no El Minzah, que ainda mantém o estatuto e opulência desses tempos gloriosos, que entraram em declínio a partir de 1956, quando Marrocos recuperou a soberania da cidade e de grande parte dos territórios dominados por Espanha, bem como todo o sector francês, que se estendia, sensivelmente, desde Casablanca a Guelmim.

Havíamos arrancado de Lisboa a meio da manhã, depois de um pequeno almoço com um grupo de amigos mais chegados, na sede do Automóvel Club de Portugal (ACP), onde Carlos Barbosa, o presidente do ACP, e Hélder Vaz Lopes, embaixador da Guiné-Bissau em Portugal, foram as testemunhas de honra da partida para esta Expedição Todo Terreno Peugeot 3008 Lisboa-Dakar-Bissau.

Ainda em Lisboa, em busca da saída mais rápida rumo a Sul, a Algeciras, onde o Ferry nos iria levar a Marrocos

Percorremos toda a viagem praticamente sem parar, senão para atestar o depósito de gasóleo, que na Europa o combustível sempre é um pouco melhor do que em Marrocos, onde ainda não há exigências em matéria de emissões como na Europa ,e os motores, se mal alimentados, podem acabar por ressentir-se. Por isso mesmo, trouxemos latas de aditivo para compensar a pobreza do gasóleo africano, mas chegámos a Tânger atestados.

Falamos do Peugeot, porque quanto a nós foi um dia quase em jejum. Daí termo-nos deliciado com um jantar de pratos puramente marroquinos, num restaurante dentro da medina, sobretudo frequentado por estrangeiros. Mas terminámos a noite num café local, onde o ambiente era totalmente diferente: dezenas e dezenas de homens, quase todos fumadores, pareciam apenas “matar” o tempo, a olhar para os ecrãs de televisão, que passavam compactos de imagens de futebol europeu. Este cenário será recorrente em grande parte das cidades marroquinas por onde iremos passar: sempre que entrarmos num café, o som ambiente será quase sempre o de celebração de golos e mais golos…