Nos primórdios da aviação comercial, a escassa autonomia dos aparelhos foi contornada com a construção de diversas pistas ao longo do Sahara. No sexto dia desta Expedição Todo Terreno Peugeot 3008 Lisboa-Dakar-Bissau, foi reconhecer uma das mais marcantes, no Cabo Juby, onde, no final dos anos 1920, o chefe de escala da Aeropostale combateu a solidão com a escrita. Chamava-se Antoine de Saint-Exupéry.

Ainda antes do transporte de passageiros, os primeiros passos da aviação comercial começaram pela carga aérea. A Primeira Guerra Mundial tinha impulsionado imenso o desenvolvimento dos aviões, mas mesmo no início dos anos 20, os aparelhos ainda tinham grandes limitações, quer em termos de autonomia, quer relativamente à capacidade de transporte. Não tinham ainda condições para voar com grandes cargas, mas já pareciam perfeitos para prestar um serviço que rapidamente vingou: a distribuição de correio aéreo.

Os franceses, com a Aeropostale, posicionaram-se na vanguarda deste serviço, que começou por operar a partir de Toulouse, descendo depois a costa atlântica africana até Saint-Louis du Senegal, onde primeiro o correio era transferido para navios que faziam a travessia mais curta, até ao Brasil, para depois entrarem em acção os hidroaviões, que se aventuravam sobre o mar até ao Recife. Nesta nossa rota, também iremos chegar à base dos hidroaviões mas, por enquanto, o sexto dia levou-nos apenas até uma das pistas mais isoladas, entre as diversas que foram abertas em pleno deserto.

Tarfaya, Marrocos Sahara Ocidental, o monumento Memória Aeropostale

Para a primeira abordagem ao Sahara, levantámo-nos especialmente cedo. Era ainda noite cerrada quando deixámos o conforto do “Un Thé Au Bout du Monde” e tomámos a estrada para Sidi Ifni, que ainda dormia quando a atravessámos, para seguirmos então em direcção a Guelmim.

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Para sul, pela “Transahariana”

Última cidade no limite sul do antigo protectorado francês de Marrocos, Guelmim era a fronteira para o deserto e nos anos da década de 1950 a estrada terminava ali mesmo. Dali em diante, os dromedários eram o meio de transporte ideal. Mas há muito que a estrada prossegue em direcção à costa e ao sul, contornando o Sahara sempre próximo do Atlântico, frequentemente até mesmo avistando o mar.

Foram os espanhóis que se encarregaram de abrir a primeira via, que recebeu um tapete de asfalto robusto, pois ainda encontramos vestígios dessa estrada que o demonstram, mas com apenas a largura de um veículo, o que não permitia nem ultrapassagens, nem o cruzamento com outras viaturas, sem que uma delas saísse da estrada. O que em muitos casos significava cair na areia e, por vezes, ficar com as rodas enterradas. Como o trânsito era muito, mas mesmo muito escasso, os espanhóis entenderam que não se justificava o investimento de abrir uma estrada mais ampla. Essa tarefa coube já às autoridades marroquinas, que assumiram a administração do território depois de o terem invadido pacificamente, com uma acção que ficou conhecida pela “Marcha Verde”. Aconteceu em Novembro de 1975, quase ao mesmo tempo que, em Madrid, o General Franco morria. O Rei de Marrocos estava atento ao que se passava em Madrid e preparou-se para, no “momento certo”, invadir o território do até então Sahara Ocidental Espanhol. Mas ao contrário do que o seu pai, Mohammed V, tinha tentado com a Guerra de Sidi Ifni, Hassam II não planificou uma acção militar: deslocou uma multidão de 350 mil marroquinos até Tarfaya, a cidade que tinha renascido no Cabo Juby sobre a povoação espanhola de Villa Bens, quando estes acordaram retirar a sua fronteira uns quilómetros mais para sul. E quando soube que Franco agonizava no leito da morte, fez essa multidão entrar pelos domínios espanhóis, somente munidos de uma bandeira de Marrocos. Apenas uma semana antes, Juan Carlos, que já havia sido designado por Franco para lhe suceder no poder, tinha visitado El-Aayuin, como na altura se chamava a capital do Sahara Ocidental Espanhol, onde se reuniu com representantes do povo local, os saharauis, deixando no ar um compromisso de conceder-lhes a gestão do território, sob o modelo de uma autonomia. Para Marrocos, isso significava uma séria ameaça à expansão para o sul, pelo que a “Marcha Verde” foi a solução, aliás, brilhante, de impedir que isso acontecesse.

Portugal tinha acabado de desintegrar o seu império colonial, ao conceder a independência a todas as “províncias ultramarinas” e agora o mundo tinha os olhos postos nos espanhóis, pelo que ao assistir-se a uma invasão pacífica como esta, o mesmo mundo que condenava o poder colonial da Espanha, aplaudiu a acção de Marrocos, num gesto que, de certo modo, a legitimou. Sem que, na verdade, a questão esteja, ainda hoje, encerrada.

À partida dos espanhóis, em Março de 1976, seguiu-se a guerra, pois os saharauis organizaram-se militarmente, com a Frente Polisário, e também a Mauritânia entendeu que tinha direito a uma parte do Sahara Ocidental. Esgotados e sem recursos, os mauritanos desistiram dessa pretensão em 1979, mas os esforços das Nações Unidas no sentido de encontrar uma solução de paz nesta região tardaram longo anos. Em 1991, finalmente, foi assinado um cessar-fogo entre Marrocos e a Frente Polisário. E as Nações Unidas criaram uma missão que ainda não conseguiu alcançar o seu objectivo: a Minurso, acrónimo de Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental, que recentemente levou António Guterres, na qualidade de secretário-geral da ONU, a prolongar para mais um ano o mandato desta missão.

A “marcha tranquila”

Quando chegamos a Guelmim, a cidade estava ainda a despertar e aproveitámos para tomarmos um bom pequeno-almoço, pois tudo apontava para que esta sexta jornada fosse muito longa e, por via das dúvidas, era melhor fazermo-nos à estrada bem “abastecidos”. Quando terminámos, as lojas estavam a começar a abrir e mesmo sabendo que hoje a estrada é suficientemente boa e larga para não termos de nos desviar para a areia, decidimos comprar uma boa pá, capaz de nos ajudar a desenterrar as rodas do Peugeot 3008, se necessário. Sim, porque mesmo não dispondo senão de tracção dianteira, o novo 3008 não se esgota no asfalto, como havíamos testado, com bastante sucesso, na véspera, ao abordarmos as primeiras pistas em terra.

O mapa da expedição

Agora, nesta “marcha tranquila” rumo ao sul, tínhamos perto de um milhar de quilómetros pela frente, até Dakhla, a última cidade marroquina, antes da fronteira com a Mauritânia. Depois de Guelmim, a primeira escala foi em Tan-Tan, cidade que nas derradeiras edições do “Dakar” disputadas em África, as que partiram de Lisboa, acolheu a caravana do rali, naquela que era a última paragem em Marrocos. Mas enquanto o Rali Dakar pôde atravessar para a Mauritânia pelo interior do deserto, isso representava uma excepção que hoje nem sequer é aberta ao África Eco Race, a prova dirigida pelo francês René Metge, que tomou o lugar deixado vago nesta rota, quando o “Dakar” se transferiu para a América do Sul. A única fronteira que hoje permite a ligação terrestre norte-sul em África é a que foi estabelecida entre Marrocos e a Mauritânia, relativamente próxima da costa, quase meio milhar de quilómetros mais a sul de Dakhla.

Antes de chegarmos a Tarfaya, a escala seguinte, já tínhamos desviado o Peugeot 3008 do asfalto um par de vezes. Primeiro, para percorrermos uma pista ao encontro das arribas sobre o Atlântico, depois para nos aventurarmos por entre as grandes salinas que se perdem no horizonte, mesmo antes do Cabo Juby.

Mas a paragem mais demorada da jornada foi no Cabo Juby, onde não são mais as falésias que delimitam o Atlântico, mas sim uma ampla praia, que entra mar adentro. Em plena praia, e dentro do mar, encontram-se as ruínas de uma enorme casa de pedra, daquele que foi um entreposto comercial britânico, que foi aberto no final do século XIX e que não durou muito tempo.

Os espanhóis chegaram em 1916, muito “empurrados” pelos franceses, que achavam que a integração da região na África Ocidental Espanhola implicava uma presença efectiva. E alguns anos depois foi aberta uma pista de aviação mesmo por trás do forte espanhol, hoje já definitivamente abandonado e a ameaçar ruína. Pelo contrário, a pista de aviação original, em terra, ainda não desapareceu por completo e recentemente foi utilizada num raide aéreo, que refez a rota dos pioneiros da Aeropostale.

O que fez com que a escala do Cabo Juby não tivesse sido apenas mais um ponto de paragem na rota dos aviões franceses foi o facto do chefe de escala da companhia, entre 1927 e 1929, ter-se tornado num escritor famoso. Antoine de Saint-Exupéry gostava mais de voar – pois era piloto – do que estar em terra, mas o destino enviou-o para estes confins do Sahara, onde para combater a solidão e a longa espera entre cada escala – apenas passavam aviões, sempre dois em conjunto, uma vez por semana… – começou a ocupar o seu tempo escrevendo. E nunca mais parou. Nem de escrever, nem de inspirar-se na sua vivência no deserto.

O pequeno museu Antoine de Saint-Exupéry, mesmo por trás do velho quartel espanhol e diante da antiga pista, merece uma visita atenta. Ali passamos uma hora sem darmos conta disso, lendo atentamente todos os painéis, que retratam, ainda que apenas sumariamente, a operação da Aeropostale e do serviço de correio aéreo, até à falência da companhia, em meados dos anos de 1930.

Laayoune, a capital do Sahara Ocidental, onde as Nações Unidas dispõem da base da sua missão

Só ao final da tarde atravessámos Laayoune, que continua a ser a capital do Sahara Ocidental e onde as Nações Unidas dispõem da base da sua missão. Nem parámos na cidade, mas fizemos um pequeno intervalo uns quilómetros mais adiante, junto à praia, onde um grande arrastão de pesca encalhado mesmo junto ao areal se tornou nos últimos anos numa atracção. A noite estava mesmo a cair quando retomámos a marcha. E volvidos cerca de 130 quilómetros, avistámos o clarão do farol do Cabo Bojador. Era o sinal de que dentro de minutos o jantar estaria servido na mesa: um poulet jaune rotti, que é como quem diz, frango assado com molho de açafrão, de pele bem tostada, acompanhado por batatas fritas que, milagrosamente, tinham sido descascadas naquela tarde. Daqui em diante, praticamente só voltaríamos a encontrar das congeladas. E não as voltaríamos a comer.

Dakhla ainda estava longe. Por isso, quando chegámos, cerca da uma da madrugada, o jantar já lá ia e nada como um duche retemperador para recuperar forças para, no dia seguinte, enfrentarmos mais outra tirada de cerca de um milhar de quilómetros ao volante do Peugeot 3008.