“João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém”
Carlos Drummond de Andrade, no poema “A Quadrilha”
O poema continua, mas é esta parte que nos interessa. Se adaptarmos estes versos às acusações das várias entidades sobre o que aconteceu no incêndio em Pedrógão Grande e substituirmos o verbo “amar” por “acusar”, temos (quase) o circulo perfeito.
“GNR acusa o Governo que acusa a Proteção Civil
que acusa o SIRESP. E todos acusam o SIRESP
que não acusa ninguém”
(e até acha que correu tudo pelo melhor)
Ora vejamos com mais pormenores:
GNR acusa o Governo…
A Guarda Nacional Republicana (GNR) foi muito questionada pelo facto de não ter cortado a Estrada Nacional (EN) 236-1, que liga Figueiró dos Vinhos a Castanheira de Pêra e onde morreram 47 pessoas. Mas os militares apontam o dedo ao Governo.
À TSF, o presidente da Associação dos Profissionais da Guarda (APG) adiantou que uma das justificações para não se ter cortado a estrada se deveu a falta de meios.
César Nogueira referiu que havia apenas dois homens num carro em patrulha em cada um dos concelhos de Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pêra. No caso de Pedrógão Grande, que tem apenas 15 elementos, naquele dia — com escalas, folgas e férias — só estavam a trabalhar três militares (dois de patrulha e um no posto), explicou o responsável pela APG.
Pedrógão Grande. Militares da GNR queixam-se de falta de meios
A verdade é que teria sido complicado cortar a estrada em tempo útil, mesmo que a GNR tivesse recebido tais indicações. Tal como explicou o coronel José Luís Lopes Pereira, num comunicado enviado ao primeiro-ministro no dia 20 de junho, o acesso da EN236-1 faz-se “a partir de múltiplos locais”: pelo IC8 e “pequenas localidades e propriedades”. As pessoas que morreram naquela estrada não entraram todas pelo mesmo troço, mas sim por essas vias vindas das aldeias cercadas pelo fogo.
Ao DN, um antigo oficial superior da GNR garantiu que não teria sido possível cortar a estrada, uma vez que eram precisos muito mais homens do que estavam disponíveis no local. “Para garantir o completo bloqueamento destes pontos seriam precisos 20 homens com viaturas, principalmente motos. Mas como se anda aos pares, seriam quase 15 patrulhas (5 motos e 10 carros), ou seja, 25 homens”, afirmou.
… que acusa a Proteção Civil…
Já a Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna (SGMAI) atira as culpas para a Autoridade Nacional da Proteção Civil (ANPC), considerando que os técnicos deveriam não só ter pedido “mais meios de combate”, como também, “em tempo útil”, ter requisitado uma estação móvel para colmatar as falhas do SIRESP, uma vez que a “situação se estava tornar excecional”.
A ANPC (Autoridade Nacional de Proteção Civil) ao verificar que a situação se estava a tornar excecional requisitando mais meios de combate ao incêndio, deveria também em simultâneo ter solicitado preventivamente a mobilização da estação móvel em tempo útil, mesmo antes de alguma estação rádio fixa se encontrar em modo local”, lê-se no documento da SGMAI, publicado no dia 27 no portal do governo.
A entidade tutelada pela Ministério de Constança Urbano de Sousa acrescentou que, “até às 21h15”, o Centro de Operação e Gestão (COG) não teve “qualquer relato da existência de dificuldades nas comunicações”, seja da parte da Proteção Civil, seja da parte do SIRESP, seja da parte de qualquer outra entidade.
A SGMAI adiantou ainda que, na altura em que foi pedida a ativação das estações móveis, já nada poderia ser feito pelas vítimas da EN236-1. “O tempo necessário otimizado para que a EM [Estações Base Móveis] se deslocasse e iniciasse serviço é de 4:00. A EM face à hora em que foi solicitada nunca poderia ter chegado a Pedrogão Grande antes das 01:15. As mortes, pela análise da fita do tempo da ANPC terão ocorrido até as 22:30”.
ANPC devia ter solicitado “em tempo útil” estação móvel das comunicações em Pedrógão Grande
… que acusa o SIRESP…
A Proteção Civil, por sua vez, culpa o SIRESP (Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal). O presidente da Proteção Civil, Joaquim Leitão, explicou, num comunicado dirigido a António Costa e divulgado no passado dia 22, que existiram falhas ao longo de quatro dias, mais concretamente entre sábado — dia do início do incêndio — e terça-feira. Disse, no entanto, que estas foram sendo minimizadas.
Poder-se-á inferir que, desde as 19h45 do dia 17 de junho até ao dia 20 de junho, se verificaram falhas na rede SIRESP no TO (Teatro de Operações). Por forma a minimizar as falhas da rede SIRESP, foram utilizadas as comunicações de redundância, nomeadamente, REPC – Rede Estratégica de Proteção Civil e ROB – Rede Operacional de Bombeiros, conforme se pode constatar na fita do tempo do sistema SADO (Sistema de Apoio à Decisão Operacional)”
As primeiras falhas ocorreram por volta das 19h45. 47 pessoas perderam a vida na EN236-1 entre as 19h e as 20h.
Veja neste artigo como falhou o SIRESP minuto a minuto, de acordo com a ANPC.
Como falhou o SIRESP? Os esclarecimentos da Proteção Civil, minuto a minuto
… Aliás, todos acusam o SIRESP
Mas não é só a Proteção Civil. GNR, Proteção Civil e Governo, todos apontam o dedo às falhas nas redes de comunicação do SIRESP.
Quem não cortou a estrada [EN236-1] não o fez porque não tinha informação”, defendeu César Nogueira, presidente da Associação dos Profissionais da Guarda (APG), à TSF .
O próprio comunicado, enviado pela GNR ao primeiro-ministro, referia que a patrulha não tinha qualquer indicação ou informação “que apontasse para a existência de um risco potencial ou efetivo”.
O documento do SGMAI sublinha, por diversas vezes, as falhas no SIRESP. António Costa admitiu, esta quarta-feira durante o debate quinzenal, rever o contrato do SIRESP, caso seja necessário. “Todos os contratos devem ser revistos. Esse contrato [SIRESP] já foi revisto duas vezes e se for necessário revê-lo, com certeza que deve ser revisto”, afirmou o primeiro-ministro, respondendo a uma questão da deputada do PEV, Heloísa Apolónia.
A caixa negra das comunicações, divulgada pelo MAI, mostra aliás os vários momentos chave em que o sistema esteve em baixo.
Também os comandantes dos Bombeiros Voluntários de Castanheira de Pêra e de Pedrógão Grande referiram problemas no sistema de comunicações integrada.
“É lógico que houve falhas”, considerou o comandante de Castanheira de Pêra. Já José Domingues referiu à Lusa que terá havido “sobrecarga” dos canais ou a própria “falha das redes”, o que levou às dificuldades de comunicação. “Só ao fim de quatro, cinco ou seis insistências é que conseguíamos comunicar com os operacionais ou com o posto de comando”, acrescentou.
Augusto Arnaut, comandante dos Bombeiros Voluntários de Pedrógão Grande, disse ter reportado as ditas falhas “a quem de direito”: “Passados dois dias, reportei a quem de direito”, acrescentou.
“Houve falhas” no SIRESP. Comandantes dos bombeiros contrariam relatório divulgado pelo Governo
… e o SIRESP não acusa ninguém
As balas contra o SIRESP chegam em todas as direções, mas este sistema de redes de emergência “não acusa ninguém”, até porque diz que não houve qualquer problema. Ou seja, segundo o sistema de comunicações de segurança, tudo correu bem.
“Não houve interrupção no funcionamento da rede SIRESP, nem houve nenhuma Estação Base que tenha ficado fora de serviço em sequência do incêndio”, lê-se no documento publicado dia 27 no portal do governo.
O relatório referia ainda que entre as 19h00 do dia 17 de junho — data do início do incêndio — até às 9h00 do dia seguinte, foram feitas “mais de 100 mil chamadas” e que foram processadas “mais de um milhão e cem mil chamadas” durante cinco dias, desde o início do fogo.
O desempenho da rede SIRESP correspondeu e esteve à altura da complexidade do teatro das operações, assegurando as comunicações e a interoperabilidade das forças de emergência e de segurança”, acrescentou.
Relatório. SIRESP “esteve à altura” e “não houve interrupção” do serviço
Ah, e há um verso solto nesta história que não encaixa na Quadrilha de Drummond de Andrade.
O IPMA, que acusa o tempo
A verdade é que todos sublinham as condições meteorológicas como o ponto de partida para a tragédia de Pedrógão Grande. Ainda assim, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), no comunicado enviado a António Costa, referiu que as suas previsões estavam dentro da margem de erro e fala em “condições excecionais” para a propagação das chamas.
“No que diz respeito às condições excecionais que determinaram situações no terreno de excecional gravidade, estamos convictos que foram o resultado da conjugação da dinâmica do próprio incêndio e dos efeitos da instabilidade atmosférica, gerando “downburst””, lê-se no documento.
Bombeiros, GNR e Proteção Civil também falam de um fenómeno atípico, e o Governo admite mesmo ter desvalorizado as previsões meteorológicas.
Downburst foi o fenómeno raro de vento que ajudou a propagar o incêndio, explica o IPMA ao governo