Se Nicolás Maduro conseguir mesmo instalar a Assembleia Constituinte, cujos membros foram eleitos este domingo sem participação de candidatos da oposição, e os protestos não mergulhem o país num cenário de guerra generalizado, estará traçada em breve a planta para o que pode ser uma mudança radical no sistema político da Venezuela.

Para quem esteve este domingo nas ruas, para os que escolheram votar, para os que a isso foram obrigados e para os que perderam os seus amigos e familiares, a esperança é a mesma: que haja um antes e um depois deste voto, porque neste caminho nenhum país pode continuar — e nisso os dois lados concordam.

Segundo dados da Comissão Nacional Eleitoral, mais de oito milhões de pessoas (41.5% dos eleitores) votaram este domingo. A oposição, por sua vez, fala em “fraude” e estima que tenham ido às urnas entre dois a três milhões de pessoas. Além de não reconhecer os resultados, pediu novos protestos para esta segunda-feira.

“Temos Assembleia Constituinte. É a maior votação obtida pela revolução boliviana em 18 anos”, afirmou Nicolás Maduro, no seu discurso de vitória. O deputado e vice-presidente do Partido Socialista Unido da Venezuela, Diosdado Cabello, adiantou que a Assembleia Constituinte irá começar a trabalhar desde já.

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Durante o dia de domingo, várias “atualizações” foram sendo feitas, quer do lado oficial, quer do lado da oposição. A Comissão Eleitoral dava conta de grande afluência às urnas, de uma participação acima dos 90% e poucos incidentes violentos. A oposição falava em mesas de voto completamente vazias, em pressão para votar e em violência sobre a população. A agência de notícias Associated Press visitou cerca de trinta locais de voto e em nenhuma encontrou multidões.

Henrique Capriles, líder da oposição, referiu que 14 pessoas tinham morrido em protestos no dia da eleição. Já o Ministério Público venezuelano dizia, esta segunda-feira, que tinham morrido dez pessoas.

Os antagonismos aumentaram desde que o presidente Maduro anunciou a intenção de realizar uma eleição para escolher as 545 pessoas que terão a capacidade de alterar a Constituição aprovada em 1999, na altura em que Hugo Chavéz, mentor do “socialismo do século XXI”, chegou ao poder.

Confrontos entre polícia e oposição, dia 30 de julho, o dia do voto para a Assembleia Constituinte FEDERICO PARRA/AFP/Getty Images)

É uma tarefa com um peso que não se pode negligenciar: redigir um texto que ditará as leis pelas quais se hão de reger mais de 60 milhões de pessoas, muitos a viver com enormes dificuldades económicas. As causas da queda da economia venezuelana são conhecidas (e complexas) mas a maioria dos analistas traça um paralelo entre a queda do preço do petróleo e o início das dificuldades. O país produzia muito pouco, importando quase tudo e, quando o preço da sua principal exportação caiu, caíram também as provisões alimentares, de matéria-prima, de medicamentos. A dívida do país é insustentável, o preço médio de um cabaz de compras apenas com os bens essenciais pode ir além de três salários mínimos e a mortalidade infantil ultrapassou a da Síria, um país destruído por seis anos de uma horrível guerra civil.

Guerra civil que, na Venezuela, pode não estar assim tão longe. De um lado o governo que promete “encarcerar” todos os “terroristas”; do outro uma oposição apostada em paralisar o país com greves e protestos que já levaram mais de dois milhões de venezuelanos a sair do país. Só na Colômbia vive mais de um milhão, e isto são estimativas conservadoras já que é impossível saber quantos atravessaram já a porosa fronteira entre os dois países. A Portugal já terão chegado também mais de cinco mil, sendo a Ilha da Madeira a região que mais pessoas tem absorvido. Foi de lá que muitos saíram há quase meio século em direção ao outro lado do oceano onde tudo era bem mais desenvolvido do que cá.

Como perguntou Domenico Chiappe, um jornalista de 44 anos, recentemente regressado a Espanha, numa entrevista com o El País: “Voltar? Voltar a onde? Voltar a quê?” apenas para admitir logo a seguir que “em todo o caso, os heróis ficaram. Não têm como sair e sofrem, de pobreza, falta de alimentos e medo”.

Retornados da Venezuela. A família de 18 que pagou para trazer o gato, o empresário que agora lava carros e a advogada com medo

O texto que sair desta Assembleia, que deverá começar os seus trabalhos 72 horas depois de conhecidos os resultados oficiais, irá a referendo mas vários analistas internacionais — e, claro, a oposição — consideram que essa consulta deveria ter sido feita antes dos 545 membros tomarem os seus lugares. Isto porque a Constituição da Venezuela prevê que o estabelecimento destas Assembleias tenha que ser aprovado, primeiro, por um referendo.

Não há ainda nenhuma comunicação oficial do governo sobre o que é que terá motivado a necessidade de modificar o texto da Constituição, o que há, no seu lugar, é imenso espaço para que oposição possa especular sobre que motivos ulteriores estarão subjacentes a este voto. E as hipóteses são muitas — e assustam tanto venezuelanos como a comunidade internacional que tem sido quase unânime na condenação da realização deste voto.

Só 6120 dos 50 000 candidatos a esta Assembleia foram aceites pela comissão eleitoral, isto porque as regras fixadas por Maduro e aplicadas pela comissão eleitoral proibiram candidatos ligados a partidos da oposição. No entanto não faltam elementos do PSUV (partido do poder) desde o deputado Diosdado Cabello — sobre quem recaem suspeitas graves como tráfico de droga — a Adan Chávez, irmão do falecido Hugo Chávez.

Uma fotografia de Hugo Chávez, líder da Venezuela durante 15 anos, no lugar onde está enterrado RONALDO SCHEMIDT/AFP/Getty Images

Poderá o governo estar a querer impor uma nova divisão de poderes que lhe permita reter competências independentemente do que digam as urnas? Adiar eleições até um melhor momento de popularidade? Submeter o Supremo ao poder da Assembleia? Nomear os seus juízes e procuradores em vez de essa nomeação ser feita pela maioria patente no Parlamento? É impossível de saber, mas as dúvidas permanecem na ausência de uma explicação que vá além dos reiterados compromissos com o “retorno da paz”. De resto, é isso que os venezuelanos pedem, mas a que custo?

As pessoas que se têm manifestado contra Maduro têm medo que a “paz” seja equivalente a constante mordaça na comunicação social, à multiplicação de coletivos paramilitares, à prisão de dissidentes políticos e à cassação de passaportes a vozes menos abonatórias, como aconteceu com a procuradora-geral Luísa Ortega Díaz.

Em antecipação a este voto, a oposição realizou um “referendo”, dia 16 de julho, cujos boletins perguntavam se o cidadão concordava ou discordava da realização da Assembleia Constituinte. Segundo números da oposição, cerca de 7,5 milhões de pessoas votaram contra as intenções de Maduro. É apenas um quarto dos 21 milhões de eleitores inscritos para votar na Venezuela mas é um número significativo uma vez que, em 2015, apenas 5,6 milhões de pessoas votaram em Maduro.

O medo da prisão

Mais além que a defesa do legado de Hugo Chávez, o que pode estar aqui em causa para os membros do núcleo mais próximo de Maduro é a sua própria liberdade. Sobre muitos deles recaem acusações de narcotráfico e suspeita de envolvimento em assassinatos, corrupção e sérias violações dos Direitos Humanos. Para o vice-presidente, Tareck El Aissami, há até uma ordem de detenção internacional. Há países como Cuba que até poderiam receber os nomes mais cimeiros da ordem chavista, como o próprio Maduro e a sua mulher, mas aos outros que outra opção resta que não a de se aguentarem até ao fim?

Quem são os “colectivos” que defendem o regime de Maduro com armas?

O governo norte-americano incluiu, há apenas seis meses, o nome de El Aissami na sua lista de narcotraficantes. Não lhe é possível entrar nos Estados Unidos nem as empresas norte-americanas podem manter com as suas nenhum tipo de negócio. Acusam-no não só de de facilitar a entrada de carregamentos de droga desde a Venezuela para outros pontos da América Latina como de dar proteção a outros homens identificados pelo mesmo crime. Na mesma acusação, lê-se que o ex-governador do estado de Aragua tem ligações ao temível cartel mexicano Los Zetas, ao “capo” colombiano Daniel Barrera Barrera e ao narcotraficante venezuelano Hermágoras González Polanco.

Também entram nesta lista José López Bello, alegadamente um “testa de ferro” de El Aissami, que possuí mais de uma dezena de empresas nacionais e internacionais. Acusação formal foi apenas deduzida contra Efraín Campos Flores e Franqui Flores de Freitas, os “narcosobrinos”, como são conhecidos na imprensa da oposição, ambos sobrinhos da primeira dama Cilia Flores. São acusados de importar cocaína, de a processar e distribuir por canais que também chegam aos Estados Unidos. Em 2011, foi acusado Amílcar Figueroa, que era deputado do partido de Maduro na altura; Clíver Alcalá Cordones, aliado de Chávez; Freddy Bernal, ex-chefe da Polícia e ex-deputado e Ramón Madriz, funcionário do Servicio Bolivariano de Inteligencia Nacional (SEBIN).

Comunidade internacional não reconhece o voto

Maduro votou às seis da manhã e pediu respeito pelo voto por parte da comunidade de internacional. “Sou o primeiro do país a votar. Peço hoje a bênção de Deus para que o povo possa exercer livremente o seu direito de voto democrático”, disse, adiantando: O ‘imperador’ Donald Trump queria suspender o direito do povo venezuelano a votar.”

O presidente norte-americano já sancionou 13 líderes do Partido Socialista da Venezuela, acusados de atentado à democracia, violações dos direitos humanos e de corrupção, e prometeu mais sanções depois do ato eleitoral. Os “esqueletos no armário” do próprio Trump são assunto para uma outra análise.

Através do Twitter, a embaixadora norte-americana nas Nações Unidas, disse que os Estados Unidos não iriam reconhecer um “governo ilegítimo”.

A sua voz junta-se a de Juan Manuel Santos, presidente da Colômbia e prémio Nobel da Paz. “Esta Assembleia Constituinte tem uma origem ilegítima e por isso não reconheceremos os resultados” disse Santos na Universidade de Barranquilla a semana passada. Insistindo que nunca esteve de acordo com esta iniciativa, o presidente disse que irá continuar a apoiar uma saída “pacífica e democrática” para a crise na Venezuela. O Peru foi outro dos países da região que optou por intervir no diálogo internacional.

“Esta eleição viola as normas da Constituição venezuelana e contradiz a vontade soberana no povo, representado na Assembleia Nacional além de atentar contra o princípio de universalidade de sufrágio e aprofundar a fratura da nação venezuelana, rompendo a ordem democrática do país”, disse o gabinete de Pedro Pablo Kuczynski.

Quatro dos cinco estados fundadores do bloco comercial Mercosur, Argentina, Brasil, Paraguai Uruguai, também pediram a Nicolás Maduro que suspendesse a realização da Constituinte. A este grupo juntou-se ainda o Panamá.

A Argentina, por seu lado, “lamenta que o governo venezuelano, descurando os pedidos da comunidade internacional, tenha prosseguido com uma eleição para uma Assembleia Constituinte, que não cumpre com os requisitos impostos pela Constituição desse país”. A eleição deste domingo, disse ainda Mauricio Macri em comunicado, “não respeita a vontade de mais de sete milhões de cidadãos venezuelanos que se pronunciaram contra a sua realização”.

O Brasil, a Espanha e o México foram os últimos países a dizer que não irão reconhecer o resultado desta eleição.