Nem sequer era preciso entrar no Mercado de Arroios para perceber que, lá dentro, alguém celebrava. Ouvia-se música, vozes e vários grupos de pessoas seguiam rumo à loja de toldos pretos onde agora existe o Mezze, restaurante de comida do Médio-Oriente onde trabalham 10 refugiados Sírios.

Sexta-feira é dia de celebrações, já todos sabem, mas aquela sexta-feira, 15 de setembro, era especial. A sala retangular onde mora este novo restaurante estava cheia e, no mesmo sítio que há umas horas recebia peixe e produtos hortícolas, jovens rapazes e raparigas viam o futuro em borras de café e serviam uma espécie de panquecas feitas na hora com pasta de alecrim. Celebrava-se o trabalho da associação Pão a Pão e a vontade de “seguir em frente” dos Sírios que por ela foram ajudados.

A sala e cozinha do Mezze, no dia da festa de apresentação do projeto. ©Diogo Lopes/ Observador

Uns dias depois, nova visita ao Mezze. Francisca Gorjão Henriques, a presidente desta associação que nasceu há cerca de um ano, explica o projeto. “A Pão a Pão nasceu de uma pergunta”, diz. E esta surgiu na altura em que Francisca foi apresentada a Alaa, uma rapariga síria que estava em Portugal a estudar ao abrigo de um programa criado pelo ex-Presidente da República Jorge Sampaio. “De que é que tens mais saudades?”, perguntou-lhe. A resposta teve tanto de inesperado como de natural: “Do pão”. “Como bons portugueses que somos, percebemos logo esse sentimento de saudade e começámos a pensar em formas de resolver isso”, explica Francisca.

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A primeira ideia que surgiu foi a de fazer uma padaria síria, mas depois isso pareceu pouco. Afinal, o pão é só “um acompanhamento de uma refeição bem mais ampla” e o mais lógico seria, portanto, abrir um restaurante.

Não só não havia nenhum restaurante sírio em Lisboa, como a existência de um serviria vários propósitos: ajudar a reintegrar as pessoas (“Portugal tem muitas medidas para acolher os refugiados sírios, mas não muitas no que toca a reintegrá-los na sociedade”) e ensinar aos portugueses a sua cultura.

Tirando os casos de Rafat, que trabalhara pouco tempo no restaurante do pai, e Yussuf, que foi padeiro num campo de refugiados na Turquia, nenhuma destas pessoas tinha grande experiência no ramo da restauração, mas “os anos e anos à volta do fogão, a alimentar as famílias” davam a tranquilidade necessária para acreditar que esta era uma ideia vencedora — só faltava testá-la.

O jovem Rafat a servir fatayer, uma espécie de empadas que podem ser recheadas de tomate (1,50€), espinafres (1,50€) ou carne de vaca (1,80€). ©Diogo Lopes/ Observador

“Com o aproximar do Natal, em que há sempre muita gente a organizar jantares de grupo, decidimos começar a testar a ideia”, vai contando Francisca. “Decidimos organizar os nossos próprios jantares de grupo no mercado de Santa Clara [em Lisboa].” O resultado? “Dissemos no nosso Facebook que íamos fazer jantares de grupo para, no mínimo, 20 pessoas. Acabámos por não ter um único com menos de 100”. A ideia que tinha acabado de dar os seus primeiros passos já corria desenfreada e o sucesso parecia garantido — as pessoas que nela trabalhavam sentiam o mesmo.

Na esplanada deste novo Mezze, depois de concluída a conversa com Francisca, foi a vez de Shiraz, 48 anos, contar a sua história. Com a ajuda de Rafat, que foi servindo de intérprete (“Português ainda não bom”, avisou-nos a síria logo no início), esta natural de Aleppo começou a explicar que no início tinha uma certa desconfiança no projeto, mas que ao ver as coisas a acontecer, ficou mais tranquila “aqui” (e Rafat aponta para o coração).

A sua vida anterior, a que abandonou há pouco mais de um ano (antes de chegar a Portugal passou pela Turquia e pela Grécia), não estava ligada à restauração. “Era doméstica”, explica.

Mesmo assim, sente-se feliz “e muito integrada”, apesar de o marido e de dois dos seus quatro filhos continuarem na Síria. Quando questionada sobre se pensa regressar, a resposta é firme: “Se conseguir trazê-los para cá, ficamos. Se não, vou para outro sítio para onde eles consigam vir.”

Estas bolinhas de massa estão prestes a transformare-se em pão saj, uma espécie de panquecas. ©Diogo Lopes/ Observador

Rafat, o nosso intérprete, partilha da mesma opinião, embora pareça ser mais ponderado em relação a um eventual regresso ao país natal. “Teria de pensar muito bem”, diz. “Estou muito bem aqui, faço uma coisa que me faz muito feliz, a nossa comida”, explica o jovem de 21 anos — que aproveita para revelar que ainda só provou dois pratos típicos portugueses: bacalhau, que “não gostou muito”, e pastéis de nata, que “adorou”.

Vai poder conhecer Rafat e Shiraz sempre que passar pelo Mezze (além de outros anfitriões) e provar, por exemplo, um manish za’atar (pão sírio com mistura de especiarias, 1,50€), uma shorbet adas (sopa de lentilhas, 3,50€) ou um kibbeh (bolinhos fritos de carne de vaca com bulgur e especiarias, 1,50€).

Não há dados concretos, mas estima-se que o número de refugiados sírios em Portugal ronde os 1000. Francisca espera poder incluir na sua associação e nos seus projetos muitos mais, até porque, afirma, o projeto do Mezze é para ser “replicado em outros sítios”. Por agora, mora apenas no Mercado de Arroios, rodeado de “vizinhos”, como Francisca diz, que “não podiam ter recebido melhor” estas pessoas, a sua comida e cultura.

Se Mezze significa algo como “prato para partilhar”, pode dizer-se que não há melhor nome para esta ideia. Afinal, se há coisa que nesta história não falta, é o ato de dar e receber: amizade, respeito, cultura e, claro, comida.

Nome: Mezze
Morada: Mercado de Arroios, Rua Ângela Pinto, 12
Horário: De terça a sábado, das 12h às 24h
Site: www.facebook.com/paoapao.associacao