Apesar de já estarmos à beira do outono, na Catalunha a temperatura não pára de subir. Na madrugada de quarta-feira, a Guarda Civil espanhola desencadeou uma operação em diversas sedes do Governo regional da Catalunha, a região autónoma espanhola que por estes dias luta pela realização de um referendo à sua independência, ao qual Madrid se opõe ferozmente. Esta quarta-feira foram detidas 14 pessoas, incluindo o número dois da secretaria de Estado da Economia e Finanças, Josep Maria Jové. Nessas buscas terão também sido apreendidos quase 10 milhões de boletins de voto, segundo uma fonte da investigação citada pelo diário El País.

De acordo com o jornal, as pessoas detidas estão envolvidas na organização da consulta do dia 1 de outubro, que é ilegal por violar a Constituição e o princípio de unidade territorial de Espanha, decretou o Tribunal Constitucional espanhol.

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No rescaldo ficam muitas perguntas por responder. Prender alguém por querer organizar um referendo é legal, mesmo que a consulta em si não o seja? E de que são acusadas estas pessoas? A Catalunha pode ficar sem o seu elevado grau de autonomia? E Madrid pode cortar a linha de financiamento à região? O Observador foi à procura de respostas.

14 pessoas do funcionalismo público catalão presas. Porquê?

A crise constitucional em Espanha ultrapassou uma “linha vermelha”, avisou Carles Puigdemont, pouco tempo depois de a polícia espanhola ter irrompido pelos edifícios do governo catalão (Generalitat) e detido 14 membros da equipa que organiza o referendo sobre a independência, por suspeita de desobediência. Nenhuma destas pessoas está ainda presa definitivamente. Estão nas instalações da Guarda Civil espanhola até serem presentes a um juiz, o que deverá acontecer nas próximas 72 horas.

Destas 14 pessoas, 12 são altos funcionários da função pública catalã, mas nenhum membro do governo foi ainda detido. O nome mais sonante é o de Josep Maria Jové, secretário das Finanças, sendo que o seu superior, o secretário-geral, Oriol Junqueras, é também vice-presidente da Generalitat.

Um dos organismos sob controlo de Madrid é precisamente o Departamento de Finanças da região, onde, desde a manhã de quarta-feira, a polícia espanhola tenta encontrar documentos que provem se houve ou não transferência de dinheiros públicos para a realização do referendo. O Governo central, como explicou já na tarde de quarta-feira o ministro das Finanças Cristóbal Montoro, tomou o controlo das contas da Generalitat.

Logo a seguir às buscas, o ministro do Interior espanhol, Juan Ignacio Zoido Álvarez, anunciou que todos os membros da Guarda Civil que estavam na reserva, ou de alguma forma ausentes das forças policiais devido a férias ou outras licenças, teriam de se apresentar imediatamente nos respetivos quartéis para poderem ser enviados para a Catalunha, onde a sua missão será impedir a realização deste referendo.

Estamos perante um exemplo de “delito de opinião”?

É o que dizem os que apoiam a autodeterminação da Catalunha, uns com menos pruridos que outros. “Estamos a caminhar para uma situação em que haverá presos políticos em Espanha”, reagiu Pablo Iglesias, líder do partido de esquerda Podemos, em Madrid e, por enquanto, o único dos principais líderes políticos espanhóis que aceitam a realização do referendo.

“As intervenções policiais, detenções, buscas sem mandato, intimidação, tentativa de bloqueio das contas da Generalitat, provocaram uma situação inaceitável na democracia” disse Carles Puidgemont. Para o chefe do Governo da Catalunha, Madrid “passou uma linha vermelha e transformou-se numa vergonha democrática”. Já a presidente da Câmara de Barcelona, Ada Colau, não falou em presos políticos, mas falou em “escândalo”: “É um escândalo democrático que se invadam instituições e se detenham funcionários por motivos políticos. Vamos defender as instituições catalãs”, escreveu na sua conta na rede social Twitter.

Mas os delitos pelos quais foram detidos — desobediência e desfalque — estão previstos na Constituição para este tipo de situações. Até porque não é a primeira vez que isto acontece, exatamente pelas mesmas razões, na Catalunha.

Quais as reais consequências destas “prisões”?

A maioria dos analistas não acredita que as acusações se venham a materializar imediatamente numa pena de prisão. E, mesmo para impedir estas pessoas de continuarem à frente dos seus organismos, seria preciso uma medida cautelar do Ministério Público. Depois de presentes a um juiz e depois de ouvida a acusação e a defesa, o mais provável é que todos saiam em liberdade e aguardem em liberdade o julgamento efetivo. Aí sim, as consequências podem ser mais graves, já que o crime de peculato — desvio de fundos públicos — pressupõe uma pena de oito anos de prisão. O crime de desobediência não acarreta pena efetiva de prisão, mas as pessoas condenadas por este delito ficam impedidas de exercer cargos públicos.

Já houve outras ocasiões em que membros do governo catalão tenham sofrido as consequências de defender um referendo?

Sim. O caso de Artur Mas é o mais emblemático. Presidente da Generalitat de 2010 a 2015, continua a ser uma figura dominante no debate a favor da independência. Foram as suas lutas por mais autonomia, negadas pelo Tribunal Constitucional, que deram força ao movimento. Em 2014, esteve na frente da realização do referendo informal à independência e, por este motivo, foi afastado da política por 21 meses por Madrid.

Uma destas consultas “informais” realizou-se em 2009, na cidade de Arenys de Munt. No boletim de voto perguntava-se aos 8.600 habitantes da montanhosa região se queriam ser independentes de Espanha: 96,2% disseram que sim. Dois meses depois, a 13 de dezembro, realizou-se um outro referendo popular, em 167 municípios da Catalunha, no qual os seus habitantes foram convocados a responder à seguinte pergunta: “É a favor que a Catalunha seja um Estado de direito, independente, democrático e social, integrado na União Europeia?”. Foram convocados às urnas 700 mil votantes e participaram na consulta 200 mil pessoas. O “sim” venceu com valores pouco abaixo de 95% dos votos, frente ao “não” com 3,52%. Ao longo dos dois anos seguintes, mais 553 localidades votaram pela independência — quase um milhão de pessoas. Os resultados foram todos semelhantes.

Em 2014 houve nova consulta, novamente sem vínculo legal. No dia 12 de dezembro de 2013, o Governo da Catalunha anunciou que a data para o referendo sobre a independência estava definida para 9 de novembro de 2014 e iria conter uma pergunta com duas partes: “Quer que a Catalunha seja um Estado?” e, “Se sim, quer que este Estado seja independente?” O governo espanhol declarou pouco depois a sua intenção de bloquear o referendo, afirmando que este “não seria realizado”, porque “a Constituição não autoriza qualquer comunidade autónoma a submeter a votação ou a um referendo as questões relacionadas com a soberania nacional”.

O Tribunal Constitucional de Espanha impediu a realização de um referendo “oficial” mas, mesmo assim, tal como estava marcado, no dia 9 de novembro de 2014 foi feita uma consulta popular sobre a independência da Catalunha, sem caráter vinculativo. Os resultados desta consulta, em que participaram 2,3 dos 6,3 milhões de catalães com direito a voto, deram uma vitória de 80,72% ao “sim” em ambas as perguntas.

A par da investigação conduzida por Espanha, corre paralelamente no Tribunal Superior de Justiça da Catalunha — independente de Madrid — um outro processo contra Carles Puigdemont também por desobediência e peculato.

Madrid pode suspender a autonomia da Catalunha?

Pode. Mas é um passo na escuridão, palavra que, aliás, até já foi utilizada pelo próprio Puigdemont como uma referência pouco velada aos “dias negros” do Franquismo. Nunca, em 40 anos de Constituição, se ponderou o uso do artigo número 155 da Leei Fundamental, que suspende a autonomia das regiões. Na prática, isto significa que todas as regalias de que a Catalunha hoje goza como região altamente autónoma — por exemplo o controlo dos setores da Educação e da Saúde e também das suas forças policiais — seriam devolvidas ao estado espanhol, que passaria a controlar toda a estrutura estatal da Catalunha.

O Presidente da Generalitat, como se pode comprovar no vídeo abaixo, diz que Madrid “de facto suspendeu” o governo da Catalunha, mas até agora ainda não há notícia de que tenha efetivamente sido esse o caso.

O choque entre Madrid e Barcelona pode estar perto de um ponto de não-retorno e não é certo que este punho de ferro beneficie Madrid. A Catalunha tem um fortíssimo pendor independentista, e mesmo aqueles que não pensam votar num referendo ilegal, também raramente se mostram completamente do lado do governo de Madrid. Apertar ainda mais com a região, retirando-lhe a autonomia e tomando as rédeas das suas instituições, é meio caminho andado para ajudar os indecisos a decidirem-se a favor de Puigdemont, como argumenta o correspondente do diário The Guardian em Madrid, num texto onde fala da possível “vitória pírrica” de Madrid, caso escolha bater de frente com esta região, que representa 20% do PIB espanhol.

Qual a resposta de Madrid? E a dos catalães?

A manhã de quarta-feira correu ao ritmo rápido dos choques políticos. Por volta das nove da manhã, a Guarda Civil estava presente em diversos pontos de Barcelona, já depois de ter detido as 14 pessoas suspeitas de estarem a ajudar a organizar a consulta de 1 de outubro. Pouco depois, Mariano Rajoy, primeiro-ministro espanhol do Partido Popular, de centro-direita, respondia, provocante, às detenções. “O que temos visto na Catalunha é a intenção de liquidar a Constituição e a soberania e uma gente que está a esquivar-se da lei, atuando contra a Constituição e também contra o Estatuto de Autonomia. De maneira que, agora, temos que atuar”, disse Rajoy.

A estas palavras respondeu a Generalitat com a garantia de que a consulta popular será realizada de qualquer forma e os independentistas responderam tomando de assalto as ruas, a um dia de semana. Centenas de pessoas concentraram-se em frente do Ministério da Economia, onde decorreram as primeiras buscas, mas também na praça Sant Jaume, na Gran Via, e na Via Laietana. Desde as 10 da manhã de quarta-feira que se agitam pelas ruas de Barcelona a Estrelada, a bandeira de uma Catalunha independente. Os protestos registaram-se também em outras cidades espanholas, e estenderam-se até às Portas do Sol, em Madrid.

Porque é que Madrid diz que este referendo é ilegal?

Depois de duas tentativas de realizar um referendo que fosse aprovado pelo governo central, em 2009 e 2014, em junho de 2017 o Governo catalão voltou à carga anunciando a realização de um novo referendo a 1 de outubro de 2017. Este novo plebiscito foi colocado em marcha pelo Governo regional liderado por Carles Puigdemont, que foi eleito sem nunca esconder que a sua intenção era a realização de uma consulta à independência da Catalunha. No Parlamento catalão existe hoje uma maioria de deputados separatistas, que no dia 6 de setembro aprovaram um projeto de lei que permite realizar o referendo. O projeto passou com o voto a favor dos 72 deputados das coligações Junts pel Sí e Candidatura de Unidade Popular e 11 abstenções.

Mas o Tribunal Constitucional embargou as intenções do governo e bloqueou a lei. Na ausência de sustentabilidade constitucional, a Generalitat invoca o direito à auto-determinação. Mas com Madrid não há entendimento. O governo de Mariano Rajoy não cede. O referendo é ilegal, porque assim o declarou o Tribunal Constitucional e assim declarou porque a Constituição espanhola não autoriza consultas populares que possam por em causa a unidade territorial do país.

Também o Conselho Europeu já disse que qualquer votação tem que estar “perfeitamente alinhada com a Constituição”, o que não é o caso.

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Do outro lado, estão as diversas associações de ativistas que dizem que um voto nunca pode ser ilegal e que deveria ser dada à Catalunha a oportunidade de escolher o seu futuro, tal como aconteceu na Escócia, que acabou por votar a favor de permanecer como parte do Reino Unido em 2014.