A manhã começou na Gabulândia, um país inventado para um treino militar, passou pela Coriscolândia, espaço de uma IPSS de Ponta Delgada, mas o Presidente impôs uma verdadeira ‘Marcelolândia’, o país onde o Presidente tem a última palavra. Marcelo não só reagiu com dureza às críticas que vinham de São Bento, como ao longo do dia não poupou o Governo de António Costa. Entre o desenho, uma pintura ou um jogo de vólei, disse tudo o que queria, como sempre faz. Lembrou que pagava quotas como militante do PSD, sugeriu — sem dizer o nome — que António Costa amuou e que anda “sempre a colar coisas”.
Na ‘Marcelolândia’, para que fique claro, o Presidente está acima do Governo. Foi isso que disse, pela manhã, com as letras todas, ainda na ilha da Terceira. À tarde, seguiu a agenda da visita de quatro dias aos Açores, e vieram as entrelinhas. Sem que ninguém lhe perguntasse nada sobre o assunto, o Presidente da República chegou à “Coriscolândia” — espaço da Kairós, uma cooperativa de incubação de iniciativas de economia solidária— a dizer que era sócio da instituição há 21 anos e que pagava um valor tão alto de “quota” que até já tinha contactado a “gestora de conta” a perguntar que débito era aquele. Mas não o fez sem falar na sua militância partidária: “Pago mais do que pago [de quotas] no [Sporting de] Braga e no PSD.”
Marcelo acusa Governo de reação especulativa e avisa: “Chocado ficou o país”
Num dia em que o PS o atacou Marcelo quis dizer que era do PSD. No mesmo local, enquanto pintava um pirata (só com tinta preta), ainda pegou na tinta amarela, para mais um piscar de olho à direita: “Amarelo, amarelo é CDS, embora com azul, pode ser amarelo, pode ser amarelo”. Não pintou nada com amarelo, mas ficou o sinal. Sem que ninguém lhe tivesse feito tal pergunta.
No livro de visitas, Marcelo desenhou um coração, mas não sem colocar mais umas pintas ao lado. E explicou: “Fica aqui o coração do Presidente a pingar. Não há muitos presidentes que deixem assim o coração”. O Presidente conseguiu aqui referir dois temas: que o seu coração é de afetos, mas também pinga, com as zangas.
E não esconde a zanga com o Governo. A cada esquina, uma oportunidade para reforçar o que disse com as letras todas pela manhã. As frases foram surgindo:
O Presidente não tem feitiços (…) O presidente não vale por dois, vale por um. Por dois, seria demais”.
Recebido como uma estrela, Marcelo sentou-se, paciente, a recortar letras de jornais junto às crianças da creche que funciona naquele espaço. A ideia era formar palavras. Escolheu a palavra “vitória”, embora a sua favorita seja “Portugal”. Já quase no fim, faltava o “a” e Marcelo lá descobriu um pequeno “a”. Após espicaçado — como muitas vezes acontece, pelos jornalistas — sobre se o “a” era pequenino por ser de António (Costa), Marcelo começou por fugir à questão: “Gosto muito de António, tenho um irmão chamado António”. A sala riu-se. Marcelo ainda brincou: “Estavam a pensar em António Guterres, não é?” Pouco depois lá escolheu outro ‘a’: “Vamos pôr um ‘a’ maior a pedido de várias famílias”.
Marcelo queixa-se que a cola UHU “cola-se aos dedos”. A missão era agora mais difícil e voltaram as metáforas políticas: “Cortar é mais fácil que colar, por isso é que eu ando sempre a colar coisas”. O tal país político dividido em dois que disse querer colar quando tomou posse.
Mas estará o país menos crispado do que há quatro meses, quando visitou pela primeira vez os Açores? “O país está menos crispado, sinto que as zonas atingidas pelas tragédias, estão mais carentes de afetos. E não só de afetos, mais do que afetos. Mas o país em geral está menos crispado”, atirou o Presidente. E a classe política? “Espero que acompanhe o país nesse ponto.”
Costa também teria direito à sua indireta. Enquanto tirava uma foto com crianças, Marcelo começou a contar uma das suas histórias: “Tenho uma amiga minha estrangeira que diz que os homens portugueses são os únicos do mundo que amuam. Nos outros países, as mulheres amuam e os homens irritam-se. Em Portugal, os homens amuam”. Mais uma indireta a Costa, que terá “amuado” com o Presidente após o discurso de 17 de outubro.
Acabou o bom tempo. Começou a trovoada entre Belém e São Bento
O resgate na “Gabulândia” e a pólvora seca do sniper do “Facho”
Pela manhã, imediatamente antes do tom bélico para com o Governo, Marcelo assumiu o papel de Comandante Supremo das Forças Armadas. O artigo publicado no jornal oficial do PS sugeria que a Presidência de Marcelo podia “descambar” numa espécie de ditadura presidencial. Ora, por coincidência, o local onde o Presidente assistiu ao último treino militar na Ilha Terceira foi de um alto na Serra do Facho. Marcelo — o presidente que no dia anterior enaltecia que não se encaixa a imagem de “corta-fitas” — não aceitou as críticas socialistas. E — ao contrário do sniper que estava uns metros a seu lado — não atirou com pólvora seca.
Foi dali que assistiu à simulação de que as tropas retiravam portugueses de um país (inventado para o efeito) chamado Gabulândia. No fim, Marcelo avisava que este tipo de atos “à partida, distraidamente, parecerão ficção, mas se pensarem um pouco não serão ficção. Podem perfeitamente acontecer.”
Questionado sobre se seriam operações que poderiam ocorrer na Guiné-Bissau ou na Venezuela, Marcelo não se quis comprometer (o que é compreensível por questões diplomáticas), respondendo à jornalista que colocou a questão: “A especulação é sua. Portugal mantém relações com inúmeros países do mundo. Há comunidades portuguesas espalhadas por todo o mundo. É obrigação do Estado português estar atento a essas comunidades. Qualquer especulação que venha a ser feita com nomes ou com concretizações, é da sua responsabilidade. Não tem a ver nem com o Estado português, nem com as Forças Armadas portuguesas.”
Mais tarde, numa aula que deu na Universidade dos Açores sobre o “Atlântico”, Marcelo alertou para problemas do oceano, como o narcotráfico no golfo da Guiné. Antes de começar a falar, saudou Mota Amaral, antigo presidente da Assembleia da República, que assistiu à aula. E não deixou de fazer as suas graças: “Façam as perguntas altas, que a idade e o exercer de cargos políticos, tiram-nos capacidades de audição”. E antes do fim da aula ainda deixou novos avisos: “Tenho um grande defeito: ter razão antes do tempo”. E o dia ainda não acabou. Esta quinta-feira, Marcelo ainda vai fazer uma intervenção num jantar com o presidente do Governo Regional dos Açores, Vasco Cordeiro.