“O que se vai comer no futuro?” A pergunta pode ser digna de uma obra distópica de Philip K. Dick, mas não houve qualquer tipo de ficção-científica no passado fim-de-semana, no decorrer do mais recente jantar da Rota das Estrelas que aconteceu no Vila Joya, em Albufeira. Os heróis dessa noite foram o já célebre Dieter Koschina, icónico chef deste empreendimento de luxo, e um nome que, muito provavelmente, é desconhecido por grande parte dos portugueses: Paul Ivić.

O que tem este cozinheiro de tão especial para ser convocado a refletir sobre um tema tão profundo? A resposta está em Viena, na cozinha do Tien, restaurante liderado por este austríaco que tem a particularidade de só servir comida vegetariana… e ter uma estrela Michelin.

Numa altura em que o mundo começa a prestar mais atenção àquilo que come (de onde vem, quem o produz e como o produziu), o chef Paul — que falou por e-mail com o Observador — é firme ao defender que a comida é mais do que alimento. Ela também é responsabilidade: perante as pessoas que a produzem com cuidado e, acima de tudo, para com a natureza. Esta noção pode não responder à pergunta lançada pela Rota mas, seguramente, será um princípio base impossível de não ter em conta.

Saiba que outros temas pautaram a conversa que nas linhas que se seguem é-lhe agora apresentada.

O chef Paul Ivić na cozinha do Vila Joya, no passado fim-de-semana. ©D.R.

O Paul é vegetariano?
Pode soar estranho para muita gente, mas não, não sou vegetariano. Contudo, procuro seguir uma dieta composta por 80% de frutas e vegetais e 20% de carne e peixe.

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Porque decidiu então apostar na cozinha vegetariana?
Há uns bons anos comecei a sentir que precisava e um desafio novo na minha vida. Por coincidência, foi nessa altura que surgiu a hipóteses de ir para o Tian [na altura, este restaurante que lidera desde 2011, ainda não tinha aberto]. Posto isto, aceitei o desafio e vi-me forçado a adaptar o meu estilo de cozinha. O que eu adoro na cozinha vegetariana é o prazer de trabalhar com produtos naturais, vivos! Adoro respeitar o ritmo próprio da natureza, que nos dá coisas específicas consoante a altura do ano em que estamos. Isto tudo traz-me muito prazer. Não procuro minimamente imitar o sabor da carne, por exemplo, nos meus pratos. Prefiro mil vezes enobrecer o sabor da natureza.

Esta linha de orientação gastronómica reflecte-se de que forma, no dia-a-dia da sua cozinha?
Antes de mais, tenho de dizer que trabalho com uma equipa excecional, não conseguiria imaginar pessoas melhores para me acompanharem no dia-a-dia. Todos eles conhecem bem o nosso estilo de comida e partilham da mesma noção que eu no que toca à importância dada à qualidade do produto. Tenho de admitir que sem a entrega e dedicação de todos eles, seria impossível ainda continuarmos a aproveitar esta “viagem”. Outra coisa que acho muito importante no nosso trabalho é o facto de termos muitos fornecedores que partilham da mesma filosofia que nós — a imparável procura pela melhor qualidade possível. No que toca a vegetais, não tens outra opção se não trabalhar com os melhores, se aquilo que procuras é o sabor mais verdadeiro e intenso.

Um prato do chef Paul onde feijões e favas são os ingredientes principais. ©D.R.

A Michelin é muito rígida nos critérios que segue para atribuição de estrelas. Alguma vez achou que isso os pudesse impedir de vos atribuírem uma?
É óbvio que conquistar uma estrela Michelin é algo a que qualquer chef se dedica com imenso afinco, logo desde o primeiro dia que abre a porta do teu restaurante. Nós queríamos uma e quando soubemos que a tínhamos alcançado quase que nem acreditámos no que tinha acabado de acontecer. Sinceramente, acho que muita coisa mudou nesse dia. Os nossos clientes ficaram ainda mais seguros de que o nosso trabalho é de confiança, de que se vierem ao Tien vão encontrar uma grande ementa.

Como é que outros colegas seus vêm o trabalho que faz?
Felizmente são muitas as vezes e que ouvimos palavras simpáticas de parabéns pelo trabalho que estamos a fazer. Também é comum louvarem a nossa coragem em apostar numa cozinha deste género — a nossa vida seria muito mais fácil se usássemos carne e peixe nos nossos pratos, mas somos firmes em relação ao desafio que aceitámos e lutamos muito, todos os dias, para o superar.

E os clientes? Como reagem as pessoas que não sabem à partida que só trabalha com vegetais?
Infelizmente ainda é comum termos clientes a abandonar o nosso restaurante mal sabem que não temos carne nem peixe no menu. Sempre que isto acontece é como se nos dessem uma facada no coração. Trabalhamos tanto para fazer boa comida e elas nem sequer nos dão o benefício da dúvida. Felizmente, muitas vezes conseguimos convencê-los a ficar e até hoje não houve uma única pessoa que regressasse a casa insatisfeita! É engraçado porque no final até nos chegam a pedir desculpa por terem duvidado de nós. Que mais podia pedir?

A comida vegetariana é vista ainda por muita gente como algo pouco interessante e pouco saboroso. O que acha deste estereótipo e como é que o tentam desmontar no Tien?
O que nós fazemos no Tien é mais do que a noção minimalista de cozinha vegetariana. A “comida” é muito mais do que uma ferramenta que nos permite viver. Comida é responsabilidade pelos nossos recursos e pelo trabalho das muitas pessoas que se dedicam a produzir os bons ingredientes que pomos nos nossos pratos. Comida é ligar pessoas sem precisar de dizer uma palavra.

O vegetarianismo pode ser visto como uma tendência gastronómica?
Não vejo aquilo que fazemos como sendo uma moda — é uma necessidade. Ao longo dos últimos anos a indústria da comida tomou uma série de escolhas pouco louváveis, basta ver a quantidade de drogas que são utilizadas na produção industrial de gado, por exemplo. São coisas deste género que, a longo prazo, vão destruir o nosso planeta. É por isto que acho que muito em breve teremos de repensar aquilo que comemos e os produtos que compramos.

Na sua vida pessoal, em casa, cozinha carne com que regularidade?
Com alguma frequência. Gosto muito de cozinhar carne e peixe — porque não haveria de gostar? Se estiver a trabalhar com alimentos de qualidade, vindos de produtores de confiança, não há nada de mal. Como disse há bocado, acho que tudo tem a ver com uma dieta equilibrada.

Qual foi o comentário mais curioso que fizeram à sua comida?
Há uns tempos, uma rapariga foi ao restaurante com os pais. Depois de ler um artigo sobre o Tien numa revista ela pediu aos pais que a sua prenda de anos – ela celebrava o seu décimo aniversário – fosse ir lá jantar. No final da noite fui ter com ela e perguntei-lhe o que se tinha gostado da refeição. Ela respondeu: “Não… Adorei!”
Esse comentário foi muito especial para mim, afinal, os miúdos são os seres humanos mais honestos…

Esta foi a sua primeira vez em Portugal?
Por acaso não, foi a terceira. Gosto muito do vosso país e da vossa comida. A qualidade do vosso peixe e marisco é uma coisa do outro mundo. Gosto muito de ficar a olhar para o vosso mar, tranquiliza-me.

E o Vila Joya? Já conhecia?
Sim, já tinha trabalhado com o Stefan Langmann [braço direito do chef Dieter Koschina] e há uns tempos ele desafiou-me a vir visitá-lo ao Vila Joya. Passei cá uns dias e fiquei a conhecer o chef Dieter Koschina e a Joy Jung [responsável pelo espaço]. Escusado será dizer que senti-me imediatamente bem-vindo nesse espaço tão especial a que eles chamam — e com razão — de paraíso.

Que ideia tem da gastronomia portuguesa?
Infelizmente conheço-a muito mal. Sinto que tenho imenso para descobrir e experimentar. Eventos como esta Rota das Estrelas são muito úteis para ir conhecendo melhor estas realidades que nos são desconhecidas.