António Costa tinha apostado em arrancar o primeiro quinzenal do ano com as prioridades políticas do Governo para 2018, mas acabaria o debate com um desabafo: “A oposição acorda de manhã, lê os jornais, ouve as rádios, googla para ver qualquer coisa nas redes sociais e depois vem aqui fazer umas perguntas. É a oposição que temos”. Desta vez, no entanto, o primeiro-ministro só se pode queixar da sua própria sorte — ou da sua própria equipa, neste caso. Foi a sua ministra da Justiça, Francisca van Dunem, que, ao sugerir que Joana Marques Vidal está de saída do cargo de Procuradora-geral da República, deu o flanco do Governo e o tema para o PSD cavalgar. O primeiro-ministro terminaria a defender a ministra e a jurar que não havia na política quem respeitasse mais a autonomia do poder judicial do que ele. Não bastou: a recondução de Joana Marques Vidal acabaria por dominar grande parte do debate quinzenal, num momento em que a magistrada ainda tem dez meses de mandato pela frente.
O primeiro-ministro não se pode apenas queixar de PSD: Bloco de Esquerda, PCP e PEV, parceiros de parlamentares dos socialistas, pressionaram o primeiro-ministro: a responder pelo “caos” nas urgências, que Costa disse ser algo que os portugueses terão de enfrentar nos próximos anos; pela “impunidade da EDP”, que o primeiro-ministro disse ser inaceitável”, e pelo drama nos CTT, em que António Costa se assumiu de “mãos atadas”.
O líder socialista ainda teve de responder a Assunção Cristas, que voltou a perguntar ao primeiro-ministro de quem fora a ideia de colocar a Santa Casa a investir no Montepio. Costa não assumiu a paternidade do plano que pode custar 200 milhões à Santa Casa, mas lamentou não ter tido a mesma ideia. Só falta saber quanto vai custar exatamente e quando ou se se vai concretizar.
PGR. É “prematuro” falar sobre isso, mas Marques Vidal deve mesmo sair
O fantasma da Operação Marquês. O confronto entre o líder da bancada do PSD e o primeiro-ministro marcou o debate. A ministra da Justiça disse à TSF que a lei prevê um “mandato único e longo” para quem comanda a Procuradoria-Geral da República e Hugo Soares levou o tema a plenário para acusar Costa de “pôr em causa a autonomia” de Joana Marques Vidal e do próprio Ministério Público, quando ainda faltam dez meses para o fim do mandato da PGR. Para o PSD, que lembra os “casos mediáticos” por fechar, “há um antes e um depois” de Marques Vidal à frente da investigação judicial e “é a primeira vez que a justiça demonstrou que não é diferente com os fracos e com os pequenos” – a referência, implícita, trazia José Sócrates para a arena parlamentar. Ao argumentar com a lei — disse Hugo Soares, depois de acenar com a revisão constitucional de 1997, acertada entre PS e PSD –, Francisca Van Dunem quis “esconder-se atrás de um argumento jurídico que não existe”.
Costa concorda com “leitura pessoal” da ministra. O primeiro-ministro socorreu-se do argumento de que é “prematuro” tomar uma posição sobre a sucessão de Joana Marques Vidal, porque só em outubro termina o mandato da PGR e porque o Governo ainda não “aprofundou” esse debate. “Na altura própria, discutiremos essa questão.” Ainda assim, Costa solta a ideia de que, apesar de ser uma “opinião” da ministra, está em linha com a leitura que o primeiro-ministro faz da lei. “A interpretação da ministra da Justiça parece-me correta.” Hugo Soares não quis largar o tema que o PSD elegeu para o debate e acusou Costa de fragilizar a sua ministra, ao considerar que Van Dunem fez uma leitura “pessoal” da lei. Costa acusou o toque: “Não desautorizo posições jurídicas de qualquer membro do Governo”, sublinhou o primeiro-ministro. A referência do PSD aos “casos mediáticos” também não passou em branco. “É difícil encontrar alguém que respeite mais a autonomia do poder judicial do que eu, e muitas vezes com incompreensão de pessoas que são minhas amigas, meus camaradas e com quem tive a honra de trabalhar”, disse Costa. Era uma alusão indireta a José Sócrates.
Mas o acordo de 1997 dá razão ao PSD. O líder parlamentar do PSD citou parte do acordo de revisão constitucional, assinado em 1997 pelos dois maiores partidos, PS e PSD, para dizer que a intenção do legislador sempre foi a da possibilidade de renovação, deitando por terra o argumento de António Costa. O texto diz o seguinte, de forma clara: “Acordaram ainda na definição dos mandatos dos altos cargos de juiz do Tribunal Constitucional, que terão mandatos de 9 anos, não renováveis; a PGR terá mandato de 6 anos, sem limitação de renovação; e o presidente do Tribunal de Contas terá mandato de 4 anos, sem limite de renovação”. Hugo Soares lembrou inclusive que, na altura daquele acordo, António Costa era secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, pelo que devia estar “inteirado” do espírito da lei. António Costa, no entanto, nunca respondeu à provocação de Hugo Soares.
Saúde. Mais investimento não impediu o “caos” nas urgências
A “gota” no défice que ajudou ao caos nas urgências. Só o PSD deixou o tema escapar. O BE ligou a Saúde ao défice para acusar o Governo de ir além do acordo com Bruxelas: o défice de 2017 acabou nos 1,2% com uma poupança adicional de 335 milhões de euros. Essa “gota” nas contas públicas que, diz Catarina Martins, para o Serviço Nacional de Saúde “faz toda a diferença”. O PCP continuou com o fogo amigo sobre o Governo. Jerónimo de Sousa lamentou a “imagem degradante” de doentes amontoados nas urgências hospitalares — “mesmo descontando as imagens manipuladas que têm vindo a público” — e pediu ação do Governo para uma “resolução dos problemas mais imediatos”. Costa diz que já há um plano de contingência em vigor e o PEV aproveitou a deixa: há uma “situação caótica nas urgências”, profissionais “arrasados pelas horas contínuas”, os “corredores lotados com macas” e planos de contingência que parecem ficar aquém da resposta necessária. “Uma situação que nos leva a questionar se os planos de contingência são suficientes”, disse Heloísa Apolónia. Assunção Cristas confrontou o primeiro-ministro com o número de unidades de saúde familiar (USF) abertas e acabou a ouvir conselhos de António Costa: “Nunca peque por excesso”, disse o chefe do Governo, depois de a centrista ter acusado o Governo de não ter inaugurado qualquer USF em 2017 (quando inaugurou 23).
Cativações não explicam “caos”. Às críticas, António Costa respondia quase sempre com números. A poupança no défice foi conseguida mesmo com um investimento de mais 5,5% no setor, que se traduziu em mais profissionais de Saúde, mais consultas, mais centros de saúde, mais camas de cuidados continuados. “Temos feito o que nos é possível para que o sistema funcione melhor”, garantiu o primeiro-ministro, que rejeitou a ideia de que foram as “cativações” a causar a situação atual, porque esse aperto não afetou o setor da Saúde. Já no final, avançou uma explicação para a saturação dos serviços. “Aquilo que tem aumentado significativamente são as infeções respiratórias associadas ao envelhecimento da população. Ao longo da última semana atendemos 20 mil situações de urgência por dia. Apesar do reforço que tem vindo a ser feito, quando há 20 mil pessoas que aparecem a mais nas urgências obviamente há um ponto de tensão que gera elementos de rotura”.
Montepio e Santa Casa? Por acaso não foi ideia minha, mas…
Não foi ideia de António Costa, mas o primeiro-ministro concorda. Foi mais ou menos desta forma que António Costa chutou para canto a entrada da Santa Casa da Misericórdia no capital do banco Montepio. Num momento em que se discute a paternidade da ideia, o primeiro-ministro subscreveu as potencialidades do plano: “Não sei de quem foi a ideia, mas é uma ideia boa. Só tenho pena de que não tenha sido minha”, disse António Costa, argumentando que, sendo o Montepio um banco do terceiro setor, uma eventual entrada da Santa Casa da Misericórdia faria todo o sentido.
Mas quando? E quanto custa? Ainda ninguém sabe. Apesar das certezas de António Costa, ainda ninguém sabe se o plano vai mesmo para frente. As últimas notícias apontam para que a Santa Casa de Misericórdia tenha de investir 200 milhões se quiser ficar com 10% do capital do banco, o que equivaleria a dois terços dos seus imóveis. Na opinião pública vão-se somando as vozes que dizem que o negócio seria desastroso para a Santa Casa (Marques Mendes, Bagão Félix, José Miguel Júdice). Mas sobre valores, prazos ou riscos, António Costa não disse uma única palavra. Ainda falta conhecer a auditoria encomendada por Santana Lopes.
EDP. António Mexia inimigo número 1 do Estado
Esquerda ao ataque… A questão foi levantada por Catarina Martins: a coordenadora do Bloco de Esquerda exigiu ao Governo que tomasse uma medida concreta em relação à recente decisão da EDP de deixar de pagar a contribuição extraordinária sobre a energia (CESE). Num tom particularmente duro, a bloquista acusou António Costa de nada fazer para combater estes interesses instalados na energia e desafiou o Executivo socialista a fazer mais. “O que é que a EDP tem de diferente das outras? Porque é que à EDP se aceita todo o desrespeito pela lei? Não basta dizer que a EDP é hostil”, atirou a bloquista. Jerónimo de Sousa acabaria por perguntar o mesmo, estendendo o problema à Galp: vai o Governo permitir a atuação impune da Galp e da EDP, que se recusam a pagar a contribuição extraordinária?
António Costa nas transições rápidas. Na resposta aos parceiros parlamentares, o primeiro-ministro transitou rapidamente do discurso responsável, lembrando que o Governo tem de cumprir a lei, ao ataque, dizendo que a EDP tem de pagar o que deve. Em resposta à bloquista, o primeiro-ministro lembrou que, a propósito das rendas excessivas, o Governo só podia renegociar os contratos em vigor dentro do atual quadro legal. “Somos obrigados a cumprir os contratos que estão em vigor. Estamos a procurar, no quadro da lei, fazer a mudança que é possível. Não estamos satisfeitos, mas vamos prosseguir”. Em resposta a Jerónimo de Sousa, Costa foi mais longe: “Quem deve, paga. E a EDP deve pagar”, afirmou o socialista. Isto, antes de atacar, de forma velada António Mexia, presidente executivo da EDP: para o primeiro-ministro, “é absolutamente inaceitável” que a EDP tenha alterado o seu entendimento sobre a CESE em função da nova maioria parlamentar. “Diz muito sobre o que acontece hoje na EDP”, criticou o líder do Executivo.
Governo tem motivos para preocupações. Como explicava aqui o Observador, a CESE foi criada em 2014 e deveria ter permitido ao Estado arrecadar 655,4 milhões de euros até final do ano 2017. Acontece que, ao fim de três anos, só tinham entrado no cofres do Estado cerca de 317 milhões de euros nos cofres do Estado. Isto significa que estava por cobrar mais de metade da receita associada a esta contribuição. A discussão deverá, por isso, arrastar-se ao longo dos próximos meses.
CTT. Novo ano. Take 2
A esquerda não pode esperar. António Costa começou o ano de 2018 tal como terminara o ano de 2017. No último debate quinzenal, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa questionaram o Governo sobre o que pretendia fazer para resolver o problema chamado CTT. Desta vez, foi Jerónimo de Sousa a insistir na pergunta: o que pretende fazer António para “impedir a destruição dos CTT?”, perguntou o comunista.
Mas António Costa diz-se de “mãos atadas”. Apesar da insistência, o primeiro-ministro voltou a explicar que estava de “mãos atadas” e dependente da fiscalização da ANACOM. Até que a Entidade Reguladora não diga que o contrato de concessão não está a ser cumprido, o Governo tem poucas alternativas, admitiu Costa. Ainda assim, deixou uma crítica e uma promessa. “Quando a qualidade de um serviço não é medida pela satisfação do cliente, nem pelo desempenho da empresa”, alguma coisa está errada, começou por notar o socialista, para logo a seguir prometer: “No momento próprio tomaremos as decisões que tivermos de tomar”.