O PS fez saber esta terça-feira que quer legalizar a eutanásia, com um projecto próprio no Parlamento tal como o Bloco de Esquerda, e o novo líder do PSD já fez saber que é a favor. O quadro político parece indicar que a Assembleia da República está a um passo de aprovar a eutanásia em Portugal, da primeira vez que o Parlamento vota este assunto. Mas há um factor que pode baralhar as contas da aprovação desta matéria: a liberdade de voto das duas maiores bancadas.
Os socialistas têm liberdade de voto em todos os assuntos, à exceção de matérias como o Orçamento do Estado, e o PSD deverá dar liberdade de voto aos seus deputados, indica ao Observador o deputado social-democrata Carlos Abreu Amorim. Mesmo que as respetivas direções tenham posições claras sobre o assunto, não é garantido que as opiniões dos 175 deputados que compõem os dois maiores grupos parlamentares vão no mesmo sentido. No PSD, Abreu Amorim não arrisca dizer o que acontecerá e, no PS, Maria Antónia Almeida Santos também não.
“É uma matéria que se prende muito com a ciência de cada um”, diz Antónia Almeida Santos, a deputada responsável pela redação do projeto socialista e que em março passado viu a Comissão Nacional do PS aprovar a sua moção (e de Isabel Moreira) a defender a eutanásia. E haverá divergências, a começar na sua própria bancada. Por exemplo, o deputado Ascenso Simões é contra. Num artigo publicado há um ano no jornal i, o socialista escreveu que “a eutanásia, como cutelo definitivo que autorizamos a nós próprios, se reveste de uma dimensão que nenhum de nós, em especial os que perante a situação se apresentam, deve poder assumir. Ninguém tem todos os dados para decidir morrer. Ninguém se reveste do saber sobre o futuro que impeça continuar a viver”.
Neste momento já é certo que os socialistas pretendem ter o projecto pronto para avançar esta sessão legislativa, com a deputada do PS a dizer ao Observador que a intenção é que isso aconteça bem antes do verão. Entretanto, esta terça-feira, entrou no Parlamento o projeto do Bloco de Esquerda sobre a matéria, que se junta ao que já foi entregue o ano passado pelo PAN [mais abaixo pode ler o que pretende cada um dos partidos que já têm iniciativas].
Maria Antónia Almeida Santos e Isabel Moreira ainda não têm o projecto fechado, mas dizem que aprovavam a iniciativa do Bloco, caso fosse a votos já amanhã. Almeida Santos admite que o projeto do PS terá “ligeiras diferenças” e até aponta as “muitas garantias e restrições” que o Bloco quis introduzir no seu projeto, mas não adianta se o do PS será menos restritivo no acesso à possibilidade de antecipação da morte.
A intenção dos socialistas é dar “autonomia individual a quem tem um diagnóstico irreversível”, numa “situação muito concreta”, reforça Maria Antónia Almeida Santos. A deputada soube esta terça-feira que a sua iniciativa individual — os deputados têm autonomia para isso — teria o apoio da direção parlamentar. À Lusa, Carlos César fez saber que “sem prejuízo da liberdade de voto que tem aplicação geral e, neste caso em especial, o PS apresentará um projeto próprio para a legalização da eutanásia”.
No entanto, há precisamente um ano, o mesmo dirigente socialista tinha dito que “o grupo parlamentar do PS não terá uma posição oficial sobre essa matéria. Cada deputado decidirá consoante a sua consciência a posição que deve tomar”. Carlos César não se mostrou disponível para fazer mais declarações sobre o assunto esta terça-feira. Já Maria Antónia Almeida Santos diz que, na altura daquelas declarações do líder parlamentar, a Comissão Nacional do PS (o órgão máximo entre congressos) ainda não tinha aprovado a sua moção a defender a despenalização da eutanásia.
No Partido Socialista, o líder também não tem uma posição clara sobre esta matéria. Em abril do ano passado, numa entrevista à rádio Renascença, António Costa foi questionado e acabou por hesitar na resposta: “Eu se fosse deputado… Não tenho a certeza como votaria, sou-lhe totalmente sincero. Sei que não votaria contra, não sei se votaria a favor“. E acrescentou:
Acho que é uma opção de consciência de cada um e admito que a lei possa confiar ao juízo médico essa responsabilidade. É para mim um debate particularmente difícil, não por razões religiosas, mas por ser um optimista impenitente. Em matéria de consciência, a minha posição é sempre uma posição de respeito pela liberdade de cada um”, disse António Costa há um ano.
No PSD, o líder cessante, Pedro Passos Coelho, promoveu, há um ano, um colóquio sobre o assunto. Logo nessa altura deu indicações ao grupo parlamentar de que o tema seria sempre abrangido pela liberdade de voto na bancada e também disse que depois das autárquicas o partido teria uma posição oficial. E teve, mas pela voz do líder que se seguiu e já não pela de Passos Coelho. Na campanha interna, depois da demissão de Passos no pós-autárquicas, Rui Rio reafirmou o que já se sabia: é a favor da despenalização da eutanásia. O Observador questionou Carlos Abreu Amorim sobre a intenção social-democrata de poder ter uma iniciativa própria sobre a matéria, mas em plena mudança de ciclo do partido, o deputado diz que não teve qualquer indicação nesse sentido.
Numa conferência no Porto, em 2016, promovida pelo movimento cívico “Direito a morrer com dignidade”, Rui Rio defendeu que “uma pessoa em situação terminal, sabendo que já não existe esperança, tem o direito de escolher em antecipar a morte”. E assinou mesmo o manifesto do movimento, a defender a despenalização da morte assistida, bem como a deputada do PSD Paula Teixeira da Cruz. Na lista de signatários estão os deputados do PS Alexandre Quintanilha, Isabel Moreira e Antónia Almeida Santos e ainda os deputados do BE Mariana Mortágua e José Manuel Pureza. Estão também outros nomes como José Pacheco Pereira, Sampaio da Nóvoa, Miguel Esteves Cardoso, Sobrinho Simões, Mário Nogueira, Fernando Rosas ou Francisco Louçã.
No quadro parlamentar ainda não é certo o que fará o PCP. Mas já está certa a posição do CDS: “Somos contra”. Nuno Magalhães é taxativo na resposta ao Observador e garante que, na bancada que lidera, não há posições diferentes desta, ao contrário do que já aconteceu noutras matérias de consciência. E quanto à possibilidade de o CDS vir a propor um referendo, Magalhães diz que “esta matéria não é referendável para o CDS porque o CDS é contra a eutanásia”. Ainda assim, diz que o aceitará se “uma maioria conjuntural o quiser impor”.
Já o Presidente da República foi sempre cauteloso quando teve de falar sobre este tema, apesar de ser tendencialmente contra a eutanásia, até pelo seu catolicismo. Mesmo na campanha eleitoral para as presidenciais, numa entrevista à Renascença, mediu as palavras quando respondeu à pergunta: o que fará perante um diploma que legalize a morte assistida? “Eu teria de olhar para a lei e ver se no quadro daquilo que eu entendo que é a conjugação da minha convicção, das minhas convicções, com a avaliação objectiva da realidade que ali me é apresentada se se justificava tomar uma posição positiva ou negativa”. Mas não disse qual era sua posição.
Mais recentemente, voltou a ser contido. “É uma matéria que eu conheço razoavelmente bem, que acompanhei, sobre a qual tenho opinião, mas relativamente à qual a minha posição tem sido firmemente a mesma: é importante que haja um debate amplo e profundo na sociedade portuguesa”. Quanto ao que fará quando for confrontado com o tema em Belém — e agora a hipótese está mais próxima do que alguma vez esteve — Marcelo não quis antecipar cenários. Defendeu que o Presidente “deve reservar a sua intervenção para o momento em que, se e quando a questão lhe for suscitada, tiver de se pronunciar sobre o processo de decisão ou sobre a substância da decisão, de uma perspectiva jurídica ou de uma perspectiva ética e comunitária”.
Na passada sexta-feira, dia 2 de fevereiro, Marcelo Rebelo de Sousa recebeu os bloquistas João Semedo e José Manuel Pureza — este também católico — para “perceber qual o pensamento subjacente” ao projeto de lei para a despenalização da eutanásia e que foi apresentado no dia seguinte numa conferência em Lisboa. Se as reservas que tiver forem apenas de consciência pessoal, o Presidente da República não deverá vetar se houver uma posição clara na Assembleia da República.
E o que querem os partidos que já avançaram?
Para já, no Parlamento, entraram projetos dos partidos Pessoas-Animais-Natureza (PAN) e do Bloco que tem uma iniciativa legislativa mais restritiva. O partido admite que a antecipação da morte possa ser pedida por qualquer “pessoa com lesão definitiva ou doença incurável e fatal e em sofrimento duradouro e insuportável”. No caso do PAN, a doença ou lesão do doente não tem necessariamente de ser fatal.
Para o Pessoas-Animais-Natureza, tem de estar em causa uma doença ou lesão “incurável, causadora de sofrimento físico ou psicológico intenso, persistente e não debelado ou atenuado para níveis suportáveis e aceites pelo doente” ou uma “situação clínica de incapacidade ou dependência absoluta ou definitiva”. Para BE e PAN, apenas os maiores de idade com nacionalidade portuguesa ou que residam em Portugal podem pedir para que a sua morte seja antecipada.
Também para ambos os partidos, o pedido tem de ser feito de forma “livre” pelo próprio doente que esteja “consciente” e que se mantenha lúcido durante todo o processo e sempre que tenha de reiterar a sua vontade perante os médicos de diferentes especialidades com os quais tenha contacto.
BE e PAN também exigem que o pedido, apresentado por escrito, seja preenchido e assinado pelo próprio doente. Nos casos em que isso não seja possível – por “impossibilidade” de o doente escrever e assinar –, esse requerimento pode ser preenchido por uma pessoa “por si indicada” (segundo o PAN) ou “da sua confiança” (na versão do BE).
Os dois diplomas coincidem no número de clínicos a consultar durante o processo – três, entre o médico assistente, um segundo clínico (que, para o BE, tem de ser especialista na patologia de que o doente sofre) e um especialista em psiquiatria. Se qualquer um destes médicos emitir um parecer negativo sobre o pedido, o processo é imediatamente interrompido.
Este é um dos pontos em que surgem diferenças nos projetos de lei dos dois partidos. No caso do PAN, fica à partida consagrada a possibilidade de o doente requerer uma reapreciação de um parecer negativo. Nesse caso, esse pedido — que só pode ser apresentado uma vez — tem de ser formalizado até 30 dias após a emissão do primeiro parecer. A reapreciação deve ser feita por um clínico que não o autor do parecer negativo. Já no projecto do Bloco, não está prevista essa possibilidade.
Quanto ao número de vezes que o doente tem de confirmar de forma clara a sua vontade de pôr termo à sua vida, o Bloco é claro e define que essa confirmação deve acontecer por cinco vezes. A pergunta deve ser feita pelos vários médicos envolvidos no processo. No projeto do PAN, por outro lado, faz-se referência à obrigação de o médico assistente conversar um “número razoável de vezes” com o doente de modo a, “em consciência, se aperceber se a vontade deste, manifestada no pedido, se mantém”. Fica, por isso, ao critério dos clínicos o número de confirmações expressas necessária para que seja sanada qualquer dúvida sobre a vontade do doente.
Em ambos os casos, no momento antes de o fármaco ser administrado ou entregue ao doente, tem de haver uma confirmação expressa da vontade do mesmo – e o doente pode, a qualquer momento, revogar a sua vontade, interrompendo-se de imediato o processo.
Entre os dois projetos, há também uma diferença no médico a quem os doentes apresentam o seu pedido de antecipação da morte. O BE admite que seja sempre o doente a escolher o médico a quem pretende entregar o pedido, seja o médico de família, o médico que o acompanhe nos serviços hospitalares ou outro. O PAN restringe esse universo ao médico de família ou ao clínico que já tenha acompanhado o doente em ambiente hospitalar.
Mas um dos maiores contrastes entre os dois diplomas diz respeito à tomada de decisão. Na proposta do PAN, há um artigo exclusivamente dedicado à “decisão sobre o pedido de morte medicamente assistida”, o nono artigo. Aí, lê-se que “a decisão final sobre o pedido de morte medicamente assistida cabe ao médico assistente” do doente. O BE é menos concreto. Essa referência, implícita, surge no articulado em que explicita a data, o local e o método a seguir para concretizar a antecipação da morte. O diploma refere que, não havendo objeções de nenhum clínico, e mantendo-se inabalável a decisão do doente, “o médico responsável combina com o doente” os pormenores para a antecipação do fim de vida.