Chamou-lhe “império da austeridade”, porque a a Europa ainda falava sobretudo de medidas austeritárias, de procedimentos por défice excessivo, de cortes e mais cortes quando António Costa subiu ao palco do congresso socialista paramfalar ao partido como primeiro-ministro. No congresso do PS, em junho de 2016, ainda estava fresca no papel a tinta do acordo com o BE, PCP e PEV, que permitiu ao líder socialista chegar a São Bento. O chefe do Governo português — que esta quarta-feira de manhã, às 08h30 de Lisboa, discursa no Parlamento Europeu sobre o “Futuro da Europa” — recusava qualquer “submissão” às instituições europeias e exigia ter “uma palavra a dizer” nos destinos o projeto europeu. Perante os militntes do partido, afirmava querer cortar com a imagem de “bom aluno” que cumpre, de cabeça baixa, as regras ditadas pelos grandes Estados europeus. Entretanto, o discurso do primeiro-ministro sobre a Europa foi evoluindo ao longo destes dois anos. Perceba como.
O primeiro-ministro garantia que não se tratava de uma “atitude de confronto com as instituições europeias” e que, “entre a obediência e a subserviência”, havia mais caminhos por onde seguir. “Do que se trata é de participar mais ativamente, e com espírito construtivo, no projeto europeu. ” O tom geral das intervenções dos congressistas naquele pavilhão da FIL, em Lisboa, era sobretudo o de um medir de forças com Bruxelas, o que contrastava com a postura do Governo anterior.
Não podemos estar na UE atentos e obrigados à espera, nem aceitar a submissão, somos iguais entre iguais”, disse aos militantes socialistas.
Na sua moção ao Congresso de 2016, António Costa apontava quatro grandes eixos de crítica e de alerta aos responsáveis da União Europeia: a economia, a crise dos refugiados, a ameaça terrorista e, à sombra dos três anteriores, o populismo, o nacionalismo e o euroceticismo que já avançavam não só em países do norte mas também do centro da Europa (veja-se a vitória de Le Pen nas eleições de 2014).
No mesmo texto — coordenado pelo eurodeputado Pedro Silva Pereira — o secretário-geral do PS defendeu um Novo Impulso para a Convergência (assim, com letras maiúsculas) para dar “sentido” ao projeto europeu. Na opinião de António Costa, o “diálogo europeu entre iguais” foi substituído por uma “constante negociação conflitual entre credores e devedores. O espírito de solidariedade parece substituído pela ditadura do ‘risco moral’” e o “esforço de coesão suplantado pelo império da austeridade”.
O chefe do Governo classificava ainda, na sua moção, como uma “intolerável incerteza” o real significado “de conceitos decisivos como os de ‘crescimento potencial’ e ‘défice estrutural’”, que condicionam os orçamentos nacionais. “São apenas exemplos de matérias que exigem revisão”. Agora com Mário Centeno a presidir ao Eurogrupo, o Governo português terá possibilidade de colocar estes temas na agenda.
António Costa também propôs a criação de um FMI para a Europa, que já era uma ideia que Pedro Passos Coelho também apoiava: “O Mecanismo Europeu de Estabilidade, uma solução improvisada no pico da crise, deve evoluir para um autêntico Fundo Monetário Europeu, com o músculo financeiro necessário para auxiliar os Estados-membros em períodos de instabilidade financeira e dificuldades no acesso ao crédito internacional”, defendia Costa na moção de há dois anos.
“A confluência destas crises” — economia, refugiados e terrorismo —, dizia o líder do PS há dois anos, “interpela os alicerces e as estruturas do projeto europeu como em nenhum outro momento histórico” e “convoca a reflexão, o contributo e a intervenção do Partido Socialista para que a União Europeia seja capaz de superar as dificuldades do presente e, honrando os seus valores e os seus ideais, se afirme como um projeto democrático de paz, prosperidade e coesão”.
Moção de António Costa. Contra o “vírus da fé excessiva” nos mercados
A mensagem de fundo esteve sempre lá: mesmo agarrado a partidos como o BE e o PCP — que ou contestam as regras europeias ou contestam a própria essência do projeto europeu —, António Costa disse desde o início que o futuro da Europa passa por um regresso aos princípios fundadores da União Europeia, à aposta da convergência, a um aprofundamento da comunidade que atenda à realidade interna de cada um dos (em breve) 27 Estados que integram a União. “Porque sem essa ideia de convergência, sem a ambição de mais prosperidade para todos e de mais coesão económica, social e territorial, o projeto europeu não faz sentido. E um projeto sem sentido não terá futuro”, antecipava em junho de 2016, precisamente quando o Reino Unido votava a saída do país da União Europeia.
Há quase dois anos, Costa apontava sete orientações estratégias para a relação que Portugal passaria a promover junto das instituições europeias: a par da tal fidelidade ao projeto europeu e aos seus valores (que ficariam mais explícitos no final do ano passado, numa intervenção no Colégio da Europa), o Governo iria defender a “flexibilidade” das regras orçamentais e promover uma “agenda de verdadeiras reformas estruturais”; também garantia defender o reforço do papel do Parlamento Europeu e do “escrutínio democrático pelos cidadãos europeus”, sublinhando a importância de defender “os interesses de Portugal” na União. Portugal que estaria “na primeira linha da União da Energia e da União Digital”.
A revolta suave dos amigos do Sul
O braço de ferro com Bruxelas não se esgotou no congresso de Lisboa. Cinco meses mais tarde, o primeiro-ministro viajava até Atenas para participar na primeira cimeira de países do Sul da Europa.
António Costa em Atenas para a cimeira de líderes de países do sul da Europa
António Costa sentou-se à mesa com alguns parceiros improváveis. O encontro teve como anfitrião Alexis Tsipras — ele que, junto com o seu efémero ministro das Finanças, Varoufakis, personalizaram o “mau aluno” da Europa num dos períodos mais críticos da gestão da crise financeira. No encontro participaram líderes de outros quatro países do Mediterrâneo: França, Itália, Malta e Chipre. Faltou Mariano Rajoy, o primeiro-ministro espanhol, que justificou a sua ausência com o facto de o Governo de Madrid estar em gestão para, na prática, ficar fora de uma cimeira vista como o momento fundador de uma nova atitude de todo um bloco de países perante a União Europeia (UE). O encontro de Atenas foi encarado como uma provocação ao poder de Bruxelas.
Temos de saber assumir na UE uma posição que defenda também a perspetiva de todos estes países (do sul)”, disse António Costa em Atenas.
Ao mesmo tempo, defendia um “reforço do investimento” público e dizia que países com “largos excedentes” — e a Alemanha era caso paradigmático — tinham de cumprir o seu “dever de investir mais”.
O tom era de exigência. Costa estava num registo diferente do atual; mas também estava a Europa.
O discurso de Bruges: o regresso ao passado é a solução para o futuro
O tom mais crispado, de exigência pura e dura a Bruxelas, terá atingido o seu ponto mais alto na contestação ao preço que o país arriscava pagar pelo procedimento por défice excessivo nos últimos anos de governação de Pedro Passos Coelho. Depois, o balão foi esvaziando e a tensão esbateu-se ao longo do tempo.
Há pouco mais de meio ano, na Bélgica, a intervenção do primeiro-ministro na abertura do ano letivo do Colégio da Europa continuava a denotar uma defesa clara de reformas dentro das instituições europeias. Mas Costa confessava também “orgulho” nos valores da União e uma “confiança no valor acrescentado” do projeto europeu.
A par das juras de fidelidade, Costa fazia a defesa de um regresso a um passado distante, sob a ideia de que é nos princípios fundadores da União Europeia que reside a solução para o futuro da Europa. “Nos últimos trinta anos, a Europa e o mundo mudaram profundamente, enfrentando novos desafios, não menos exigentes. Mas apenas poderemos vencê-los se os valores continuarem no coração do nosso projeto, como primeira linha de proteção dos cidadãos”, disse Costa em Bruges, Bélgica, há apenas seis meses.
Costa defende conclusão da união económica na zona euro e dá Portugal como exemplo na UE
Nessa intervenção, enumerou os valores centrais a que a Europa deve regressar. Valores como a “liberdade, democracia e direitos humanos, sem cedências à demagogia e ao relativismo multicultural”, com uma “firmeza na defesa do primado da dignidade da pessoa humana contra a xenofobia” e no combate à “discriminação das mulheres, seja qual for o seu pretexto, cultural ou religioso”.
Com o Reino Unido em processo de divórcio com a União Europeia, Costa deixava clara a sua fidelidade ao projeto europeu, ao afirmar que “nenhum dos grandes desafios que enfrentamos será melhor resolvido fora da União, isoladamente por cada Estado membro, por maior ou mais forte que se iluda ser”.
À boleia do argumento de que o PS é o paartido “mais europeísta” em Portugal, António Costa tem deixado sempre claro que nunca, para os socialistas, esteve em causa a dedicação à União Europeia. O caminho, para o PS, faz-se rumo ao aprofundamento do projeto europeu e a uma União “mais coesa, económica, social e politicamente”.
Mas essa declaração de fidelidade incondicional não esconde a necessidade de reformar os mecanismos europeus, alguns dos quais nasceram condicionados pela necessidades de responder o mais rapidamente possível a economias que se afundavam. “Os quadros [financeiros] anteriores corrigiram alguns desequilíbrios macro-económicos internos. Cabe-nos agora conceber o próximo quadro de forma a não acentuar as assimetrias”, dizia Costa na Bélgica.
E, a fechar a intervenção — num momento em que já nem Bruxelas nem Berlim duvidavam de que Portugal, liderado por um Governo socialista cuja viabilidade ainda depende da esquerda parlamentar mais à esquerda — Costa deixava a garantia à Europa: “Portugal está firmemente comprometido com os objetivos do equilíbrio orçamental, da redução progressiva da dívida pública e com a manutenção dos fatores de competitividade internacional da economia portuguesa”.