A ascendência de Zinédine é argelina. O mais novo de cinco filhos, Zinédine cresceu em La Castellane, nos subúrbios de Marselha.

A criminalidade imperava em La Castellane. Mas Zinédine escolheu, cedo, bem cedo, o próprio destino: ser futebolista profissional. E passava dias e dias, até ser já de noite, a alisar a borracha à sola das sapatilhas na Place Tartane. Queria trocar aquela place da infância por  relvados, ou pelados, ou quaisquer campos limitados por marcas de cal, não importava, e o primeiro clube de Zinédine foi o modesto Victório Mello, seguindo-se o também modesto Septèmes-les-Vallons. Deu nas vistas.

Com imberbes 14 anos foi fazer captações ao Cannes. A captação de Zinédine deveria ter a duração de seis semanas, até o treinador decidir se ficava ou não. Mas volvido o primeiro treino o contrato estava já em cima da mesa. Ao fim de três anos estreou-se nos seniores, frente ao Nantes. Estávamos a 20 de maio de 1989. Na penúltima jornada do campeonato. O primeiro golo tardou. Foi só a 10 de fevereiro de 1991, curiosamente também defrontando o Nantes. O seu Cannes venceu 2-1. E o presidente do clube de então, Alain Pedretti, ofereceu-lhe de presente um carro, um modesto Renault Clio, de um encarnado vivo. A despedida de Cannes aconteceria em 1991/92, temporada em que clube desceu à segunda divisão.

O Bordéus pagou então sete milhões de euros pela contratação de Zinédine.

Zinédine Zidane era já um dos melhores. Mas a vitória no França 98 elevou-o ao “Olimpo” do futebol (Créditos: THOMAS COEX/AFP/Getty Images)

Na terceira temporada em Bordéus foi treinado pelo português Toni. Estávamos em 1994. “Eu dizia-lhe, no Bordéus, que havia três palavras para chegar ao sucesso: trabalho, trabalho, trabalho”, contou o treinador ao Observador em 2016, aquando da apresentação de Zinédine como treinador principal do Real Madrid. Curiosamente, nessa apresentação, a palavra mais repetida por Zinédine foi “trabalho” — o francês deu-lhe uso 14 vezes. “A última vez que estive com ele foi há quatro ou cinco anos, num jogo contra a pobreza, no Estádio da Luz. Fui lá ao hotel onde estavam e o Dugarry [que jogou com Zinédine no Bordéus de Toni], quando me viu disse logo ‘travail, travail, travail!’; eu respondi ‘estás a ver, não te esqueceste!’”, lembrou.

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Mas quem era, afinal, Zinédine, então com 21 anos? “Era introvertido. E com essa idade não projetamos o futuro. O Zidane era um jogador que tinha já uma técnica fabulosa. Nunca pensei que seria três vezes o melhor jogador do mundo. Nem ele pensaria em treinar o Real Madrid! Quando eu lá cheguei, ao Bordéus, o presidente disse-me que o Zidane só durava 60 minutos. Eu estava com o Jesualdo [Ferreira, o adjunto] e disse que os jogadores de classe não duram 60 minutos, duram 90.” E duraria.

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Em 1996/97,  Zinédine trocou o Bordéus pela Juventus. Tinha meia Europa à perna, depois de deslumbrar (ainda que sem trazer o “caneco” que só venceria em 2000) no Euro 96. Mas antes mesmo da Juventus de Marcello Lippi (talvez, a par de Carlo Ancelotti, o treinador que mais influenciou o Zinédine treinador) também o Blackburn Rovers, de Inglaterra, o pretendia. Ou melhor, pretendia-o o treinador Ray Harford. O presidente, Jack Walker, negou a Harford a vontade: “Para quê contratá-lo quando temos o Tim Sherwood?”, respondeu.

Foi para a Juventus e conquistou tudo o que havia para conquistar em Itália. Trocou depois, já campeão da Europa e do Mundo, já com um par de Ballon D´Or ganhos, a Juventus pelo Real Madrid. Um “galático” mais a vestir de branco, no Verão de 2001 e a troco de 76 milhões de euros, que o tornaram, naquele momento, no futebolista mais caro da história.

No Real ganhou a Liga dos Campeões como jogador e o golo que marcou ao Leverkusen na final do Hampden Park, em Glasgow, no ano de 2002, foi talvez o melhor de sempre na história das finais. Venceu outras três como treinador, cargo que assumiu em 2015/16 depois de ter sido quase tudo no Real: diretor, adjunto de Ancelotti e treinador do Castilla, equipa secundária dos madrilenos.

Não há muito a dizer sobre o Zinédine jogador. Quem viu, viu. Quem não, que reveja. E reveja, reveja, reveja. Poucos houve com a classe, a técnica, mestria e visão de Zinédine. Talvez ninguém.

A inspiração foi o uruguaio Francescoli, Enzo Francescoli — o filho mais velho de Zinédine chama-se precisamente Enzo, em homenagem ao ídolo do seu pai. Francescoli passou por Marselha, cidade (e emblema da infância) de Zinédine apenas uma época (1989/90) mas foi o que bastou para despertar a atenção do aspirante a futebolista. E Zinédine tentava replicar os gestos do ídolo. “Nunca o tinha visto ao pé de mim, só da bancada e ele no relvado. Morreria se o conhecesse. Ele, para mim, é… bufffff!”, confidenciou algures na década de 1990. E prosseguiu: “Sim, tentava copiar tudo, tudo, tudo. O que ele fazia em campo, eu queria sê-lo também.”

Conheceram-se em 1996. E ninguém morreu. Juventus e River Plate disputavam o título de campeão mundial de clubes, a Intercontinental. Os italianos venceram 1-0, com um golo de Del Piero, mas o que aconteceu a seguir é que foi realmente importante para Zinédine, mais até do que a conquista do troféu. “Ele deu-me a sua camisola, era para o meu filho mais velho, o Enzo. Ele dormiu com ela…”, contou. Anos mais tarde, Francescoli sentenciou que o “aluno era superior ao mestre, por tudo o que conquistou”.

Hoje Zinédine, o treinador Zinédine, é absolutamente sereno. Impenetrável. Não se lhe ouve um grito que seja. Não esbraceja. Não esperneia. Raramente se manifesta. O topo da manifestação teve-o no golo acrobático de Cristiano Ronaldo à Juventus esta temporada — mas mesmo aí só esboçou um sorriso incrédulo com tal preciosidade futebolística e esfregando a careca por instantes.

Mudou. Como jogador, e lembre-se a final do Mundial 2006, Mundial da sua despedida inglória, por vezes até perdia a cabeça. Lá, na Alemanha, agrediu à cabeçada o italiano Marco Materazzi na final. Foi a última vez. Mas não a primeira.

Toni recordou ao Observador um episódio de Bordéus. “Lembro-me que num jogo com o Saint-Étienne houve uma confusão entre um polaco e o Zidane. Houve agressões mútuas, o Zidane apanhou e respondeu. Conclusão: o árbitro expulsou o polaco e o jogo prosseguiu. Estávamos a ganhar 1-0, mas acabámos por perder, com um golo quase no fim do Laurent Blanc.” A história continua: “Na segunda-feira foram chamados à comissão de disciplina, em Paris. O Sénac, o Zidane, o Lizarazu, o Dugarry e o diretor desportivo, o Battiston. Fiquei logo sem as barras de ouro! O Sénac apanhou três meses, o Dugarry levou quatro jogos, o Lizarazu também, e o Zidane, com uma coleira ao pescoço — por causa da agressão do polaco –, ficou um mês parado”.

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