Foi como ver Donald Trump, de mãos unidas pelos pulsos, estendidas sobre a sua mesa na Sala Oval, na Casa Branca, e um garrote a apertar mais e mais e mais com a informação de cada nova linha do artigo de opinião — ao mesmo tempo anónimo e, também por isso, raro — publicado esta quarta-feira pelo The New York Times. Um “alto funcionário” (ou funcionária) da Administração norte-americana revela que há uma “resistência” silenciosa que trabalha diariamente para que o Presidente dos Estados Unidos em funções não se destrua e não destrua, nesse processo, um país inteiro. É uma sabotagem contra o poder que nasce nos corredores do poder. Depois da revelação explosiva, a obsessão: quem é esse “garganta funda”? Alguns dos principais “suspeitos” já começaram a negar a autoria.
Há todos os protagonistas que gravitam ou gravitaram à volta de Trump e que estão sob escrutínio apertado da Justiça (por crimes fiscais, por suspeitas de conspiração, por obstrução a esses mesmos processos, etc, etc, etc.); há uma taxa de popularidade dos Presidente dos EUA que, um ano e meio depois de assumir funções, e apesar das pretensões de Trump, está em queda; há o risco de os Republicanos perderem a mão na Câmara dos Representantes para uma oposição feroz, unida na queda do inquilino do número 1600 da Avenida Pensilvânia, em Washington. E, depois, há a tal “resistência” dentro da sua própria casa, um conjunto de “altos funcionários que trabalham diligentemente” para “frustar partes da agenda” de Donald Trump e para contrabalançar “os seus piores humores”.
Quem denunciou a existência desse grupo? O artigo dá algumas pistas para o debate que tomou conta do debate público nos Estados Unidos. É, admite quem “assina” o artigo, um “alto funcionário”. Não é ninguém politicamente alinhado com a “esquerda” política do país. Pode até ser um funcionário “apontado” pelo Presidente norte-americano. É, sem dúvida, alguém que faz parte de um grupo determinado.
Muitos nomeados de Trump juraram fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para preservar as nossas instituições democráticas ao mesmo tempo que frustramos os mais equívocos impulsos do senhor Trump — enquanto ele permanecer em funções”, garante o artigo.
Seja quem for, conhece por dentro as ramificações da Administração norte-americana. “Da Casa Branca aos departamentos executivos e agências” do país, “funcionários seniores admitem em privado a sua descrença diária nos comentários e ações do comandante em funções.”
A longa parada de nomes — dentro e fora da Administração
As primeiras ondas de choque do artigo ainda se faziam sentir quando um debate paralelo àquele sobre o conteúdo do artigo começou a ganhar dimensão: jornais, canais de televisão, blogues, sites de apostas — cada um tem a sua tese, ou tem até várias teses, para chegar ao autor ou à autora do artigo. E começaram a rolar nomes.
As primeiras hipóteses eram algo óbvias. O “garganta funda” é a (atual) porta-voz da Casa Branca, Sarah Huckabee Sanders; ou então a conselheira Kellyanne Conway; ou ainda o general John F. Kelly, chefe de gabinete de Donald Trump. Todos eles estão suficientemente perto do Presidente dos EUA para poder colocar um grão que emperre na engrenagem.
Há até um episódio relativamente recente que mostra como, por exemplo, alguém como Kellyanne Conway pode agir (ou não agir) para interferir com a ação ou a imagem de Donald Trump. Dia 11 de setembro é publicado nos Estados Unidos o livro “Fear” (ou “Medo”), uma obra do jornalista Bob Woodward que relata a realidade dentro da Casa Branca e no qual constam, precisamente, episódios de funcionários que agiram deliberadamente para impedir determinadas decisões do chefe de Estado norte-americano. Woodward tentou por diversos meios obter uma entrevista com Trump para o livro, mas nunca conseguiu. Trump não gostou e ligou a Woodward para lhe dizer isso mesmo. Há, aliás, uma gravação dessa conversa que circula pela internet.
Num momento do diálogo entre Presidente e jornalista, Kellyanne entra na Sala Oval e, através do sistema de alta-voz, Woodward pede-lhe que se recorde sobre o momento em que lhe solicitou uma audiência com Trump. A conselheira guarda esse pedido na memória. “Então o que aconteceu?”, pergunta Woodward. “Fiz esse pedido, mas não tive resposta.” Fez o pedido? Não fez o pedido? Esquecimento? Ato deliberado? Certo é que o facto de não ter participado na obra deu a Trump o mote para atacar publicamente a credibilidade de Bob Woodward e do seu livro.
Mas a lista de possíveis autores é mais extensa que isso. Terá sido Melania Trump, a primeira-dama dos EUA, a denunciar o perfil errático do marido nas páginas de um dos jornais mais lidos do mundo? O nome consta, se não noutras, pelo menos na lista de 13 hipóteses que a jornalista da CNN Chris Cillizza reuniu.
Who will be revealed as the writer of the anonymous @nytimes Op-Ed essay?
Mike Pence -150
Betsy DeVos +200
Mike Pompeo +400
Steven Mnuchin +400
Jim Mattis +500
Jeff Sessions +500
Ivanka Trump 12/1
Jared Kushner 12/1
Stephen Miller 15/1Complete odds at https://t.co/VCyLpZrN7X pic.twitter.com/5yby2qph4Y
— Odds Shark (@OddsShark) September 5, 2018
Nessa enumeração cabem ainda o advogado da Casa Branca, Don McGahn, o diretor do Serviço Nacional de Informações, Dan Coats, a responsável pelo Departamento de Segurança Interna, Kirstjen Nielsen, o próprio procurador-geral Jeff Sessions, que Trump nomeou em pleno processo de investigação sobre as ligações da sua equipa de campanha e da própria família a altos responsáveis russos. James Mattis, secretário de Defesa e um dos homens fortes do Presidente? Ou será Mike Pence, o vice-presidente que foi a votos com o líder norte-americano e venceu? Nikki Haley, embaixadora nas Nações Unidas, ou “Javanka” (resultado da junção dos nomes de Jared Kushner e Ivanka Trump, genro e filha do Presidente) e por aí fora.
As teses dão para tudo. Até para apostas online. Nesse capítulo, Jim Matis, Jeff Sessions e o secretário de Estado Mike Pompeo levam vantagem. Ou então, sugere um internauta no Twitter, o artigo de opinião resulta de uma súmula de informações reunidas por vários jornalistas do The New York Times que o jornal decidiu publicar naquele formato.
Does the so-called “Senior Administration Official” really exist, or is it just the Failing New York Times with another phony source? If the GUTLESS anonymous person does indeed exist, the Times must, for National Security purposes, turn him/her over to government at once!
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) September 5, 2018
Seria só mais uma tese sem fundamento, não fosse o próprio Donald Trump ter sugerido algo parecido num tweet publicado esta quinta-feira, já de madrugada. “Será que o suposto ‘funcionário sénior´da Administração existe realmente ou é apenas o falhado [The] New York Times com outra fonte falsa?”, questionou-se o Presidente dos EUA. Em nome da “Segurança Nacional”, Trump exige que o diário entregue a sua fonte ao Governo.
The Vice President puts his name on his Op-Eds. The @nytimes should be ashamed and so should the person who wrote the false, illogical, and gutless op-ed. Our office is above such amateur acts.
— Katie Miller 45 Archived (@VPComDir45) September 6, 2018
Vai acontecer: o jornal vai divulgar do denunciante? Mike Pence e Mike Pompeo (para já) não quiseram esperar. O porta-voz do vice-presidente já veio esclarecer que o número dois de Trump “põe o nome nos artigos que opinião que escreve”. A celeridade do gabinete de Pence tem uma razão forte de ser: no texto publicado no The New York Times, uma expressão — “lonestar” (que se pode traduzir pela ideia de “solitário” ou “independente”) — chamou a atenção de quem passou à lupa o artigo. A palavra, em desuso na oralidade norte-americana, já foi usada por Mike Pence em alguns dos seus discursos.
Pompeo também se afastou do caso. De viagem à Índia, o secretário de Estado considera “triste” haver alguém que “tome essa decisão” de escrever um artigo naqueles termos. “De onde eu venho, se uma pessoa não está em condições de cumprir as indicações do comandante, tem uma opção, sair.”