Na segunda parte da entrevista a Joana Marques Vidal emitida na SIC e publicada no Expresso, a última que concedeu antes de cessar funções, a ex-procuradora-geral concentrou-se no ataque à corrupção, voltando a defender a instituição de novos instrumentos jurídicos (como a criminalização do enriquecimento ilícito e a instituição de justiça negociada, como a colaboração premiada) e abordou a evolução dos processos mais importantes do seu mandato: Operação Marquês, Universo Espírito Santo e Operação Fizz.

Sem experiência anterior na área penal antes de ocupar o cargo de procuradora-geral, nomeadamente no combate à criminalidade económico-financeira, Marques Vidal diz que ficou surpreendida com a dimensão da corrupção em Portugal. “Embora não considere que não podemos cair na frase feita de que Portugal é um país de corruptos — temos instituições que funcionam. Somos um país onde o problema da corrupção tem uma dimensão que é urgente atacar. Tem de ser encarada como uma questão essencial do Estado de Direito democrático”, afirmou.

E aqui não poupa críticas aos sucessivos Governos e os partidos políticos que passam mas não conseguem dar uma resposta positiva. “Penso que politicamente a resposta não é eficaz, tem sido muito superficial. Se repararmos o que foram os programas políticos das últimas eleições, a corrupção aparece lá numa linha. E aparece sempre relacionada com o judiciário. Não há uma estratégia nacional de combate à corrupção”, censura.

A implementação de tal estratégia, na ótica de Joana Marques Vidal, permitiria construir uma “dimensão cultural e de rejeição total” da corrupção — combate esse que deveria ser de todos, diz a magistrada.

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Acusação da Operação Marquês “é boa, factual, com prova”.

Não é propriamente uma novidade. Já se sabia que Joana Marques Vidal tinha sido informada antecipadamente por Amadeu Guerra e por Rosário Teixeira, titular do processo da Operação Marquês, da detenção de José Sócrates no dia 21 de novembro de 2014. Na entrevista à SIC/Expresso, a ex-procuradora-geral admitiu que tinha de ser informada antecipadamente de uma diligência daquela magnitude (“em última análise, [a PGR] é a pessoa que dá cara”) e deu mais pormenores.

“A minha preocupação foi perguntar: têm fundamentos suficientes, indícios aprofundados, quer em termos jurídicos e factuais? Têm verificada a situação que eleva a essa decisão processual?”. “Temos” foi, segundo Marques Vidal, a resposta de Amadeu Guerra e Rosário Teixeira.

Marques Vidal confessa que aquele foi “um momento grave. E todos os magistrados envolvidos têm noção da gravidade. Mas essa é a nossa função.” Mas mantém que “a acusação é boa. Parece-me que tem a sua factualidade, tem a sua prova, está bem articulada”, diz.

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A ex-procuradora-geral refuta a ideia de que, caso o juiz Ivo Rosa não pronuncie os arguidos para julgamento, tal seja considerado uma derrota pessoal.“Não, de maneira nenhuma. Os processos têm vida própria“, diz.

Universo Espírito Santo. “O caso mais complexo que o MP tem em mãos”

Marques Vidal não tem dúvidas que o chamado processo Universo Espírito Santo, que tem Ricardo Salgado (ex-presidente do BES) como principal arguido, “será o mais complexo que o Ministério Público tem em mãos.” Por isso mesmo é aquele que reúne uma “equipa vasta de diversos magistrados”, liderada pelo procurador José Ranito.

Tendo em conta que as investigações iniciaram-se há quatro anos, Joana Marques Vidal foi confrontada com a demora no encerramento do inquérito. “Essas investigações requerem perícias económico-financeiras de grande profundidade, abrangem muitos casos, que necessitam de ser analisados de com uma visão mais geral e está a demorar mais um pouco“, explicou.

Outra questão prende-se com a complexidade destas investigações e a capacidade  do próprio MP para levar as mesmas a ‘bom porto’. Joana Marques Vidal não tem dúvidas que o DCIAP tem “a capacidade” para analisar as centenas de offshores e os esquemas financeiros complexos inerentes ao caso BES/GES. “Também é uma área onde hoje temos mais capacidade articulação” e uma eficaz “troca de informação com os ministérios públicos de outros países”, afirma.

Acredita que seja possível descobrir todos os beneficiários do saco azul do GES? “Vamos ter de aguardar para ver qual vai ser a evolução deste caso, que é realmente muito complexo em termos técnico-jurídicos. Será o caso mais complexo que o MP tem em mãos”, diz, de forma cautelosa.

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Angola e o “irritante” de Marcelo e Costa — e continuidade do cargo

Joana Marques Vidal admite nesta entrevista à SIC e ao Expresso que recebeu contactos institucionais sobre o chamado caso Manuel Vicente (“os representantes institucionais conhecem-se uns aos outros. Um procurador-geral não vive numa redoma”) mas não quis adiantar quem a contactou. Apenas admitiu que tais contactos “não fizeram” qualquer pressão política.

Questionada sobre o “irritante” que o Presidente da República, o primeiro-ministro e o ministro dos Negócios Estrangeiros utilizaram para classificar as investigações judiciais da Operação Fizz, Marques Vidal resguardou-se na “autonomia do MP e na separação de poderes” para evitar pronunciar-se.

“Foi dito que o MP não respeitava a soberania angolana. Não era isso que estava em causa.” A verdade, recordou a ex-procuradora-geral, é que os angolanos informaram formalmente a Procuradoria-Geral da República de que iriam aplicar a lei de amnistia ao caso Manuel Vicente, caso os autos do processo fossem transmitidos a Luanda. “A interpretação que fizemos foi que aquele caso não iria ser objeto de apreciação. E foi isso que esteve na base de não verificação da boa administração da justiça”, razão pela qual os autos ficaram em Portugal.

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Só quando o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu revogar as decisões de primeira instância e ordenar remessa dos autos para Angola, é que os mesmos foram para Luanda — onde o caso não teve desenvolvimentos conhecidos.

Questionada sobre se acreditava que Manuel Vicente, ex-vice-presidente da República de Angola, iria ser julgado no seu país por suspeitas de corrupção ao ex-procurador Orlando Figueira, Marques Vidal foi lapidar: “Não é uma questão de convicção, é uma questão de aguardar.”

Amadeu Guerra: fica ou sai?

É uma das questões que Lucília Gago vai ter de resolver a breve: Amadeu Guerra sai ou fica? O facto de ter ido ao Palácio Belém assistir à tomada de posse e de ouvir a nova procuradora-geral a tecer-lhe rasgados elogios, indicia de que poderá existir uma resposta positiva da sua parte.

“É uma magistrado de uma competência extraordinária, com uma grande capacidade de liderança.” A ex-procuradora-geral diz que Amadeu Guerra foi um “elemento essencial” nos “resultados que estamos a obter”.

E deixa um conselho à sua sucessora Lucília Gago: “Eu gostaria de o ver mais tempo no cargo. Acho que quase que não devia pronunciar-me sobre isso, mas quero responder claramente que o gostaria de o ver mais tempo.”

Enriquecimento ilícito e colaboração premiada

Finalmente, as dois instrumentos para o combate à corrupção que o poder político e o poder judicial têm obstaculizado: enriquecimento ilícito e colaboração premiada.

Começando pela hipótese de colaboração premiada colocada pelos jornalistas da SIC/Expresso. Joana Marques Vidal diz que não gosta da expressão “delação premiada”. Porquê? “A delação tem em si mesmo um sentido pejorativo para os portugueses, atendendo à nossa história recente com a ditadura”, afirma.

Marques Vidal não tem dúvidas que “Portugal deve caminhar num sentido de realmente alargar o âmbito da colaboração premiada, que já está prevista no nosso sistema jurídico há muito tempo em leis específicas como a lei da droga. É muito útil prevermos algumas formas de possibilidade de colaboração dos envolvidos na investigação criminal com a possibilidade de eventualmente ser diminuída a pena ou a isenção de pena”, afirma.

A ex-PGR não admite uma transposição pura e simples do modelo brasileiro, mas reconhece alguns pontos positivos no modelo italiano. “É preciso as pessoas percebam que mesmo no Brasil, por si só, ninguém pode ser incriminado com um depoimento de alguém que vem dizer que essa pessoa é culpada. O que acontece é que há um conjunto de elementos que nos são trazidos pelos depoimentos de quem colabora com a justiça”.

Elementos esses que, além dos depoimentos em si, podem levar também à entrega de documentação que corrobore o que a testemunha ou arguido dizem. Por isso é que a ex-procuradora-geral chama a atenção que tais depoimentos e documentos “têm de ser comprovados”.

O enriquecimento ilícito, por último, mereceu igualmente comentários a Joana Marques Vidal. “Se o Tribunal Constitucional nega essa possibilidade, eu defendo que seria útil, mas não imprescindível, um tipo legal que permitisse ao Ministério Público e a outras entidades públicas iniciar um processo de inquérito quando se verificasse que existe um enriquecimento não justificado”.

A ex-procuradora-geral diz que não defende “a inversão do ónus da prova. Defendo a possibilidade de se iniciar uma investigação com base na verificação da desconformidade e da não justificação do enriquecimento.” Isto porque a lei atual apenas permite ao MP atuar quando consegue ligar esse enriquecimento injustificado com outro crime, como corrupção ou fraude fiscal, por exemplo.