Os autodenominados “coletes amarelos portugueses” têm concentrações previstas para várias cidades do país esta sexta-feira — e, dois dias antes de avançarem para a rua, deram a conhecer, com algum detalhe, ao que vêm afinal. Na sua longa lista de reivindicações há medidas vagas, outras difíceis de aplicar e outras ainda que esbarram mesmo na Constituição.

Na sua “missiva-manifesto”, o grupo diz ser um “movimento pacífico apartidário, sem fins lucrativos, de união e apoio a todos os grupos e indivíduos vulgo ‘colete amarelo’ que estejam insatisfeitos com os variados problemas da atualidade no nosso país” — o movimento chegou a ser colado ao Partido Nacional Renovador, de extrema-direita, que veio apoiá-lo garantindo que não o promove. O grupo garante também que não se cinge “a uma doutrina ou filosofia, mantendo assim a liberdade cívica individual”, diz que se inspira no “movimento de manifestantes em França” e afirma ser contra o “resultado da irresponsabilidade governamental vivida à [sic] anos”. E ainda que a sua intenção “é dar voz aos portugueses de forma unânime e organizada”. Jura ainda que não tolera “qualquer tipo de violência, vandalismo ou danos”.

O texto de seis páginas refere oito áreas em que este grupo considera que deve haver intervenção imediata, tendo sido dado a conhecer através da conta de Facebook (“Movimento Coletes Amarelos Portugal”) que o movimento tem usado para as suas principais comunicações. O Observador leu cada um dos pontos e, cruzando dados e a opinião de especialistas, analisou cinco medidas concretas em que o grupo apresenta algum tipo de quantificação que permite escrutinar a sua viabilidade.

Aumento do salário mínimo para 700 euros

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Aumento imediato do salário mínimo para € 700,00 (setecentos euros), bastando, para o efeito, proceder ao corte nas pensões acima de € 2000,00 (dois mil euros).”

É exatamente assim que a proposta aparece no manifesto dos autodenominados “coletes amarelos portugueses”. João Carlos Cerejeira, professor de Economia da Universidade de Minho, diz ao Observador que a relação feita entre as duas ideias — aumento do salário mínimo e corte nas pensões — “não faz sentido nenhum”. Por uma razão: o salário mínimo é sobretudo pago pelos privados, mas os cortes nas pensões só pouparia dinheiro ao Estado. “A não ser que, como em França, fosse o Estado a pagar essa subida”, explica João Carlos Cerejeira, para logo depois questionar: “Mas até que ponto é que cortes nas pensões mais altas conseguiriam suportar isto?”.

Tal como é colocada no manifesto, a medida “não tem pés nem cabeça”, acrescenta o economista Luís Aguiar-Conraria, apontando a mesma inexistência de uma relação entre as duas medidas. Uma objeção semelhante é levantada pelo advogado especialista em questões laborais Pedro Costa Jorge: “Não há nenhuma relação entre o aumento do salário mínimo e o corte nas pensões. É misturar alhos com bugalhos. Quem assume o custo do salário mínimo é o tecido empresarial, é o setor privado”, justifica.

No início deste mês, o Governo colocou em cima da mesa uma proposta de aumento do salário mínimo para 600 euros. Os sindicatos insistiam que a subida poderia chegar aos 650 euros, o que foi sempre recusado pelas confederações patronais. Os autodenominados “coletes amarelos portugueses” surgem com um valor ainda superior ao reivindicado pelos sindicatos, 700 euros, que João Cerejeira aponta como “muito perto do salário mediano em Portugal, que já está entre os dois ou três países mais próximos do valor mediano na Europa”. O economista alerta para o efeito imediato na subida dos preços, com um aumento nesta ordem de grandeza, apontando ainda que “afetaria mais as empresas com menor capacidade”. Também nota que nos últimos anos se tem assistido a uma “subida significativa sem impacto no emprego” — as empresas não estão a reduzir o número de trabalhadores –, mas alerta para a subida de empregos suportada por setores como o turismo, que podem sofrer um abrandamento com o Brexit, por exemplo.

“Um aumento com esta proporção tem um impacto muito grande para as empresas, em termos de sustentabilidade”, acrescenta Pedro Costa Jorge. Quando coloca a questão da perspetiva das empresas, Luís Aguiar-Conraria também arrisca dizer que “há um limite”: “Se continuarmos a aumentar o salário mínimo, em algum momento isso terá efeitos perversos. Que momento é esse, não sei”. Isto porque se a produtividade da empresa continuar acima da subida salarial “não é argumento despedir por causa do aumento do salário mínimo — mas, se continuarmos a subir esse valor e o aumento for além da produtividade da empresa, então despedem-se pessoas”.

Aumento do subsídio de desemprego e da sua duração

Aumento imediato do subsídio de desemprego, incluindo o período de duração/vigência, bastando, para o efeito, proceder ao corte nas pensões milionárias acima de € 5000,00 (cinco mil euros), que, obviamente, representam uma carga enorme para o contribuinte.”

“Repete-se a lógica um bocadinho de Robin Hood“, comenta Pedro Costa Jorge, referindo-se a esta nova referência a cortes nas pensões para compensar um aumento da despesa, neste caso com a subida do subsídio de desemprego e o alargamento da sua duração. João Carlos Cerejeira diz que se trata de “uma medida desenquadrada” e que, por isso mesmo, “não é possível avaliar os efeitos que tem”.

O grupo não entra em detalhes sobre o que pretende — não fala em números para o valor nem para o periodo de vigência do subsídio de desemprego. A “missiva-manifesto” refere apenas que a medida seria paga pelo corte naquilo que diz serem as “pensões milionárias”. “Não acho que sejam assim tantas”, diz ao Observador Aguiar-Conraria, questionando o facto de esta segunda medida implicar o recurso ao mesmo bolo da primeira (e que, de resto, vai repetir-se ainda no ponto seguinte). Segundo o relatório e contas da Caixa Geral de Aposentações, em dezembro de 2017 existiam 1.934 pessoas a receber pensões acima de 5 mil euros em Portugal e cerca de 700 registadas na Conta da Segurança Social mais atualizada. É uma fatia pequena, quando comparada com o significado que tem para ambos os sistemas (perto de metade) as pensões até mil euros. Mas Aguiar-Conraria não se demarca da necessidade de um aumento e diz que é o tipo de proposta com a qual concorda. “A prestação foi cortada com alguma violência no período da troika — e tinha de ser — mas neste momento o apoio que o Estado dá é muito baixo”.

Já para João Carlos Cerejeira, a proposta não responde ao “problema português”: “Portugal é dos países europeus onde o subsídio de desemprego dura mais tempo, mas onde o acesso é mais difícil”. A questão, segundo o especialista da Universidade do Minho, é o acesso, que é condicionado “em função da idade e não das carreiras contributivas” das pessoas. Ou seja: na sua opinião, a alteração proposta não responde ao principal problema do país nessa área.

Pensões mínimas de 500 euros

Aumento imediato da pensão mínima para € 500,00 (quinhentos euros), bastando para o efeito proceder aos cortes/medidas acima referidos em 2. e 3. e no ponto abaixo.”

O movimento volta aos cortes nas pensões mais altas para financiar uma outra medida de aumento de uma prestação social, desta vez relativa às pensões mínimas (as que ficam abaixo do valor mínimo fixado em função do número de anos em que foram feitos descontos). Ainda acrescenta outra forma de financiamento deste ponto — o “fim imediato/corte das subvenções vitalícias para políticos” –, mas já lá iremos. Quanto às pensões mínimas, Aguiar-Conraria aponta um problema: tratando-se de pensões não contributivas, “pode estar a promover-se comportamentos mais oportunistas”.

“É uma medida discutível”, afirma o economista, que diz estar “disposto a pagar a quem não tem outro meio de subsistência, mas não a pessoas que possam ter esses meios” e que recebam estas pensões. “Era mais adequada uma medida de combate à pobreza do que aumentar as pensões mínimas  a toda a gente”, argumenta Conraria, que alerta ainda para outra questão: nos anos da troika, o Tribunal Constitucional opôs-se a cortes permanentes nas pensões, que só aceitou, inicialmente, por serem temporários.

De qualquer forma, os autodenominados “coletes amarelos portugueses” não detalham o âmbito de aplicação da medida. No regime da Segurança Social, as pensões mínimas são atribuídas por quatro escalões, não ficando claro a qual se destina o aumento e em que medida.

Fim das subvenções vitalícias

Fim imediato/corte das subvenções vitalícias para políticos.”

Em 2005, o Governo de José Sócrates pôs fim às subvenções vitalícias dos políticos, embora mantivesse as que já estavam em pagamento e também a possibilidade de os deputados que, na altura em que a lei foi aprovada, cumprissem os requisitos para a receber (8 ou 12 anos em funções) poderem recebê-la na mesma. Esta subvenção destinava-se a membros do Governo, deputados e juízes do Tribunal Constitucional e podia ser acumulada com outras pensões. Tendo em conta que as subvenções vitalícias já acabaram, em 2005, é possível que o grupo esteja a referir-se apenas às que ainda estão a ser atribuídas, defendendo que deixem de existir de vez.

Subvenções vitalícias dos políticos vão custar 7,17 milhões em 2019. Lista continua escondida

Luís Aguiar-Conraria considera que esta medida “não resolve nenhum problema” do país, apontando o custo diminuto que tem no Orçamento. No próximo ano, as subvenções vitalícias dos políticos vão custar 7,17 milhões, como noticiou o Observador em outubro passado. Mantém-se, no entanto, uma polémica sobre este assunto, tendo em conta que está por divulgar a lista dos atuais beneficiários desta prestação. Em junho de 2017 existiam pelo menos 318 pessoas a quem tinha sido atribuída a subvenção vitalícia: 189 recebiam-na na totalidade, 17 apenas parcialmente (por força da lei), 108 não recebiam devido a imposição legal e um tem a subvenção suspensa “a pedido do próprio” (Marques Mendes, que teria direito a 3.148, 39 euros mensais).

Metade dos deputados no Parlamento

Redução para metade do número de deputados existentes na Assembleia da República, com adoção de sistemas biométricos/leitura ótica/etc para registo de assiduidade/presença no parlamento, e com vista a acabar com a questão das falsas presenças.”

O manifesto divulgado esta quarta-feira, tem um ponto totalmente dedicado à defesa de “medidas visíveis e expressas de combate à corrupção no governo, na administração pública, nos serviços públicos, no setor empresarial e no setor bancário”. Trata-se de medidas sobretudo coladas às polémicas políticas da atualidade, como é o caso das presenças-fantasma de deputados em sessões plenárias no Parlamento. Mas não só.

Os autodenominados “coletes amarelos portugueses” pretendem que o número de deputados passe dos atuais 230 para 115. Uma proposta que esbarra na Constituição da República Portuguesa, onde está estabelecido que a composição da Assembleia da República pode variar entre um mínimo de 180 e um máximo de 230 deputados. O que é aplicado é o limite máximo e, até agora, todos os estudos que existiram de reforma do sistema político que propunham a redução para o número mínimo encontraram um obstáculo intransponível nos partidos mais pequenos, que temem perder representação com qualquer revisão do sistema que vá nesse sentido.

Embora a redução para metade só fosse possível com uma (pouco provável) revisão constitucional, a redução do número de deputados é desejável? A teoria tem-se dividido ao longo dos últimos 20 anos, em que por várias vezes o país já discutiu a necessidade de reduzir o número de parlamentares e a substituição da eleição em círculos distritais por círculos uninominais, compensados por um círculo nacional. Uma alteração do sistema de cima a baixo que nunca conseguiu o acordo dos maiores partidos, sem os quais não há a maioria de dois terços necessária para alterar a Lei Eleitoral à Assembleia da República. Rui Rio, atual presidente do PSD, já defendeu a redução (sem falar em números concretos). António Costa tem sido contra.

Jorge Fernandes, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, rejeita a tese de que uma redução do número de deputados implique a “redução da proporcionalidade ou da representatividade” dos pequenos partidos no Parlamento, embora defenda que “não tem rigorosamente sentido nenhum reduzir o número de deputados”. “Com cem deputados não se pode ter proporcionalidade? Não é bem assim”, diz, acrescentando, no entanto, que esta é apenas uma variável da reforma do sistema político e nem sequer aquela que seria necessária. “Num país como Portugal não é bom”, afirma.

O especialista em Ciência Política percebe “a popularidade da medida”, mas também alerta que “o dinheiro que se pouparia é uma gota no oceano da despesa pública”. E mais: “Esse dinheiro que seria poupado devia ser investido em staff e apoio técnico da Assembleia da República”. O doutorado em Ciência Política alerta mesmo para o risco de uma medida como esta poder antes “fragilizar mais o órgão e diminuir a capacidade do Parlamento para tomar decisões” de forma autónoma, sem precisar de apoio técnico de empresas, por exemplo — o que pode criar situações de conflito ou, pelo menos, duvidosas.

A questão da “representatividade dos pequenos partidos é importante” quando se fala em reduzir o número de deputados, mas “há outras questões que são tão ou mais importantes”, argumenta Jorge Fernandes, reforçando a importância da “capacidade do Parlamento formar uma boa decisão”

O documento dos autodenominados “coletes amarelos portugueses” fala também na necessidade de “averiguação imediata, sob escrutínio público, das falsas moradas dos deputados com a obrigação de reembolso, por aqueles que mentiram ou omitiram relativamente aos endereços disponibilizados, dos montantes abonados indevidamente de subsidio de transporte”. O tema tem marcado os últimos meses parlamentares, com alguns casos de deputados apanhados em falso, com presenças em plenário quando afinal não estavam presentes. Há também uma referência, sem detalhe, à necessidade de se “acabar com as mordomias de toda a classe política portuguesa”. 

Os três últimos pontos são mais genéricos, com o manifesto a defender a reforma do Serviço Nacional de Saúde, a revitalização dos setores primários e secundário “destruídos pela incompetência dos sucessivos governos” e o direito à habitação. À cabeça do manifesto, os promotores defendem ainda a redução do IVA e do IRC e a “concessão de incentivos, fiscais e outros, para as micro e pequenas empresas”. E também o fim do imposto sobre produtos petrolíferos. Problema: este imposto é uma imposição da Comissão Europeia, que fixa um intervalo mínimo que tem de ser respeitado pelos Estados membros da UE. Não é possível por isso, pôr fim de forma unilateral a este imposto. Mais um ponto de concretização impossível.