Marcelo a entrar num cabeleireiro e a pegar, ele próprio, no secador para dar um jeitinho à ondulação da cliente. Marcelo a entrar numa (ou em muitas) farmácia e a comprar, ele próprio, um dos muitos remédios que gosta de ter na carteira. Marcelo a entrar numa pastelaria e a dirigir-se imediatamente para o lado de lá do balcão. Marcelo numa padaria, a pôr, ele próprio, o pão no forno. Marcelo a entrar no carro e a comer a habitual sandes de queijo e a beber um sumo para desembuchar. Foi assim que, há três anos, o agora Presidente da República mudou a forma de fazer campanha eleitoral, primeiro, e a forma de fazer política, depois. Eleito a 24 de janeiro com 52% dos votos, permanecem as dúvidas sobre o que se passou naquelas semanas e o respaldo que essas semanas vão ter na forma de fazer política. Presidente-celebridade ou celebridade-Presidente? Popular ou populista?

O fenómeno Marcelo — sem apelido — já é um caso de estudo. “O Presidente-Celebridade” dá nome à tese de doutoramento de Sandra Sá Couto, jornalista da RTP e professora assistente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, defendida neste mês de janeiro naquela Universidade. “A minha primeira dificuldade foi justamente perceber se havia de categorizar Marcelo Rebelo de Sousa como político celebridade ou como celebridade política, e até ao final a dúvida manteve-se”, diz ao Observador a jornalista, que esteve no terreno a acompanhar a campanha presidencial em 2016 e que foi logo ali que percebeu que era aquilo que queria estudar no doutoramento em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais. “Em conversa com colegas, na altura, questionámo-nos sobre se depois de Marcelo todas as campanhas eleitorais iam ter de ser diferentes”, recorda, sublinhando que mesmo há três anos achou que não, Marcelo não ia mudar o modus operandi eleitoral porque só ele é que podia protagonizar uma campanha daquele género: sem máquina, sem comícios, sem bandeiras ou hinos, sem partidos, quase sem política.

Essa foi, precisamente uma das conclusões do estudo a que chegou — que envolveu entrevistas a jornalistas, politólogos e ao diretor de campanha, Pedro Duarte, além de uma análise dos editoriais de três jornais (Público, Expresso e Diário de Notícias) entre outubro de 2015 e março de 2016, quando Marcelo era candidato, e depois entre outubro de 2016 e março de 2017, quando avançava no primeiro ano de mandato já enquanto Presidente. “Ele [Marcelo Rebelo de Sousa] percebeu antes de todos os outros que os políticos da nova era iam ter de ser assim. E é uma sorte para nós ele ter percebido isso sem ser um populista, porque quem percebeu isso nos outros sítios foram os populistas. Em Portugal, ele percebeu não sendo um populista”, diz Pedro Duarte, citado na tese, admitindo os riscos que Marcelo correu, mas afirmando que afastar-se da imagem de “político tradicional” não é necessariamente demarcar-se dos políticos, dizendo que ele é bom e os políticos são maus.

Sandra Sá Couto, na foto, é jornalista da RTP e autora da tese de doutoramento “O Presidente-Celebridade”, da FLUP. JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

“Afastar os políticos não é, apesar de tudo, fazer campanha contra eles. Marcelo Rebelo de Sousa não critica a classe política, simplesmente considera que a sua mensagem (enquanto candidato) é mais eficaz se não estiver formatada e comprometida com os partidos que o apoiam. Além de que é, também, naturalmente uma tentativa de chegar a eleitores que não são da sua área política”, diz Sandra Sá Couto ao Observador, sublinhando que é também essa a diferença entre um líder popular e um populista. “Ele próprio vai dizendo que aparece muito, fala muito, está junto das pessoas, precisamente para evitar esse risco do populismo, preenchendo espaços que se tornaram vazios noutras sociedade onde o povo está longe da classe política”, acrescenta. Ou seja, Marcelo aproxima-se do povo para preencher o lugar que, noutros países, está a ser ocupado pelos populistas. Uma espécie de populista bom contra o populismo mau.

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Ressalvando que Marcelo também optou por não se rodear de políticos porque, no seu caso,  Passos Coelho e Paulo Portas, iriam ser “apoios tóxicos de que não precisava”, a jornalista conclui também que outra das opções que o candidato-Marcelo tomou foi não falar de política, na substância. Porquê? Primeiro, porque andava há duas décadas a comentar política na televisão e essa era uma armadilha fácil: podiam apanhá-lo em falso, a defender uma coisa contrária ao que já tinha defendido anteriormente. Depois, porque “se se quer ser um árbitro e ser neutral em todos os momentos não se pode ir para a campanha com uma agenda e dizer quero isto e aquilo”, sustenta Pedro Duarte num dos capítulos da tese.

O risco de “Marcelo”, o único político com nome próprio

Feitas as contas, no final da campanha, Marcelo teve apenas o sexto orçamento mais alto do total de candidatos: 157 mil euros. Edgar Silva, apoiado pelo PCP, concorreu com um orçamento de 750 mil euros, António Sampaio da Nóvoa, também sem o apoio formal de partidos, concorreu com um cálculo de despesas de 742 mil euros, Maria de Belém Roseira, ex-presidente do PS, mas candidata independente, com 650 mil euros, Marisa Matias, apoiada pelo Bloco de Esquerda, concorreu com um gasto de 450 mil euros e Henrique Neto calculou para despesas 275 mil euros. Marcelo foi o que gastou menos e foi o que ganhou. Sandra Sá Couto atribui a chave do sucesso a um conjunto de fatores que Marcelo reúne e que faz com que ele cumpra aquilo a que chama de Paradoxo de Líder Democrático, que é o mesmo do que dizer que está acima de nós, mas é um de nós.

“Marcelo Rebelo de Sousa encaixa lindamente neste paradoxo e essa é a chave do seu sucesso. Porque ele é um de nós quando ajuda alguém a pôr a roupa a secar, mas está acima de nós porque as pessoas lhe reconhecem competência e credibilidade. Sabe falar sobre tudo e explica o que defende, e porquê”, diz, sublinhando que é dessa forma que a população olha para ele e é por isso que resulta. Mas isso também traz outro revés: o risco de se tornar um “homem providencial”.

A equipa que acompanhava Marcelo na estrada tinha apenas 7 pessoas, já contando com o motorista. ORLANDO ALMEIDA/GLOBAL IMAGENS

“As pessoas gostam que o Presidente seja um de nós, que vá confortar as populações depois de uma tragédia. Acho que as pessoas se sentem muito próximas de Marcelo e o grande risco é que achem que o Presidente resolva tudo. Marcelo é Presidente, pode influenciar, e influencia, pode condicionar, e condiciona, mas não tem poder executivo”, diz a académica e jornalista, lembrando por exemplo o caso recente de Manuel, uma das vítimas dos incêndios de outubro, que morreu em Tondela, em que a notícia que saiu foi de que o senhor morreu sem que Marcelo lhe desse a casa que prometeu dar depois dos fogos.

Apesar disso, Sá Couto não vê problema nessa proximidade em demasia. Mesmo o caso, muito criticado, do telefonema em direto para a apresentadora Cristina Ferreira, tem duas leituras: “Não tenho a certeza de que o telefonema que as elites criticam não tenha sido do agrado dos telespectadores”, afirma, sustentando que esse tipo de comportamento, que pode ser entendido como um “pisar da linha”, acaba por não ser prejudicial à imagem que criou.

Uma das conclusões a que chegou na análise dos editoriais dos jornais foi que a palavra mais repetida, em quantidade, foi “Marcelo”, sendo os apelidos que se seguem (“Rebelo de Sousa”) menos utilizados. O que diz muito. “É muito interessante verificar que, na frequência de palavras, ‘Marcelo’ é a mais repetida e sem os apelidos Sousa e Rebelo. De facto, não há memória de um Presidente ser chamado pelo nome próprio, mas ele é o Presidente que nos entrou em casa, na sala de estar, todas as semanas. Até o Professor deu lugar ao Marcelo, mais popular, mais próximo”, nota.

Ou seja, primeiro estranha-se, depois entranha-se. No estudo empírico que fez, a jornalista constatou que, se na fase do Marcelo-candidato, os editoriais dos jornais (que definem em parte a opinião pública), “não lhe atribuíam praticamente mais nenhuma qualidade a não ser o facto de ser um comentador televisivo muito conhecido”, um ano depois, embora continuassem constantemente a relembrar que ele foi “o comentador mais famoso do país”, “reconheceram-lhe outras qualidades, como por exemplo, ser próximo do povo e ter inaugurado um novo estilo de fazer política”.