É uma decisão pesada para Ivo Rosa no caso EDP. Não só por revogar a “totalidade” do despacho do juiz de instrução por este estar “fulminado por sucessivas nulidades insanáveis”, “exorbitando flagrantemente o limite das competências do juiz de instrução” durante fase de inquérito, mas também por o Tribunal da Relação de Lisboa ter comunicado o acórdão ao Conselho Superior da Magistratura (CSM) para efeitos disciplinares. Porquê? Porque, segundo o acórdão, Ivo Rosa não está a respeitar as decisões da Relação, persistindo na mesma interpretação da lei que já por três vezes foi declarada ilegal por desembargadores diferentes no âmbito do caso EDP.
O desembargador Ricardo Cardoso, relator do acórdão que também mereceu a concordância do seu colega Artur Vargues, é direto e claro. Classifica as interpretações de Ivo Rosa como “peregrinas”, “extravagantes e marginais” reveladoras “do desconhecimento do propósito do legislador” e diz que violam a jurisprudência “pacífica” dos tribunais superiores, “que [Ivo Rosa] não desconhece”. Além disso, Ricardo Cardoso afirma que a atuação do juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal ao longo de todo o caso EDP “resulta na obstaculização à aquisição de prova indiciária ainda antes de saber se ela existe e do conhecimento do seu teor”.
Mais: o desembargador acusa Ivo Rosa de, com a sua atuação, “violar a autonomia do Ministério Público, a separação de poderes e a legalidade democrática” e de também violar o princípio do juiz natural por tentar apoderar-se das competências de Carlos Alexandre como juiz de instrução das fases de inquérito dos casos BES/GES e da Operação Marquês — processo este que, na sua fase atual de instrução criminal, é titulado por Ivo Rosa.
Esta é terceira derrota do juiz Ivo Rosa no caso EDP, sendo que as suas interpretações também já vingaram em quatro recursos que foram apresentados pelo Ministério Público (MP) na Relação de Lisboa.
O que estava em causa no recurso
Neste recurso estava em causa um despacho de Ivo Rosa de 23 de maio de 2018, no qual o juiz de instrução declarou nulas, a pedido da defesa de António Mexia e João Manso Neto, uma série de decisões dos procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto, titulares da investigação do caso EDP, sobre os presidente e administrador da EDP — ambos arguidos pelos alegados crimes de corrupção ativa e participação económica em negócio. A saber:
- Pedidos de informação bancária, fiscal e de emails que fazem parte dos processos BES/GES e da Operação Marquês. Os pedidos foram autorizados pelo juiz Carlos Alexandre, magistrado titular daqueles autos no Tribunal Central de Investigação Criminal, mas o juiz Ivo Rosa anulou as autorizações do seu colega;
- Pedidos de informação bancária sobre todas as contas de António Mexia e João Manso Neto dirigidos ao Banco de Portugal.
As questões de fundo no acórdão de Ricardo Cardoso têm essencialmente a ver com a autonomia do MP na fase de inquérito e o papel do juiz de instrução na mesma fase. Os procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto entendiam que o juiz Ivo Rosa não tinha qualquer competência para anular pedidos de prova que a lei define como sendo da exclusiva competência do MP, enquanto Ivo Rosa (e a defesa de Mexia e Manso Neto) entendiam o contrário.
Esta decisão da Relação de Lisboa dá total razão aos procuradores por defender a visão (que o próprio acórdão considera como “pacífica” do ponto de vista da jurisprudência) de que a fase de inquérito pertence ao MP. “O juiz de instrução não tem poder nem competência para declarar durante o inquérito a invalidade atos processuais presididos pelo MP, tendo em atenção precisamente o principio de autonomia desta estrutura legal acusatória do processo, como decorrência da consagração constitucional do processo”, lê-se no acórdão.
Por isso mesmo, o despacho do juiz Ivo Rosa, no entendimento da Relação de Lisboa, “encontra-se fulminado por uma nulidade insanável por violação da competência do tribunal”. Ao que “acrescem”, acrescenta o relator Ricardo Cardoso, “repetidamente a obstrução da investigação, a invasão da área da competência exclusiva do MP, a violação do princípio da autonomia do MP e a violação do princípio acusatório”.
Não há dúvida, no entendimento da Relação, que “a obtenção de informações bancárias e fiscais e a autorização judicial noutro processo para pesquisa de emails em fase de inquérito são atos da exclusiva competência do MP”, pelo que “se encontra vedado ao juiz de instrução uma total, persistente e permanente sindicância do processo em fase de inquérito à revelia do poder decisório exclusivo [do MP]”. Tudo porque, se o juiz assim proceder (como Ivo Rosa procedeu), “oblitera ilegal e indevidamente o objeto do processo” e entra no campo que, segundo a lei, é da competência dos procuradores.
Além do mais, acrescenta Ricardo Cardoso, a jurisprudência sobre esta matéria é totalmente pacífica, como demonstram os quatro acórdãos dos desembargadores Jorge Gonçalves, Carlos Espírito Santo e dos próprios Ricardo Cardoso e Artur Vargues da Relação de Lisboa, além de mais dois acórdãos da Relação de Coimbra de 2017 — “entre muitos outros”, diz Cardoso. A visão é consensual: o juiz de instrução não pode impedir nem definir o que o MP investiga.
“Não tem, portanto, nenhum sustento legal, jurisprudencial ou constitucional a peregrina ideia dos arguidos, acolhida pelo juiz [Ivo Rosa]”, conclui o relator.
As anteriores decisões da Relação que o juiz Ivo Rosa não respeitou
Outra questão igualmente relevante — e aquela que leva a que os desembargadores Ricardo Cardoso e Artur Vargues comuniquem o acórdão ao Conselho Superior da Magistratura para avaliação de eventual matéria disciplinar — é o facto de o relator do acórdão constatar que a interpretação que Ivo Rosa faz das suas competências já tinha sido derrotada por três vezes em anteriores recursos apresentados na Relação de Lisboa pelo Ministério Público.
Estavam em causa igualmente nulidades que Ivo Rosa tinha decretado sobre pedidos de informação bancária e fiscal, assim como pedidos de documentação a outros processos como o BES/GES e a Operação Marquês — questões que agora são abordadas de novo no acórdão de Ricardo Cardoso.
O desembargador Ricardo Cardoso critica duramente o juiz Ivo Rosa por ter tomado estas decisões já depois de dois outros acórdãos da Relação darem razão a recursos semelhantes do MP também no caso EDP. “Muito mais se estranha por o despacho recorrido ter sido proferido a 23 de maio de 2018, após serem públicos e do conhecimento geral os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 e 15 de maio de 2018, descritos supra, no âmbito de recursos dos mesmos autos e da jurisprudência constante e uniforme dos tribunais superiores que o juiz de instrução [Ivo Rosa] persiste, sem fundamento, em mais uma vez, não acatar”, lê-se no acórdão.
Ricardo Cardoso dá o exemplo do acórdão de 15 de maio de 2018 — oito dias antes de Ivo Rosa persistir na mesma interpretação que foi agora derrotada. Tal como agora, também a defesa de António Mexia e de João Manso Neto tinham alegado irregularidades nos pedidos de documentação bancária e fiscal que o MP tinha feito a instituições financeiras e ao Fisco. No acórdão de 15 de maio de 2018, o relator Carlos Espírito Santo foi claro: “[verifica-se] uma ausência de competência do juiz de instrução criminal para apreciar o despacho do MP em causa”.
Mensagem para Ivo Rosa ter em consideração no futuro
Apesar da “manifesta e repetida incompetência do tribunal” e das “fulminantes nulidades”, o desembargador Ricardo Cardoso fez questão de analisar os fundamentos invocados pelo juiz Ivo Rosa, de forma a que “venham a ser objeto de apreciação em novos recursos em fase posterior”. Ou seja, é uma espécie de acórdão para memória futura de Ivo Rosa.
Ricardo Cardoso começa por deixar claro o que diz a lei sobre a existência de sigilo bancário e fiscal no contexto de uma investigação sobre crimes económico-financeiros que estão sob suspeita no caso EDP (corrupção, fraude fiscal, branqueamento de capitais e participação económica em negócio):
Os segredos bancário e fiscal (…) cedem por imposição legal — independentemente da autorização do titular da conta — ao interesse público da investigação criminal, opostamente ao entendimento” do juiz Ivo Rosa. Daí Ricardo Cardoso classificar os considerandos do despacho de Ivo Rosa como “extravagantes e marginais (…) reveladores do desconhecimento do propósito do legislador”.
Para que não restem dúvidas, o desembargador Ricardo Cardoso afirma que “o exercício da ação penal na investigação dos crimes de corrupção não se encontra dependente de autorização dos titulares das contas bancárias nem a coberto do sigilo fiscal”. Não sendo sequer necessário, ao contrário do que alegava Ivo Rosa, que o MP tenha de justificar e fundamentar os seus pedidos de quebra do sigilo bancário ou fiscal ou especificar os documentos que têm de ser entregues. Os pedidos de documentação “podem assumir uma forma genérica”, diz Ricardo Cardoso.
Por isso mesmo, o desembargador concorda com o recurso do MP quando os procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto afirmam que a actuação do juiz Ivo Rosa ao longo de todo o caso EDP “resulta na obstaculização à aquisição de prova indiciária ainda antes de saber se ela existe e do conhecimento do seu teor”. Mais: o desembargador acusa Ivo Rosa de, com a sua atuação, “violar a autonomia do MP, a separação de poderes e a legalidade democrática”.
A interferência na esfera do juiz Carlos Alexandre
O facto que causou mais estranheza (“ainda mais estranha”) ao desembargador Ricardo Cardoso tem a ver com a interferência de Ivo Rosa na esfera de competências do seu colega Carlos Alexandre.
Explicando: os procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto documentação vasta de carácter bancário e fiscal, além de emails, aos processos Universo Espírito Santo e Operação Marquês. Os seus colegas Rosário Teixeira e José Ranito fizeram as respectivas promoções junto do juiz Carlos Alexandre (o juiz de instrução das fases de inquérito daqueles dois processos) e o magistrado deferiu as mesmas.
Com a documentação já nos autos do caso EDP, a defesa de António Mexia e de João Manso Neto requereu junto do juiz Ivo Rosa a nulidade de tais pedidos por entender que tais pedidos tinham de ser apreciados por Rosa — e não por Carlos Alexandre. Ou seja, que tinha sido violado o princípio do juiz natural. Pior: Ivo Rosa violou “a esfera de competência exclusiva do seu colega de instrução criminal titular daqueles autos [Carlos Alexandre].
A Relação de Lisboa deixa a questão em pratos limpos — e em termos que, uma vez mais, são particularmente duros para com o juiz Ivo Rosa, nomeadamente acusando-o de ter violado o princípio do juiz natural.
Invocando jurisprudência igualmente pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, o desembargador Ricardo Cardoso afirma que “não está atribuída ao juiz de instrução do processo destinatário [Ivo Rosa] a competência para intermediar o pedido de pesquisa efetuado pelo MP ao juiz de instrução do respetivo processo [Carlos Alexandre], nem igualmente como pretende o juiz de instrução dos presentes autos [Ivo Rosa], decidir o que pode ser ou não feito nos outros processos — competência reservada, em exclusivo, aos juízes de instrução criminal desses processos [como Carlos Alexandre]”, lê-se no acórdão.
Carlos Alexandre “não teve dúvidas quanto à legalidade do pedido do MP”, logo Ivo Rosa nem sequer “tinha competência para sobre o seu conteúdo se pronunciar”, conclui Ricardo Cardoso.
A questão dos emails
Outra questão prende-se com os emails das caixas de correio de António Mexia e de João Manso Neto que tinham sido apreendidas aquando das buscas à sede da EDP.
Repetindo que o juiz Ivo Rosa atuou fora das suas competências legais, contrariando a jurisprudência “pacífica” dos tribunais superiores “que não desconhece”nos termos já amplamente “descritos em dois outros acórdãos proferidos nestes mesmos autos [caso EDP], o desembargador Ricardo Cardoso faz questão de deixar vertida no acórdão a sua “muita estranheza” por Ivo Rosa ter emitido uma decisão condicional sobre o pedido dos procuradores para que os emails de António Mexia e João Manso Neto fossem juntos ao autos do processo EDP, depois das respetivas caixas de correio terem sido apreendidas por ordem do próprio Tribunal Central de Instrução Criminal.
E condicional porquê? Porque Ivo Rosa ainda antes de conhecer o conteúdo dos referidos emails, já tinha decidido que tal meio de prova era proibido por “abusiva intromissão na vida privada dos visados”.
Ora, Ricardo Cardoso considera que o juiz não se pode “antecipar ao teor das informações e ao exame do titular do inquérito”: o MP. E não porque tal interpretação “desrespeita ostensiva e igualmente a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça” sobre o momento da valoração da prova. Ou seja, o juiz de instrução criminal tem legitimidade para tomar essa decisão na segunda fase do processo penal (a fase de instrução criminal) — e não na fase de inquérito.
Um pormenor relevante: Ricardo Cardoso não diz que a interpretação de Ivo Rosa estaria correta se tivesse sido tomada na fase de instrução criminal. Simplesmente não se pronuncia sobre essa matéria.
Texto alterado às 15h19m, corrigindo-se parte dos alegados crimes que são imputados pelo Ministério Público a António Mexia e a João Manso Neto.