O Papa Francisco aprovou esta semana uma nova lei do Vaticano que torna obrigatória a denúncia de suspeitas de abusos sexuais e que inclui penas de multa e de prisão para quem omitir a denúncia às autoridades. A nova lei vigora apenas no Estado da Cidade do Vaticano — o único território onde o Papa e a Igreja têm jurisdição civil —, mas é um primeiro resultado concreto da cimeira que decorreu no mês passado no Vaticano com os bispos de todo o mundo, para discutir a responsabilidade da Igreja Católica na resposta aos casos de abuso sexual.
Na altura, o Papa Francisco deixou claro que era necessário adotar medidas concretas que vão além das “simples e óbvias condenações”. No final da cimeira, ficou decidido que o Vaticano iria divulgar a todos os bispos um conjunto de orientações para aplicarem nas suas dioceses e soube-se que o Papa iria dar o exemplo, introduzindo alterações no ordenamento jurídico do próprio Vaticano.
Esta nova lei, que é apresentada numa carta apostólica, publicada em forma de Motu Proprio (documento da Igreja escrito por iniciativa direta do Papa) e divulgada esta sexta-feira pela Santa Sé, é assim entendida como uma indicação do caminho que todos os bispos do mundo deverão seguir quando alterarem as normas eclesiásticas nas suas dioceses — com a diferença de que, neste caso, se trata de uma lei de um Estado, enquanto que nas dioceses ou conferências episcopais serão as normas eclesiásticas a ser mudadas, o que impede, por exemplo, a aplicação de penas de prisão.
No Motu Proprio, o Papa Francisco escreve que “a proteção dos menores e das pessoas vulneráveis é uma parte integral da mensagem do Evangelho que a Igreja e todos os seus membros são chamados a divulgar no mundo”, pelo que é preciso “criar um ambiente seguro para eles, tendo em conta, em primeiro lugar, os seus interesses”. O Papa argentino considera que este objetivo “requer uma conversão contínua e profunda”, motivo pelo qual quer “reforçar o quadro institucional e regulatório para prevenir e combater os abusos de menores e pessoas vulneráveis”.
Multa até 5 mil euros para quem não denunciar
O objetivo, escreve Francisco, é que, no Estado do Vaticano e entre os membros da Cúria Romana, haja uma “comunidade que seja respeitosa e consciente dos direitos e das necessidades das crianças e das pessoas vulneráveis”. O Papa quer, sobretudo, que “amadureça em todos a consciência do dever de denunciar os abusos às autoridades competentes e de cooperar com elas em atividades de prevenção e de combate”. Francisco quer investigações eficazes, cuidados especiais com as vítimas, apoios espirituais, médicos, psicológicos e legais às famílias, julgamentos imparciais e respeito pelo princípio da presunção da inocência.
Com esta carta apostólica, é aprovada a lei número CCXCVII do Estado do Vaticano, onde se lê, logo no terceiro artigo, que “sem prejuízo do sigilo sacramental” — o segredo de confissão —, quem nas suas funções no Vaticano tiver “notícia ou razões para acreditar que uma criança é vítima de um dos crimes referidos no artigo 1 tem de apresentar queixa sem demora”. Isto aplica-se nos casos em que o crime tenha sido cometido dentro dos muros do Vaticano, ou contra um residente ou cidadão do Vaticano, ou por um elemento da hierarquia da Igreja que seja residente ou funcionário do Vaticano.
A lei prevê ainda uma pena que pode ir entre os mil e os 5 mil euros para as pessoas que, tendo conhecimento das suspeitas, não tenham apresentado queixa. Se a pessoa que omitiu a denúncia for um agente da polícia judiciária do Vaticano, a pena pode ir até aos seis meses de prisão. A nova lei — que entra em vigor a 1 de junho — inclui ainda uma série disposições sobre a forma como as crianças envolvidas nestes processos devem ser acompanhadas e ouvidas por pessoas especialmente preparadas para estes casos.
Segredo de confissão protegido
A legislação exclui da obrigação de denunciar aqueles que tiverem sabido das suspeitas através da confissão ou da direção espiritual, ao garantir que a denúncia obrigatória deve ser feita “sem prejuízo do sigilo sacramental”. Isto significa que se um clérigo tiver sabido das suspeitas durante a confissão ou durante uma sessão de direção espiritual, está obrigado ao sigilo — embora deva aconselhar a vítima a denunciar a situação fora daquele contexto.
No que toca à forma como deve ser conduzida a investigação, a lei prevê que o responsável pelo processo deve, de imediato, tomar medidas cautelares, nomeadamente o afastamento imediato do suspeito e a proteção física da vítima.
Ao mesmo tempo, foi publicado pelo Papa Francisco um terceiro documento com linhas orientadoras para o clero que está sob a sua jurisdição direta e para todos os que trabalhem, direta ou indiretamente, no Vaticano. Nessas linhas orientadoras incluem-se questões como a obrigatoriedade de investigar previamente todas as pessoas que trabalhem diretamente com menores, a formação destes funcionários em módulos específicos de proteção de menores ou a proibição de estar sozinho com crianças.
Há ainda um conjunto de atitudes proibidas a quem trabalhe com menores, nomeadamente a aplicação de castigos corporais ou a discriminação de uma criança relativamente ao grupo. Os clérigos e funcionários do Vaticano estão também proibidos de pedir a crianças para guardarem segredos, de as fotografar ou filmar sem autorização dos pais, de ofender os menores ou de se dirigirem a eles de forma sexualmente sugestiva.
Em abril, os bispos portugueses vão reunir-se numa assembleia plenária em Fátima, na qual vão discutir eventuais alterações às diretrizes em vigor desde 2012 sobre a forma como se lida com os abusos sexuais na Igreja. Estas alterações serão feitas tendo por base os resultados da cimeira do mês passado, onde foi sublinhada repetidas vezes a necessidade de reforçar os mecanismos de denúncia às autoridades civis. No início da cimeira, o Papa Francisco distribuiu a todos os bispos um conjunto de 21 tópicos que resultaram do seu próprio pensamento sobre o assunto. Na lista, incluiu: “Informar as autoridades civis e as autoridades eclesiásticas superiores, em conformidade com as normas civis e canónicas”.
A “obrigação moral” de denunciar os casos às autoridades tem sido repetida por vários altos responsáveis do Vaticano para as questões dos abusos. O padre jesuíta alemão Hans Zollner, que o Papa encarregou de organizar a cimeira de fevereiro e que faz parte da Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores, disse em entrevista ao Observador que os bispos têm uma “enorme obrigação moral” de reportar os casos à polícia. No Vaticano, o cardeal de Boston insistiu nesta ideia, apelando à transparência nos procedimentos na Igreja.
No final da cimeira, o representante de Portugal na reunião, o cardeal-patriarca de Lisboa, disse aos jornalistas portugueses que a Igreja em Portugal iria adotar novas medidas de prevenção até abril, deixando em aberto várias possibilidades e não fechando a porta à hipótese de introduzir a obrigatoriedade de denúncia às autoridades, mas sempre sem “ultrapassar” vítimas e familiares.