O local escolhido para voltar a comentar as relações de consanguinidade no Governo foi estranho, mas Marcelo Rebelo de Sousa não costuma deixar que protocolos e formalismos sejam um impedimento à sua ação diária. Num alfarrabista em Lisboa — a que se deslocou para dar os parabéns ao vendedor livreiro local, o alfarrabista mais antigo da cidade –, o Presidente da República confirmou que quando falou em “rever a lei”, a propósito da nomeação de um primo por um secretário de Estado, referia-se ao Código de Procedimento Administrativo. E sugeriu ainda que contar com a ética não é suficiente para prevenir casos destes:

É [uma questão ética] mas o problema é o seguinte. porque é que se fez o Código de Procedimento Administrativo? Também havia uma questão ética e ninguém ligava muito à questão ética. Quando se chega à conclusão que a ética não chega… Na altura não chegava, porque na administração pública era possível legalmente nomear irmãos, filhos, pais, tios, sobrinhos. Houve regras que foram definidas porque se entendeu que a ética não chegava, era preciso a lei”, referiu Marcelo à RTP3.

O que a reação da sociedade civil às notícias recentes sobre familiares a partilharem assento no Conselho de Ministros revela é que “porventura estamos a chegar à conclusão que [não só] a ética não chega, como é preciso mudar a lei também no que respeita à nomeação de colaboradores de cargos políticos”, apontou Marcelo. “Entendo que há um problema. Admito que outros entendam que não há um problema”, disse ainda.

O país, avisou o PR, “mudou no seu juízo de ética social, admitia coisas há 20, 30 ou dez anos que hoje não admite. Muitos dos responsáveis políticos de outros tempos tinham como secretários ou adjuntos ou assessores familiares. Hoje não é considerado normal. Aconteceu na Primeira República, durante a ditadura, num ou noutro caso já em democracia. Era normal. Agora, a opinião pública considera que não é normal”. Essa “mudança de sentimento ético e jurídico” da população deve merecer reflexão.

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Há uma indignação. O que me parece estranho é: havendo uma indignação que aparentemente tem a ver com princípios fundamentais que podem ser objeto de legislação, que depois não se retire nenhuma consequência. Mas se os legisladores entenderem que não devem retirar consequências, no futuro indignam-se mesmo. Se entendem que não devem legislar, no futuro indignam-se menos”, apontou.

Não se comprometendo totalmente com nenhuma posição firme e inflexível sobre o tema, Marcelo Rebelo de Sousa defendeu que o que importa é que haja debate público e se dê resposta clara a algumas questões: “Primos podem ser nomeados para gabinetes governamentais? Sim ou não? Para não depender de primo a primo. Outro tipo de familiares sobre os quais não há limitações, tios e sobrinhos, sim ou não? Deve haver lei sobre isso ou deixar à consciência de cada responsável político? Se isso for debatido”, já é uma vitória, referiu.

Na quarta-feira, o Observador revelou que o secretário do Estado do Ambiente do ministro Matos Fernandes, Carlos Martins, nomeou um primo para adjunto do seu gabinete. Fonte oficial do Ministério destacou na altura ao Observador que “o ministro do Ambiente não sabia da existência desta relação familiar” e que, depois de analisada a situação, “o adjunto Armindo Alves apresentou hoje a sua demissão“.

Secretário de Estado nomeou primo. Relação familiar provoca primeira demissão no Governo

O que prevê o Código de Procedimento Administrativo?

A legislação atual a que Marcelo se referiu, o Código de Procedimento Administrativo, “prevê para a Administração Pública em geral limitações quanto a intervenções quando esteja em causa a família muito próxima: proibições absolutas no que diz respeito a pais, avós, filhos, conjugues, uniões de facto e também relativamente a irmãos; e depois [prevê] limitações mais ténues no caso de tios e sobrinhos”, lembrou Marcelo Rebelo de Sousa à RTP3.

Ora, o PR pensa que “o que poderá ser discutido e faz sentido discutir é: primeiro, se esses limites que existem para a administração pública em geral não deveriam funcionar também para titulares de cargos políticos — gabinetes, assessores, adjuntos, chefes de gabinetes –, quer no plano parlamentar quer no governamental. supondo que não são já aplicáveis por analogia. Segundo, porque a situação de que se falou agora foi de primos, se se deve alargar a outros membros da família e até por limite esse tipo de proibição ou de restrição” mais radical.

@ Octavio Passos/Observador

Há uma terceira questão, acrescentou Marcelo Rebelo de Sousa: é preciso perceber se “além disso deve haver algum controlo” quando não está em causa a nomeação de familiares, mas está em causa a “nomeação de familiares de outros responsáveis políticos”. Em França, lembrou o presidente, há “limites desde 2017” para estes casos, “tem de haver um controlo e uma comunicação no caso de não serem familiares daquele que o nomeia, mas familiares de outros que partilham por exemplo cargos de governo. Isso é comunicado a uma alta autoridade para a transparência”.

É necessário que se decida também “se se justifica haver um regime próprio para quem trabalha em gabinetes de governantes ou parlamentares”, apontou Marcelo Rebelo de Sousa. “Porquê? Porque há aí [nesses cargos] confiança política, mas no fundo são [cargos de] administração pública. Uma secretária de um ministro ou de um secretário de Estado não é diferente do ponto de vista administrativo de uma secretária de um diretor-geral ou de um diretor de serviços”, defendeu.