Depois de um fim de ano letivo caótico, temia-se que o deste ano pudesse acabar da mesma forma, caso os professores não recuperassem os 9 anos, 4 meses e 2 dias em que a sua carreira esteve congelada. Na quinta-feira, uma coligação negativa composta pelos principais partidos da oposição aprovou uma proposta que devolve aos docentes o tempo integral e com efeitos a 1 de janeiro de 2019. Antes de se chegar aqui, os últimos meses foram tensos e o percurso legislativo do diploma deu passos à frente e passos atrás. Relembramos como tudo aconteceu.

O que é que dividia professores e Governo no congelamento de carreiras?

Desde o primeiro momento que os professores exigiam a recuperação total do tempo de serviço durante o qual as carreiras estiveram congeladas. O argumento principal é que foi tempo em que os docentes trabalharam e os sindicatos não aceitavam apagar um segundo que fosse. Foram 9 anos, 4 meses e 2 dias, o número que Mário Nogueira, secretário-geral da Fenprof, e outros professores foram ostentando nos crachás em momentos de contestação — e que agora a Assembleia da República lhes pretende devolver na totalidade.

Ao Ministério de Educação, durante a negociação, foi entregue uma proposta da Fenprof que passava por recuperar esse tempo de forma faseada até 2023. A do Governo, em contrapartida, foi de recuperar apenas 2 anos, 9 meses e 18 dias — e foi  ela que viria a tomar forma de decreto-lei.

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Como é que o Governo chegou aos 2 anos, 9 meses e 18 dias?

“Este não é um número encontrado ao acaso”, escreveu a secretária de Estado Adjunta e da Educação, Alexandra Leitão, numa crónica no Público. “É um número assente em critérios de sustentabilidade e de compatibilização com os recursos disponíveis (tal como é imposto pelo artigo 19.º da Lei do Orçamento do Estado), mas também em critérios de equidade”, lê-se.

A equidade de que fala tem a ver com outras carreiras da função pública, as carreiras gerais, às quais foi dado 1 ponto por cada um dos 7 anos que se considerou terem estado congeladas, explica a governante.

Nestas, a progressão é feita por pontos e são precisos 10 para se mudar de escalão. Ou seja, aqueles 7 pontos só por si não são suficientes para progredir. A conta de Alexandra Leitão é esta: “Na carreira docente, os escalões são de 4 anos […], o que implicaria que com a recuperação dos 7 anos de congelamento os professores teriam pelo menos uma progressão e meia (quando – recorde-se – nas carreiras gerais esses 7 anos não se traduzem sequer numa progressão inteira).”

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Assim se chega à equidade, explica a secretária de Estado: “A proposta do Governo, assente numa ideia de justiça e equidade, passa pela recuperação de 70% do escalão de quatro anos, ou seja, 2 anos, 9 meses e 18 dias. Por outras palavras: nas carreiras gerais 7 anos são 70% de um escalão, logo, da mesma forma, a proposta apresentada pelo Governo representa 70% do escalão da carreira docente.”

A esta aritmética, a Fenprof já respondeu por diversas vezes, em comunicados ou em declarações de Mário Nogueira: “O argumento é que recuperar 0,7 do módulo-padrão da carreira aceitar-se-ia se tivesse sido essa a lógica do congelamento, mas não foi. Com o congelamento, os professores perderam mais de 2 módulos-padrão e não apenas 0,7%”. Ou seja, nos 9 anos, 4 meses e 2 dias cabem dois escalões de 4 anos e mais uns meses.

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Os sindicatos aceitaram a recuperação de 2 anos?

Não. A proposta que o Ministério da Educação apresentou nunca teve a concordância dos professores. As negociações acabariam por chegar ao fim sem que houvesse entendimento e, de forma unilateral, o Governo avançou com a sua proposta. O decreto lei foi aprovado em Conselho de Ministros, foi enviado para Belém para promulgação do Presidente e vetado.

Pelo caminho, durante a discussão do Orçamento do Estado — momento em que também uma coligação negativa se levantou a favor dos professores no Parlamento — o tema das carreiras congeladas voltou a ser discutido. Nessa altura, a oposição concordou em inscrever uma norma no Orçamento do Estado em que obrigava o Governo a voltar a negociar com os sindicatos. No entanto, o PSD inviabilizou que se fizesse menção à necessidade de recuperar os 9 anos, 4 meses e 2 dias.

Tudo isto acontecia porque no Orçamento anterior — e depois de o Governo ter assinado um documento de compromisso com os professores a 18 de novembro de 2017 — foi inscrita também uma norma no sentido de ser devolvido aos professores o tempo de serviço congelado. Nunca ficou escrito de forma inequívoca que a devolução deveria ser total, mas a oposição defendia que esse era o espírito da norma, o que a levou a voltar a inscrever a mesmíssima redação no atual Orçamento.

O governo voltou a negociar com os professores?

Na prática voltou a ser aberto um processo negocial, foram cumpridos todos os trâmites legais, mas nada foi negociado. Nem sindicatos nem governo mudaram de posição e apenas foi cumprido calendário. De novo, o Conselho de Ministros aprova pela segunda vez o mesmo decreto lei, considerando estar cumprida a vontade do Parlamento. O documento é enviado para Marcelo Rebelo de Sousa e o Presidente da República promulga-o. Na Assembleia da República todos os partidos fazem pedidos de apreciação parlamentar ao documento.

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Onde foram discutidas as apreciações parlamentares?

Na especialidade, na Comissão de Educação e Ciência. Todos os partidos, com exceção do PS, apresentaram a sua, havendo o compromisso de ter o assunto resolvido antes de 15 de maio, altura em que a comissão suspende os trabalhos por causa da campanha eleitoral das europeias. A data era importante porque os professores ameaçavam com uma greve às reuniões de avaliação a partir de 6 de junho que os deputados tentavam também evitar.

O que se podia esperar depois de conhecidas as propostas dos partidos?

O desfecho que se previa era exatamente este, tal como Mário Nogueira e João Dias da Silva (líder da FNE) já tinham dito ao Observador. As apreciações parlamentares introduzem alterações ao decreto lei do governo e uma era consensual: a devolução integral do tempo. A partir daqui, mesmo que o PSD inviabilizasse todas as outras propostas e fosse a sua a ser aprovada, os professores ficariam sempre melhor do que começaram.

A principal reivindicação dos professores era aceite por todos os partidos, da mesma forma que todos convergiam na ideia de transformar os 2 anos reconhecidos pelo Governo na primeira tranche de devolução dos anos congelados. Havia dois problemas no horizonte: um resolveu-se, o outro não.

Nas propostas dos partidos à direita não havia calendário para a devolução, ou seja, não ficava escrito quantos dias por ano e até quando é que a devolução seria feita. Na proposta que acabou aprovada sucede o mesmo: todos os anos será aberto um processo negocial para chegar a acordo. Mário Nogueira queria evitar este cenário já que, como disse ao Observador, vai pôr muita pressão negocial no início de cada ano. Em contrapartida, tanto CDS como PSD tinham nas suas propostas alíneas que remetiam as soluções encontradas a cada ano para o estado das contas nacionais e que agora desaparece. É mais uma vitória para os sindicatos.

A partir daqui, não deverá haver mais obstáculos para que os professores comecem a atualizar os seus escalões.

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O que quer dizer o congelamento do tempo de serviço?

Há vários tipos de carreira na função Pública e a progressão, que implica aumentos salariais, é feita de forma diferente. Mas, para isso acontecer, a carreira não pode estar congelada. Nas carreiras gerais, que são profissões que existem em quase todos os serviços — como assistentes operacionais ou técnicos superiores — a progressão é feita por um sistema de pontos. De cada vez que se alcança 10 pontos através da avaliação de desempenho, sobe-se de escalão. E de cada vez que se sobe de escalão, há aumento salarial.

Nas carreiras especiais — professores, militares, polícias, magistrados, médicos, enfermeiros — a progressão é quase sempre feita pela contagem dos dias de serviço. Não acontece de forma automática e há outros critérios a respeitar.

Voltando aos professores: em dois períodos diferentes, as progressões na carreira dos docentes estiveram congeladas. Primeiro entre 2005-2007 e depois entre 2011-2018. E é a soma desses dois períodos que resulta nos 9 anos. Durante esses dois momentos, os professores não puderam subir de escalão e ver os seus salários aumentar, como aconteceria se a carreira não estivesse congelada.

A 1 de janeiro de 2018 a carreira dos professores, tal como a de outros funcionários públicos, foi descongelada e o tempo voltou a contar para progressão daquele momento para a frente. O que os professores pretendiam — e conseguiram agora — é que os 9 anos, 4 meses e 2 dias sejam reconhecidos e que, de forma faseada, os docentes possam recuperar esse tempo para progredir na carreira e nos ordenados.

Como funcionam os escalões e a progressão na carreira dos professores?

Os professores têm a chamada carreira especial, como também acontece com médicos e militares, por exemplo. Em primeiro lugar, um professor pode estar a dar aulas há vários anos sem ter ainda entrado na carreira. É o que acontece aos professores contratados que, quando conseguem um lugar de quadro, podem já ter acumulado 2, 5, 10, 15 anos de serviço. Depende das situações. No entanto, esse tempo nunca será reconhecido para as progressões que começam com a entrada na carreira.

A partir do momento em que se entra no quadro, a carreira dos professores está dividida em 10 escalões, sendo o décimo o que corresponde ao topo da carreira. Cada um desses escalões tem uma permanência obrigatória mínima de 4 anos, exceto o 5.º escalão (tem 2 anos) e o 10.º (não tem limite e chegado ao topo da carreira é naquele escalão que o professor fica até se reformar).

Mas para progredir basta estar quatro anos num escalão? Não. Esse tempo mínimo é apenas um dos critérios. Para progredir é preciso que o professor tenha na sua última avaliação de desempenho uma menção qualitativa não inferior a Bom. E acrescenta-se o ter também obrigatoriamente frequência, com aproveitamento, de formação contínua.

Mas há mais. Há escalões com critérios específicos. Para subir ao 3.º e ao 5.º, o professor tem de ser observado na aula. E para subir ao 5.º e ao 7.º é preciso que abram vagas nesses escalões, havendo sempre mais candidatos do que lugares disponíveis.

Assim, se um professor conseguisse subir de escalão de cada vez que completa o tempo mínimo de serviço em cada um deles, demoraria 34 anos a chegar ao topo da carreira.

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E quanto ganha um professor?

No topo da carreira, ou seja, ao fim de um mínimo de 34 anos de serviço, o ordenado bruto de um professor é de 3.364,63€. Este valor cai quando se olha para o valor líquido — segundo as contas do Sindicato de Professores da Grande Lisboa — já que, dependendo da situação fiscal do trabalhador, varia entre 1.884,47 e 2.207,47 euros (a que se acrescenta o subsídio de alimentação de 104,94 euros).

Quem é que avalia os professores?

A avaliação do desempenho docente é composta por uma componente interna e externa. A primeira é feita pelo agrupamento de escolas e é realizada em todos os escalões. A externa, centrada na dimensão científica e pedagógica, é levada a cabo por avaliadores externos através da observação de aulas.

Para aferir o desempenho do professor, há vários intervenientes no processo: o presidente do conselho geral, o diretor, o conselho pedagógico, a secção de avaliação de desempenho docente do conselho pedagógico, os avaliadores externos e internos e, por último, os avaliados. Cabe à Inspeção-Geral de Ensino o acompanhamento global do processo de avaliação do desempenho do pessoal docente.

Tal como no resto da Função Pública, também na Educação há quotas para o número de classificações Excelente e Muito Bom que podem ser atribuídos. Os percentis são definidos por despacho conjunto dos membros do governo responsáveis pelos setores da Educação e da Administração Pública.

Embora possam variar, a quota máxima por agrupamento ronda os 10% para os Excelente e os 25% para os Muito Bom.

Há algum momento em que os professores possam não ser avaliados?

Mais ou menos. O exercício de alguns cargos é equiparado a serviço efetivo como professor e, nesses casos, não é necessária a avaliação de desempenho para progressão na carreira. Na prática, são docentes que estão a exercer outras funções, longe da sala de aulas.

A lei prevê esta exceção para o exercício dos cargos de Presidente da República, deputado à Assembleia da República, membro do Governo, ministro da República para as regiões autónomas, governador e secretário-adjunto do Governo de Macau e outros por lei a eles equiparados, membros dos governos e das assembleias regionais, governador civil e vice-governador civil, presidente e vice-presidente do Conselho Nacional do Plano, presidente de câmara municipal e de comissão administrativa ou vereador em regime de permanência.

Quem recebeu 1 ponto por cada ano de congelamento tem de esperar 3 anos para progredir?

Uns sim, outros não, depende dos pontos que acumularam durante o congelamento das carreiras. A 1 de janeiro de 2018 foram descongeladas todas as carreiras da função pública — gerais, especiais, não revistas e subsistentes. Nessa data, todos os trabalhadores que reuniam os requisitos para progredir na carreira puderam fazê-lo. Ou seja, no caso das carreiras gerais, tinham de ter acumulado 10 pontos nas avaliações de desempenho (ou mais) para poderem subir de escalão.

Mas para conseguir 10 pontos não são precisos 10 anos. Uma avaliação de Excelente (a máxima possível) confere 6 pontos, um Muito Bom dá direito a quatro. Apesar de as progressões terem estado proibidas, a avaliação de desempenho continuou. Ou seja, os pontos foram tidos em consideração, foram-se acumulando, mas sem a progressão correspondente.

Aos trabalhadores que não foram avaliados durante esse período de congelamento (2011-2018), e para que não sejam prejudicados, foi-lhes atribuído um ponto por cada ano não avaliado, no total de 7.