Afundado há 160 anos, um navio emergiu agora do fundo das águas de um rio do Alabama para contar a história dos últimos escravos africanos nos Estados Unidos. O Clotilda terá sido o último navio de sempre a transportar escravos de África para os Estados Unidos, em 1860, décadas depois de a escravatura ter sido proibida. Os destroços da embarcação foram encontrados no fundo do Rio Mobile, no estado sulista do Alabama.

Durante seis semanas, no longínquo século XIX, 110 homens, mulheres e crianças viajaram de África para uma América que se expandia a pulso e precisava de trabalhadores para as plantações do sul do país. Os tripulantes do Clotilda terão sido os últimos de cerca de 389,000 escravos que foram forçados a trabalhar nos EUA entre 1600 e 1860. O Clotilda navegou mesmo em segredo, uma vez que, décadas antes, em 1808, o Congresso norte-americano proibiu o tráfico de escravos.

Os historiadores e peritos creem que o navio foi afundado propositadamente em 1860 para esconder a sua utilização e o tráfico de escravos. Três anos mais tarde, e no desfecho da Guerra Civil Americana, o presidente Abraham Lincoln assinou a Proclamação de Emancipação, que pôs fim à escravatura nos Estados Unidos.

Os destroços do barco foram encontrados numa investigação científica da SEARCH Inc em colaboração com a Comissão História do Alabama e o Smithsonian Museum. A investigação científica levou um ano. O anúncio da descoberta e identificação do Clotilda foi feito pela própria Comissão Histórica do Alabama, na sua página de Facebook.

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“A descoberta do Clotilda traz uma nova luz a um capítulo perdido da História da América”, diz Fredrik Hiebert, arqueologista da National Geographic que participou na pesquisa.

Uma investigação única para um navio único

Os investigadores analisaram registos de mais de dois mil barcos que estavam em circulação na década de 1850 no Golfo do México. Descobriram que o Clotilda era o único de cinco navios com seguro registado, na época.

Estes documentos forneceram informações preciosas sobre a descrição e características do navio. Os registos indicaram que o Clotilda tinha 26 metros de comprimento e apenas dois de altura. Assim, o porão era utilizado para transportar os africanos, que se amontoavam num espaço bastante reduzido, visto que de largura a embarcação tinha apenas sete metros. O seguro mostrou ainda que o Clotilda foi feito com carvalho branco, pinho amarelo da costa do Golfo e que o casco foi coberto com cobre para proteger a embarcação das ondas do oceano.

Assim, com um design e características peculiares, o Clotilda era um barco único e sem comparação. Estas características facilitaram a identificação do navio no Rio Mobile.

“O Clotilda é uma descoberta arqueológica extraordinária. A viagem do navio representa uma das eras mais negras da História moderna”, disse Lisa Demetropoulos Jones, diretora executiva do Comissão Histórica do Alabama.

Com base na pesquisa, o arqueólogo marítimo James Delgado e Stacye Hathorn, arqueologista do Estado do Alabama, centraram então as suas atenções numa zona do Rio Mobile que nunca tinha sido dragada. Mergulhadores e vários aparelhos – como um detetor de metais, um scan 3D para localizar estruturas acima ou debaixo de água e um mecanismo para detetar objetos enterrados – descobriram no rio um autêntico “cemitério de navios” – o sul dos Estados Unidos, onde fica o estado do Alabama, foi uma das zonas mais frequentadas pelos escravos e embarcações que os transportavam, visto que foi nesta zona que se desenvolveram os campos em que os escravos eram obrigados a trabalhar.

Mas todos os barcos tinham a dimensão errada, casco de metal e um diferente tipo de madeira. Contudo, uma embarcação chamou à atenção dos investigadores. Chamaram-lhe Target 5 (Alvo 5). Apresentava as mesmas dimensões e análises a amostras de madeira apontaram para o mesmo carvalho branco e pinho amarelo. Ao mesmo tempo, o barco mostrava sinais de ter sido queimado (talvez para o afundar) e que o casco tinha sido protegido com cobre. “Batia tudo certo com o Clotilda” e com os antigos registos a que a equipa teve acesso, disse Delgado.  “Provas físicas e forenses mostram-nos que se trata do Clotilda”, concluiu o arqueologista marítimo James Delgado.

A história de um navio há muito contada e que passou de geração em geração

A história do navio Clotilda está bastante documentada e trata-se de um dos navios de escravos mais conhecidos e falados de sempre. Em 2007, a escritora e historiadora Sylviane Diouf escreveu o livro “Dreams of Africa in Alabama: The Slave Ship Clotilda”. “É uma das histórias sobre escravos mais bem documentadas”, disse a autora. “Os escravos foram desenhados, entrevistados e alguns até filmados”, adiantou, referindo-se aos sobreviventes do grupo que viveram até ao século XX. “A pessoa que organizou a travessia para os Estados Unidos falou. O capitão do navio falou. Por isso, temos a mesma história de diferentes perspetivas”, continuou Diouf.

Com o fim da Guerra Civil, em 1865, e a abolição da escravatura nos EUA, muitos africanos tentaram voltar a casa. No entanto, não tinham dinheiro nem forma de viajar. Permaneceram então nos Estados Unidos, onde formaram comunidades e se dedicaram ao trabalho de terrenos. Muitos descendentes desta comunidade ainda vivem na mesma área e cresceram a ouvir histórias do famoso Clotilda, o navio que trouxe os seus antepassados para a América.

“Se encontrarem provas da existência desse navio, será algo muito importante”, disse Lorna Woods no início deste ano, uma das descendentes de escravos. “Tudo o que a nossa mãe nos contou seria assim verdade. Seria óptimo”, continuou.

Mary Elliot, curadora do Smithsonian Museum, acredita que a descoberta do Clotilda permite a esta população conhecer o seu passado. A curadora refere que há acontecimentos na História que são questionados, mas sublinha que a descoberta do Clotilda é irrefutável.

“Agora, graças à arqueologia, aos arquivos, à ciência e às memórias das pessoas, não pode ser refutado. A população está agora ligada aos seus antepassados, sabendo que a história é verdadeira”, concluiu Elliot.