O que interessa saber
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Nome: O Frade
Abriu em: Maio de 2019
Onde fica: Calçada da Ajuda, 14, Lisboa
O que é: Casa de comida alentejana que dá continuação a uma tasca famosa, com o mesmo nome, que existiu em Beja durante 53 anos
Quem manda: Sérgio Frade e Carlos Afonso
Quanto custa: Preço médio à volta dos 25€ por pessoa
Uma dica: Se lhe sugerirem uma cerveja antes da refeição, aceite de bom grado — sabe bem que se farta. Depois disso aceite o vinho da casa, um maravilhoso néctar feito em talha pela família Frade.
Contacto: 939 482 939
Horário: De terça-feira a domingo, das 12h às 22h
Links Importantes: Instagram
A História
Este novo O Frade pode ter acabado de inaugurar na zona da Ajuda, perto de Belém, mas a sua história começa a uns bons 200 quilómetros de distância, em Beja. Durante vários anos, a família de Carlos Afonso e Sérgio Frade liderou um restaurante de comida tradicional que funcionava como uma sala de estar dos habitantes desta cidade alentejana (e não só). “Era onde toda a gente se reunia para petiscar e conviver”, conta Sérgio ao Observador. A taberna Frade foi inaugurada em 1966 pelos avós do homem que ia servindo uma cerveja fresca — “para abrir o apetite, antes dos vinhos”. A avó cozinhava, o avô “cantava, conversava e até declamava poesia” e essa receita foi fazendo com que aos poucos esse espaço fosse ganhando fama, atingindo o estatuto de clássico indiscutível “entre o final dos anos 70, início dos 80”.
Habituados a lidar de perto com esta sala de comunhão entre pessoas e comida e bebida, os dois rapazes, que são primos, foram ficando com uma dúvida: “E se fôssemos nós a ter uma coisa destas, mais para a frente?” A resposta a esta questão não surgiu de imediato: Sérgio começou por fazer carreira no mundo do imobiliário e só mais tarde, em junho de 2018, é que passou a ser o proprietário do número 14 da Calçada da Ajuda, o espaço onde hoje se encontra esta novidade. Carlos, por sua vez, manteve-se mais perto das raízes gastronómicas da família e desde muito cedo decidiu que queria ser cozinheiro. Concluiu os seus estudos, passou por sítios com o Marmoris (no tempo de Alexandre Silva), Bica do Sapato, Azurmendi (o tri-estrelado palco de Eneko Atxa, em Bilbao) ou Ocean (duas estrelas em Porches, Algarve) até sentir que já tinha aprendido o suficiente para fazer o que mais gosta, “comida de tacho, claro”. Juntou-se ao primo e assim ficou.
O Espaço
Está a ver aqueles espaços que parecem minúsculos mas depois apercebemo-nos de que cabe lá tudo e mais alguma coisa? O Frade é um sítio desse género. De fora, este rés-do-chão que fica numa esquina perto do novo Museu dos Coches parece minúsculo; quando entramos percebemos que é só pequeno mas quando se enche de clientes e comida parece imenso, tal o bom ambiente que se vive lá dentro. O antigo restaurante tradicional que aqui morava foi completamente desfeito para dar ao Frade um ar mais fresco e espaçoso onde predomina o branco e, claro, o enorme balcão em pedra onde tudo acontece.
Desenhado de forma a parecer um “U” mais estreito e alongado, esta barra em pedra é o coração do restaurante, o espaço onde a equipa de cozinha termina os pratos e serve-os diretamente às pessoas — “Gostamos muito dessa proximidade, acho que faz o cliente sentir-se melhor recebido”, explica Sérgio. Há uma pequena cozinha onde são feitas as confeções quentes e fora do balcão moram apenas mais duas mesas (uma maior que a outra). A “pièce de résistance”? O rádio antigo, “do tempo dos nossos avós”, que a dupla alentejana comprou, “esventrou” e converteu numa coluna sem fios.
Todo este projeto assenta numa grande vontade de homenagear as raízes alentejanas desta dupla bem como a forma como os seus familiares sempre o fizeram. Essa forte ligação é apresentada com bom gosto, longe do kitsch, e através de pequenos pormenores que quase nos levam de volta ao Frade original: A loiça de barro ou esmalte onde são servidos os pratos, o “célebre copo de três”, os azulejos que preenchem a cozinha e as fotografias enormes que forram toda uma parede do espaço e que mostram várias “faces” da famosa talha alentejana, a espécie de “ânfora” em barro onde durante séculos foi feito o vinho desta região, quase sempre sem qualquer tipo de intervenção — mais sobre isto daqui a pouco.
A Comida
“Servimos aquilo que gostamos de comer” — é este o mantra d’O Frade, conta Carlos Afonso. O jovem de 30 e poucos anos passou a maior parte deles em cozinhas de fine dining onde o pormenor e o formalismo andam de mão dada com a criatividade como baluarte principal. Sítios como estes são autênticos templos da gastronomia, têm listas de espera (justificadas, na maior parte das vezes) de meses ou anos e cobram preços avultados (mas justos… também na maior parte das vezes), disto ninguém duvida. Agora, são sítios assim que queremos visitar todos os domingos com a família? É comida destas género que “desenrascamos” quando é preciso fazer o jantar lá em casa? O mais certo é que não, e tanto Carlos como Sérgio sabem bem disso.
“Sempre fomos habituados a comer assim, adoramos a chamada ‘comida de tacho’. Porque não haveríamos de fazê-la?”, comenta o mesmo cozinheiro. Realmente não é o hábito que faz o monge (ou Frade, neste caso) e não é por ter passado a maior parte da sua vida a fazer “comida Michelin” que Carlos tinha de ignorar aquilo que sempre foi tão presente na sua vida — sua e de Sérgio, claro. “Aprendi mesmo muito mas houve uma altura em que senti que estava pronto para mudar.”
O fruto dessa mudança é portanto uma combinação entre o melhor da tradição alentejana (com toques transmontanos, Carlos tem uma costela que vem desses lados) com a atenção ao detalhe, técnica e respeito do produto típicos do fine dining. Num menu composto principalmente por petiscos mas onde também encontramos um ou outro prato principal, merece destaque os ovos mexidos com túberas (8€), a muxama de atum (5,50€), o pato de escabeche (9€), a deliciosa galinha acerejada (frita com um rasgo de vinagre, 7,50€) ou as tibornas do frade (6€), pecaminosas fatias de pão alentejano torrado com papada de porco semi-derretida e alho. “Acho que nunca vamos conseguir tirar este prato da ementa, já o tentámos fazer mas as pessoas estavam sempre a perguntar por ele, tivemos de o voltar a fazer”, conta Sérgio ao introduzir um dos pratos principais mais populares, o “arroz de pato” que quebra com o status quo e é mais parecido com um risotto ou um arroz caldoso, não descurando na untuosidade do pato e na frescura cítrica da laranja. Para sobremesa experimente sem medos a deliciosa encharcada com sorbet de tangerina (4€) ou a mousse de chocolate com azeite e flor de sal (4€).
O capítulo dos vinhos neste Frade também é caso sério — e particular. Desde os tempos da taberna dos avós, ainda em Beja, que o avô de Carlos e Sérgio tinha por hábito fazer o seu próprio vinho de talha, como a tradição alentejana assim prescreve. O interesse na vinificação manteve-se na geração seguinte e o pai de Sérgio, que inicialmente nem tinha grande interesse na área, acabou por se especializar em enologia e assumir a arte que o pai tinha começado. O vinho de talha é um ensinamento romano e é feito com uma abordagem quase totalmente natural, basta colher os cachos de uva, esmagá-los grosseiramente e colocar tudo o que sair daí (em algumas zonas vai o engaço e tudo) numas enormes “ânforas” de barro, onde ficam a fermentar.
A especialização do pai de Sérgio fez com que a qualidade do produto final fosse melhorando, o processo de engarrafamento idem, e tudo isso transformou esta peculiaridade familiar no primeiro produtor DOC exclusivo de vinho de talha. “A nossa produção é pequena por isso praticamente só o vendemos aqui”, conta Sérgio. Espere encontrar várias referências e todas elas são pautadas por uma ligeireza singular, semelhante à encontrada nos chamados “vinhos naturais”.
Muitas vezes há a sensação de que o mundo da gastronomia em Portugal fica preso entre a tasca e o restaurante Michelin, não havendo muitas opções que fiquem pelo meio, espaços cuidados, com imensa atenção à técnica e ao produto, que servem comida deliciosa sem ser em menus de degustação que custam mais de 100€ por pessoa. Este espaço em branco tem vindo a ser preenchido por casas que adotam uma abordagem próxima da chamada “bistronomie” francesa (restaurantes simples que servem comida com alto traço autoral) e ainda bem. Este Frade cai nessa linha e consegue fazê-la evoluir ao seguir um receituário tradicional mas dando-lhe toques contemporâneos. Transforma a “bistronomie” na “tasconomie” e, mais que tudo, é mais um sítio divertido com comida ultra-saborosa e sem peneiras.
“Cuidado, está quente” é uma rubrica do Observador onde se dão a conhecer novos restaurantes.