Quatro anos volvidos, e com a experiência da “geringonça” na bagagem, António Costa e Catarina Martins voltavam a encontrar-se num debate pré-eleitoral, “numa situação bem diferente da de 2015”, como notou a coordenadora bloquista logo no início da conversa. Os dois partidos encontram-se bem posicionados nas sondagens e o BE quer evitar uma eventual maioria absoluta, e este era, por isso, um frente-a-frente muito aguardado — para muitos, o mais aguardado.
E acabou por ser mesmo o mais vivo de todos os debates até agora, com ambos a marcarem as diferenças face ao programa e ao projeto do adversário, com ambos a puxarem pelo seu eleitorado. No início, tanto António Costa como Catarina Martins foram suaves no tom e amigáveis no conteúdo. “Trabalhámos bem com o PS e com o PCP. Orgulhamo-nos desse percurso e deixámos sementes para o futuro”, disse a líder bloquista. “Eu não abri uma porta de diálogo com o BE, com o PCP e com PEV para agora ser eu a fechá-la”, respondeu o primeiro-minsitro.
Mas despachadas as cortesias iniciais, Catarina Martins atacou António Costa tentando provar que o Bloco de Esquerda é quem merece levar a bandeira das contas certas, dando o exemplo daquilo que faz “em casa”e o secretário-geral do PS tentou acantonar a sua parceira de governação à extrema-esquerda lembrando que os bloquistas propõem a nacionalização da banca e prometem mundos e fundos numa “lista de prendas de Natal”. Um debate que começou por ser entre amigos e que terminou provando que, afinal, também pode haver adversários dentro da mesma casa.
Debate começou despacito, suave, suavecito
A líder do Bloco de Esquerda foi a primeira a intervir e começou fazer um balanço dos quatro anos de geringonça. Não esqueceu que houve “erros” mas afirmou que pertenceram aos socialistas. O que de bom se regista no saldo desta experiência de governação à esquerda deve-se aos partidos à esquerda do PS. “Trabalhámos bem com o PS e com o PCP. Orgulhamo-nos desse percurso e deixámos sementes para o futuro”, afirmou.
Uma conclusão da qual António Costa não discordou mas que quis matizar, tentando colher os louros do sucesso das políticas do seu Governo. “Eu não abri uma porta de diálogo com o BE, com o PCP e com PEV para agora ser eu a fechá-la“. Uma convergência aparente que não tardaria em desmantelar-se, expondo a diferença entre os dois partidos que ao longo dos quatro andaram de mãos dadas.
O debate ameaçava encaminhar-se para uma conversa entre amigos, mas a líder bloquista fez o primeiro ataque logo na segunda intervenção. “Este programa do PS é pouco concreto, não tem contas”. Um golpe calculado, para ferir o PS através dum argumento que os socialistas têm tentado arrebatar à direita: o das contas certas. Estavam criadas as condições para que se assitisse a um frente-a-frente, pelo menos, tenso.
António Costa, que sempre valorizou publicamente a estabilidade da solução, inaugurou um novo argumento na rentrée política, pedindo o voto no PS para evitar uma “solução à espanhola”. Insinuando que se o BE tiver mais poder pode levar o país a uma situação de instabilidade, apelou ao voto nos socialistas. Neste debate, voltou a fazê-lo, embora tenha suavizado na espanholização do Bloco, a quem chegou a chamar, numa entrevista ao Expresso, “o nosso Podemos”. Mas a crispação já estava instalada e não mais abandonaria o estúdio da RTP, onde decorreu o debate.
BE reclama contas certas para si, Costa acantonou Catarina Martins à esquerda
Não foi preciso muito tempo para entender que Catarina Martins levava uma ideia fundamental muito bem estudada: a de que o PS apresenta um programa de Governo sem números. “Este programa do PS não tem contas, remete tudo para o Programa de Estabilidade”, ia repetindo, tentando atingir o primeiro-ministro precisamente no ponto das contas certas, crucial para tentar convencer o eleitorado de centro. A primeira resposta de António Costa mostrou que o secretário-geral socialista não ia baixar a guarda. “O PS tem um programa realista, não como o BE, que propõe um aumento de 30 mil milhões de euros da despesa pública anual. Um programa de Governo não pode ser lista de prendas de Natal, são 15% do PIB, é irrealizável”, resumiu.
António Costa não quis apenas aparar o golpe e tentou voltar a colocar o BE na extrema-esquerda, recordando que o partido tem um vasto plano de nacionalizações no programa eleitoral. “O Bloco prevê no programa um total de 27 mil milhões de euros para nacionalizar a ANA, os CTT a REN, a EDP e a REN. Gastar 10 mil milhões a nacionalizar a Galp é a mesma despesa do Serviço Nacional de Saúde. Não vou gastar esse dinheiro dos portugueses”, atacou.
As respostas, de parte a parte, eram invariavelmente dadas na mesma moeda. “Acho que há questões que podemos caricaturar mas devemos ter cuidado quando o fazemos, avisava Catarina Martins, que assegurava que as porposta do Bloco “é sustentável e razoável” e contrapunha com o dinheiro já gasto com a banca. Acusou o toque na questão das nacionalizações, e depois voltou à carga com a questão dos números. “É pena que o PS não apresente contas no programa eleitoral ao contrário do que faz o Bloco, remete-as para o Programa de Estabilidade. E essas contas são um pouco estranhas. Não há verbas para aumentar funcionários públicos e estão previstos cortes nas carreiras especiais da Função Pública, sem se explicar como”.
Perante a insistência da líder do BE, que ia pedindo os números e até usou o trunfo das contas internas de cada partido para mostrar que nessa gestão o BE é mais confiável, o primeiro-ministro respondeu de forma sacudida para tentar arrumar de vez o argumento : “Tenho aqui os números e posso dar-lhos”, disse.
Temas a mais para tempo a menos
E se os dois primeiros terços do debate ficaram marcados pelos ataques de Catarina Martins ao programa do PS e pelas críticas de António Costa ao “irrealismo” do Bloco de Esquerda, no terço final foram vários os assuntos trazidos, já em contrarrelógio, para cima da mesa.
O líder do PS tentou ficar na ofensiva, apontando as falhas que vê numa das principais propostas do programa do BE na área da Habitação, que prevê colocar 100 mil casas no mercado imobiliário com rendas entre os 150 e os 500 euros. “Fazem essas contas tendo como valor de referência 60 mil euros por cada fogo. Trata-se de um número que está desatualizado, desfasado da realidade”, realçou antes de notar que nas 3 mil casas que o Governo construiu em Almada utilizando como preço de referência 114 mil euros, “quase o dobro” do estipulado no programa do BE. “Fizeram as contas pela metade”, atirou o líder socialista.
O tema podia ter dominado o resto do debate, até porque Catarina Martins quis ir ao detalhe para esclarecer que o seu partido pretende reabilitar casas e não construí-las de raiz, como o PS. Mas rapidamente foi arrumado, com o moderador, António José Teixeira, a tentar introduzir mais temas no debate.
Com o relógio a contar e sem tempo para grandes discussões de fundo, a parte final do debate levou os protagonistas a tocarem em diversos dossiês mas sempre pela rama. Das carreiras da função pública à Cultura, passando pela legislação laboral, o debate foi-se encaminhando para o fim sem que o tom de crispação descesse — ou aumentasse.
No fim, e já na última intervenção, tanto António Costa como Catarina Martins mantiveram a porta aberta a um novo entendimento. O primeiro-ministro voltou a repetir uma das frases que marcaram este debate — “eu não abri uma porta de diálogo para agora ser eu a fechá-la — e a coordenadora do BE lembrou que o partido está disponível para contribuir para maiorias mas avisando que “não passa cheques em branco”.