A comissária europeia da Concorrência, Margrethe Vestager, considerada pelo setor tecnológico norte-americano como a “atormentadora chefe” de Bruxelas para Silicon Valley, rejeitou esta terça-feira ser “inimiga” de gigantes como Google ou Facebook, apesar das multas milionárias aplicadas.

“Considero-me uma inimiga do mau comportamento. Isto não tem a ver com uma determinada empresa ou com abrir guerra com uma certa companhia”, afirmou Margrethe Vestager, em entrevista à agência Lusa, em Bruxelas.

Recordando as coimas milionárias aplicadas neste seu mandato à frente da pasta da Concorrência, que assumiu em 2014, a responsável assinalou que “a maioria destas empresas são incríveis”, pelo que chega a questionar “o porquê de estas empresas” terem determinadas ações que violam as regras da concorrência na União Europeia (UE).

Nestes cinco anos, fazem parte do portefólio de Margrethe Vestager multas pesadas como a aplicada à Apple em agosto de 2016, num total de 13 mil milhões de euros por benefícios fiscais ilegais na Irlanda, ou a de 110 milhões de euros imposta ao Facebook em maio de 2017 por a empresa ter fornecido informação enganosa na compra da aplicação WhatsApp.

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À Google, foram aplicadas três multas por práticas abusivas em determinados produtos do grupo: em junho de 2017 (2,42 mil milhões de euros), em julho de 2018 (4,34 mil milhões de euros) e em março deste ano (1,49 mil milhões de euros).

Também este ano, a Comissão Europeia multou a tecnológica norte-americana Qualcomm, que produz componentes para telemóveis, em 242 milhões de euros por abuso de posição dominante no mercado na tecnologia de terceira geração (3G), uma coima histórica.

Pelo meio, e ainda este ano, o executivo comunitário abriu uma investigação à gigante norte-americana de comércio eletrónico Amazon para determinar se a companhia teve acesso a dados pessoais de vendedores independentes para deter informação privilegiada e acusou as fabricantes de automóveis BMW, Daimler e VW de cartel que limitou a concorrência na área das tecnologias limpas.

Fazendo um balanço destes cinco anos, a responsável vincou, na entrevista à Lusa, que “a concorrência é que mantém estas empresas com os pés na terra”, sendo “crucial que exista”.

Já questionada sobre eventuais pressões diretas das gigantes tecnológicas, Margrethe Vestager negou alguma vez as ter sentido.

“Por vezes, [estas empresas] não ficam felizes com a abordagem europeia, mas continuam muito felizes por fazer negócios na Europa”, acrescentou.

Apesar de considerar ser “ainda muito cedo para avaliar” se estas medidas pesadas já tiveram o efeito pretendido, de evitar futuros comportamentos ilegais, Margrethe Vestager disse estar satisfeita por existir “um certo número de europeus contentes com o trabalho feito”.

“Fico feliz por ter feito parte de uma mudança que permitiu uma visão mais realista no que toca à tecnologia e da forma como nos serve”, adiantou à Lusa.

A política dinamarquesa Margrethe Vestager, que é comissária europeia para a Concorrência desde 2014, está prestes a terminar o mandato para, no próximo executivo comunitário, juntar a esta pasta a vice-presidência para a Era Digital.

Questionada se as multas milionárias serão uma realidade no próximo mandato, Margrethe Vestager assegurou: “Se tivermos esse tipo de casos, claro que sim”.

Dados os chumbos do Parlamento Europeu a três dos comissários designados (de França, Hungria e Roménia) pela presidente da Comissão Europeia eleita, Ursula von der Leyen, já não se prevê que o novo executivo comunitário entre em funções na entrada prevista, 1 de novembro, projetando-se agora um início de mandato a 1 de dezembro.

Falando à Lusa sobre este novo prazo, Margrethe Vestager considerou que “o Parlamento Europeu tem toda a legitimidade para fazer o que está a fazer, por isso não tem a ver com começar num certo dia, tem a ver com o Parlamento estar satisfeito com a Comissão designada”.

“Todos esperamos poder começar no primeiro dia de dezembro porque estamos entusiasmados e queremos começar. Cabe ao parlamento [decidi-lo]”, acrescentou.

Claro está, para Margrethe Vestager, que o trabalho da Comissão Europeia para garantir uma concorrência justa na UE “ainda não está completo”, segundo afirmou na entrevista à Lusa.

Isto porque, “provavelmente, será necessária mais regulação”, apontou a responsável.

Como exemplo, Margrethe Vestager recordou que, “no passado, com a questão das taxas dos pagamentos com cartão bancário, verificou-se que não se poderia responder a casos isolados e que era necessária legislação para lidar com essa matéria”.

“Penso que vamos ver o mesmo neste [próximo] mandato, em que vou analisar que tipo de legislação é que necessitamos para ter a melhor tecnologia, controlando as suas desvantagens”, notou.

Outra área para a qual o executivo comunitário quer legislação é a da inteligência artificial.

“Estamos a tentar criar um quadro regulatório para algo que é difícil de definir”, observou a futura vice-presidente comunitária para a Era Digital.

Outro assunto que estará de novo em cima da mesa, no próximo mandato, será o da criação de impostos digitais, que chegaram a ser propostos pelo executivo comunitário em março de 2018, mas para os quais não houve consenso entre os Estados-membros da UE.

“Não conseguimos uma unanimidade para o fazer, embora uma larga maioria dos Estados-membros o quisesse”, reconheceu Margrethe Vestager, adiantando que, se a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) não conseguir um “acordo global” sobre esta matéria, Bruxelas irá novamente propor tais impostos “até final de 2020”.

A moeda do Facebook não pode funcionar à margem da lei

A comissária europeia da Concorrência considerou também que a moeda digital do Facebook, a Libra, “não poderá funcionar à margem da lei” comunitária, razão pela qual Bruxelas fez já “muitas perguntas” à empresa de Mark Zuckerberg.

“Temos muitas pessoas a trabalhar nessa matéria porque se é criada uma nova moeda corrente, essa não pode ser uma moeda à margem do âmbito regulatório” da União Europeia (UE), afirmou Margrethe Vestager.

Por essa razão, “fizemos muitas perguntas [ao Facebook] para perceber como é que a Libra vai funcionar”, acrescentou a responsável, ressalvando que Bruxelas ainda não tem uma “posição final” sobre o assunto.

Esta criptomoeda, que o Facebook quer lançar em 2020, visa ser um método de pagamento alternativo aos canais bancários tradicionais.

Inspirada em criptoativos como o bitcoin, a moeda digital deverá ser administrada por um consórcio sem fins lucrativos, a Associação Libra.

Porém, o projeto já suscitou sérias preocupações do setor, tanto de bancos centrais e políticos, como das autoridades reguladoras, particularmente sobre riscos para a estabilidade financeira.

eBay, Visa e Mastercard também já não apoiam a criptomoeda do Facebook

Por essa razão, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e as autoridades europeias de supervisão estão já a analisar o projeto e as suas implicações.