O sucesso da publicação de Drácula, em 1897, fez com que o romance de Bram Stoker nunca deixasse de ser adaptado. É, aliás, desse ano que data a primeira versão da história do vampiro que decide deixar o seu velho castelo na Transilvânia e estabelecer-se em Londres, uma peça de teatro escrita pelo próprio Stoker. Seguiram-se filmes, outras peças de teatro e, por fim, séries de televisão. Em 2013, Jonathan Rhys Meyers, que ficou conhecido por fazer de Henrique VIII em “Os Tudors”, vestiu a pele de Drácula numa produção anglo-americana que foi cancelada ao fim de uma única temporada. Esta semana, o vampiro mais famoso da história fez um regresso ao pequeno ecrã, numa série homónima com o dinamarquês Claes Bang no papel principal.

A minissérie de três episódios produzida pela BBC, disponível a partir deste sábado na Netflix, recebeu críticas muito positivas na imprensa britânica. O jornal The Guardian chamou-lhe uma “carta de amor ensanguentada para um clássico”, cuja história cinematográfica remonta a 1921. Foi nesse ano que estreou a primeira versãodo romance de BramStoker para o cinema — uma produção húngara chamada “Drakulahalála”, “A Morte de Drácula”. O filme, realizado por Károly Lajthay, não chegou aos dias de hoje (conhecem-se apenas algumas imagens publicitárias e a sinopse, a história de uma jovem que tem pesadelos horríveis depois de se cruzar com Drácula, um músico louco). É por isso que, quando se fala nas primeiras adaptações de Drácula, é outro filme que vem à cabeça.

[Trailer da minissérie da BBC:]

Uma sinfonia de horror filmada com uma única câmara

Foi ainda no tempo do cinema mudo, no auge do Expressionismo alemão, que surgiu uma das famosas adaptações cinematográficas do clássico de Bram Stoker. Realizada por F. W. Murnau, que na altura contava apenas com um filme realizado (“O Rapaz de Azul”), “Nosferatu: Uma Sinfonia de Horror” revolucionou a forma como até então se fazia cinema ao captar o estado emocional das personagens. Os efeitos especiais utilizados (por exemplo, o uso de imagens em negativo) e a sinistra caracterização do ator Max Schreck, que interpretou o papel do famoso vampiro, são ainda hoje emblemáticas, e o contraste entre luz e sombra uma referência. Feito muito antes do cinema norte-americano ter popularizado a imagem aristocrática do morto-vivo que usa uma longa capa preta, “Nosferatu” é, para muitos, a melhor e a mais pura adaptação de Drácula.

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O filme foi realizado no verão de 1921, no norte da Alemanha (as cenas exteriores foram filmadas em Wismar) e no norte da Eslovénia, nomeadamente no Castelo de Orava, com apenas uma câmara, operada por Fritz Arno Wagner, por razões financeiras. A banda sonora, a “sinfonia de horror”, foi composta por Hans Erdmann e os cenários, guarda-roupa e maquilhagem idealizados pelo artista e arquiteto Albin Grau, co-fundador da produtora Prana, que se inspirou no filme expressionista alemão “O Golem”, realizado por Paul Wegener (que interpretava o papel do monstro) e Carlo Boese, em 1920.

[O filme “O Golem”, disponível na íntegra no Youtube:]

Por se tratar de uma versão não autorizada do romance de Bram Stoker, que tinha morrido há menos de dez anos quando “Nosferatu” começou a ser produzido, os nomes e também alguns elementos do enredo original foram alterados pelo guionista Henrik Galeen. O Conde Drácula tornou-se no Conde Orlok, Jonathan Harker no Thomas Hutter (Gustav von Wangenheim) e a sua mulher, Mina, na Ellen (Greta Schröder). Van Helsing era o Professor Bulwer (John Gottowt) e até o vampiro deixou de ser vampiro, sendo apenas nosferatu.

Na versão de Murnau, personagens secundárias como Arthur Holmwood e Quincey Morris, tão importantes na obra original, não existem. Muitas das características do Drácula de Stoker também desapareceram, dando lugar a outras que acabaram por persistir no tempo — foi na adaptação de 1922 que surgiu a ideia, explorada por muitos filmes posteriores, de que um vampiro não consegue sobreviver à luz solar (em “Nosferatu”, o Conde Orlok transforma-se numa nuvem de fumo; o pó só surgiu depois). No romance, Drácula não é destruído pelo sol, mas perde todos os seus poderes sobrenaturais durante o dia, tornando-se num homem como outro qualquer.

Mulher de Bram Stoker processou a produtora de “Nosferatu”, que teve de declarar falência

Todas estas alterações não foram, no entanto, suficientes para impedir que a família do escritor irlandês processasse a produtora responsável pelo filme, a Prana. Fundada em 1921, por Enrico Dieckmann e Albin Grau — que durante a Primeira Guerra Mundial tinha conhecido um agricultor sérvio que dizia ser filho de um vampiro, uma história que nunca lhe saiu da cabeça — para criar filmes dedicados ao oculto e ao sobrenatural, a Prana teve uma vida. Fechou pouco depois da estreia de “Nosferatu” a 15 de março de 1922, em Berlim, depois de ter declarado falência para evitar o pagamento da indemnização a Florence Stoker, que tinha instaurado o processo de violação dos direitos de autor. Uma série de más decisões comerciais tinha deixado a empresa numa situação frágil.

Florence Stoker soube da existência de “Nosferatu” quando lhe chegou às mãos um cartaz do filme, que dizia tratar-se de uma adaptação livre do romance do seu marido. Descontente com a situação, decidiu avançar com um processo judicial e pedir uma indemnização. Quando percebeu que isso não seria possível porque a Praia tinha falido, fez o que podia para garantir que todas as cópias do filme eram destruídas e que “Nosferatu” não voltaria a ser exibido nos cinemas. O tribunal acabou por lhe dar razão e foi apenas por um golpe de sorte que a produção chegou até aos dias de hoje — uma cópia que tinha sido enviada para distribuição sobreviveu. Foi a partir dela que se fizeram todas as que existem hoje, transformando a versão de Murnau da história do Conde Drácula num filme de culto e popularizando a imagem de Max Schreck, com os seus dentes pontiagudos, orelhas espetadas e unhas longas.

[“Nosferatu”, disponível na íntegra no Youtube:]

Em alemão, “Shreck” significa “terror”, um apelido apropriado para um homem que acabou por ganhar fama de ser um vampiro verdadeiro. Esta ideia foi popularizada pelo crítico de cinema Ado Kyro que, em 1953, lançou o boato de que o nome do ator que tinha interpretado o papel do nosferatu nunca tinha sido revelado. “Quem se esconde atrás da personagem de Nosferatu? Talvez o próprio Nosferatu?”, questionou Kyro. Esta ideia foi explorada anos depois por E. Elias Merhige em “A Sombra do Vampiro”, um relato ficcionado da realização de “Nosferatu” com John Malkovich (Murnau) e Willem Dafoe (Schreck).

Desde 1922, “Nosferatu” inspirou músicas, peças de teatro (Bernard J. Taylor transformou a história num musical nos anos 90), séries de televisão e outros filmes. Em 1979, o também alemão Werner Herzog realizou um remake de “Nosferatu” com Klaus Kinski no papel principal. Um documentário sobre o filme, “A Linguagem das Sombras”, com a participação a sobrinha de Murnau, Eva Diekmann, estreou em 2007.