A reportagem saiu no The New York Times a meio do Open da Austrália mas parecia querer adivinhar qualquer coisa. Na verdade, duas coisas. A primeira era que, numa altura em que o ténis tem cada vez mais talentos capazes de atingir o nível mais alto, esta modalidade ainda é para “velhos”. A segunda, essa, é que dentro desses “velhos”, há um que encontrou o elixir da juventude em relação à vontade de ganhar. Ele é Novak Djokovic.

Novak Djokovic, a versão mais perfeita de máquina que arrasou Nadal e fez história no Open da Austrália

Descrição sucinta: Roger Federer representa o “pleaser“, aquela figura elegante e paternal na forma como joga e em tudo o resto que é bonito e dá prazer em tudo o que faz; Rafa Nadal é o “fighter“, aquele lutador e um competidor nato que nunca desiste. E Djokovic, aquele que entre o trio pode ser o menos amado a uma escala global mas que é em paralelo o mais complicado de derrubar? A publicação não tem dúvidas: o “searcher“. O pesquisador. Até por estar numa fase de carreira onde ganhar os principais títulos não lhe chega. Luta por mais. Quer mais. Mas percebeu neste arranque de 2020 que não pode apenas olhar para aqueles dois do costume, depois de ter sido obrigado por Dominic Thiem a ir a cinco sets (segunda vez em finais em Melbourne) para manter o registo 100% vitorioso no Open da Austrália, ganhando – em quatro horas – pela oitava vez noutras tantas decisões o troféu.

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Num paralelismo explicado mais à frente, Thiem nasceu com um talento e uma personalidade como Federer mas foi trabalhado para se transformar numa máquina competidora como Nadal. E foi assim que, num ano e meio, foi a três finais do Grand Slam. Perdeu as duas primeiras com o espanhol, perdeu agora com Djokovic. Um Djokovic que, mais do que aquilo que faz bem, marca diferenças pela forma como consegue resistir aos momentos maus. Foi assim que alcançou este domingo o 17.º Grand Slam da carreira. É assim que o balcânico visa os 19 Grand Slams de Rafa Nadal. É assim que pisca o olho ao recorde de 20 Grand Slams de Roger Federer.

A nutrição, a parte mental, a análise de dados e o pós versão 2.0

A forma como atingiu o topo é um caminho relativamente conhecido. Talento natural à parte, o miúdo que fugiu à guerra deu um salto enorme a partir do momento em que mudou Igor Cetojevic lhe mudou a dieta. Sem glúten, perdeu peso, ganhou mobilidade e conquistou o direito de dominar o ténis durante cinco anos. Depois, foi nos números e na análise de jogos que criou uma versão 2.0. Djokovic conheceu Craig O’Shannessy através de um amigo comum em 2017 e atingiu então o ponto de maturação que lhe faltava depois do equilíbrio nutricional e do desenvolvimento da parte física. “O segredo é a capacidade que ele tem para absorver informação e colocá-la em prática no jogo, a sua capacidade de não se centrar apenas em si mas no seu adversário e a sua capacidade para confundir os rivais, que muitas vezes esperam que faça uma coisa e faz outra. Em cada jogo há cenários diferentes e em cada cenário há um plano de jogo. Às vezes é uma quantidade de informação muito grande mas o Novak tem essa capacidade de saber o que fazer em cada um dos momentos”, explicou o analista em 2019 ao Punto de Break.

A vitória de Djokovic parecia matemática. E a explicação pode estar nos números – e em Craig O’Shannessy

“O que faço é ajudá-lo [Novak Djokovic] a entender melhor os seus rivais e eliminar as más derrotas da equação. Essas derrotas típicas contra rivais que não conhece porque nunca os defrontou antes. Assim já nada pode resultar numa surpresa”, acrescentou aquele que é descrito como a “mente brilhante” do ténis, responsável pelo projeto “Brain Game Tennis” e a outra parte menos visível do sucesso do sérvio que chegava à oitava final do Open da Austrália com o objetivo que reforçar a condição de jogador com mais triunfos em Melbourne e somar a oitava vitória no Major. Que seria o 17.º Grand Slam, a dois de Nadal e três de Federer. Mas Djoko mudou mesmo.

“Toda a gente fala de troféus, de conquistas, de recordes, de história. E eu sinto-me um abençoado por estar nessa posição em que sou um dos nomes no meio desse tipo de conversas. Sinto-me grato pela carreira que tive mas, hoje, o ténis é mais uma plataforma do que uma obsessão sobre as conquistas individuais. Já não vejo o ténis como aquilo onde penso ‘Vou chegar lá, vou ganhar o troféu, vou fazer tudo o que for possível por esse objetivo e, assim que consiga, essa é a única razão para jogar. Fechei esse capítulo na minha vida. Penso que com a evolução da minha vida cheguei ao patamar em que o ténis é mais do que isso para mim”, explicou, numa ideia onde coloca o antigo treinador Andre Agassi, que trabalhou com o seu técnico de sempre Marian Vajda (hoje essa posição está com o croata e também ex-campeão Goran Ivanisevic), como principal inspiração.

No ténis, um desporto descrito como o sérvio como algo cada vez mais mental tendo em conta a evolução a nível físico e de preparação de todos os jogadores, já não chega a Djokovic ganhar. Quer perceber como ganhar. Onde ganhar. Quando ganhar. Mas também quer dedicar cada vez mais tempo às pequenas rotinas que tem na sua residência em Monte Carlos com a mulher Jelena e os filhos Stefan, de cinco anos e Tara, de dois. A ver logo de manhã ao Mediterrâneo e a fazer sumos para todos entre sessões de abraços e canções com um pouco de ioga pelo meio até levar Stefan à escola. O que lhe poderia tirar o foco é o que lhe dá hoje outra estabilidade.

Como um gentleman tipo Federer se converteu num competidor como Nadal

Também Thiem tem uma ligação ainda que menos direta a Andre Agassi: quando lhe perguntam aquele que seria para si o adversário de sonho, é o antigo número 1 americano que desperta o interesse do austríaco. O finalista vencido nas últimas duas edições de Roland Garros gosta de desafios, de saber que entra num court como outsider mas que tem jogo suficiente para ser cada vez mais competitivo com os teóricos favoritos. Aos 26 anos, traçando um paralelismo arriscado e às devidas proporções, é o jogador com o perfil mais parecido com Rafa Nadal, aquele jogador com quem tem sempre mais dificuldades sempre que se cruzam (sobretudo em terra batida).

Dominic Thiem, o rapaz que era demasiado educado para ser tenista e agora é o “príncipe da terra batida”

Filho de dois professores de ténis, Wolfgang e Karin, Thiem teve a modalidade a entrar-lhe pelo coração em casa e pelos olhos na primeira vez que entrou num court. Com oito anos, começou a treinar com Günter Bresnik, antigo treinador de Patrick McEnroe e Henri Leconte. E foi com ele que ganhou aquilo que faltava juntar a um talento natural acima da média com uma versatilidade de jogo anormal para a idade.  “Quando entrava em algum lado, cumprimentava toda a gente. Dizia ‘por favor’ e ‘obrigado’, olhava nos olhos de outra pessoa quando estendia a mão. Notavelmente simpático e amigável. Mas era muito dócil e educado para ser um atleta de alta competição. Era muito futuro genro e não suficientemente Horst Skoff ou Stefan Koubek”, explicou Bresnik.

“Disse-lhe para ir cortar madeira em vez do treino físico, atormentei-o com exercícios arbitrários. Provocava-o e exigia aos pais que o obrigassem a pôr a mesa em casa e a lavar as próprias roupas. Queria mandá-lo para treinos de boxe mas ele resistiu e protestou, o que foi um bom sinal”, acrescentou, apesar de ter conseguido ainda que Thiem fosse jogar hóquei em gelo durante um ano o treinador. A isso juntou também quando era mais adolescente os treinos mais pesados na floresta com Sepp Resnik, um conhecido atleta (e soldado) que participa em provas do Ironman, o que lhe permitiu resolver o problema das infeções e vírus que o afetavam. Ah, e ainda houve aqueles meses de serviço militar que cumpriu e que lhe deram a resistência que hoje se vê na carreira. Essa foi a chave para chegar ao patamar onde se encontra. Mal comparado mas tentando encontrar semelhanças no ténis, Thiem nasceu com o talento de um Federer mas foi trabalhado para ser um competidor como Nadal.

Do “ficaste famoso” para o árbitro à bola na tela empurrada pelos deuses

Depois da surpreendente derrota com Marco Cecchinato nos quartos de Roland Garros, Djokovic participou em sete Grand – incluindo o atual Open da Austrália. Ganhou de forma consecutiva Wimbledon e US Open em 2018, começou 2019 com mais um triunfo em Melbourne, caiu nas meias de Roland Garros do ano passado frente ao agora adversário Dominic Thiem. O sérvio que ganhou depois Wimbledon seria eliminado na quarta ronda do US Open de 2019 pelo suíço Stanislas Wawrinka mas era aquela derrota de Paris em cinco sets que o marcara, por dar ares de um primeiro sinal de que a nova geração pode estar mais próxima do que aparentava estar.

Depois de começar o jogo com um break, Djokovic controlou sempre o primeiro set e até mesmo quando perdeu o seu jogo de serviço fez o contra break logo de seguida para fechar com 6-4. No entanto, Thiem estava cada vez mais a entrar na partida, vendo o sérvio acumular erros não forçados e utilizando mais vezes a esquerda ao longo numa variação de jogo que permitiu um break a meio do segundo set que colocou o sete vezes vencedor do Open da Austrália numa situação mais complicada até o sérvio inverter o contexto, colocar o austríaco em pressão, jogar para três erros não forçados do adversário, recuperar do break com o 4-4 e voltar a cair com duas bolas em que perdeu o seu primeiro serviço por excesso de tempo, permitindo que Thiem ganhasse o set com 6-4.

Tudo mudou com esse momento. Um momento que ainda está a ser comentado, depois de Djokovic ter tocado no pé do árbitro a caminho da cadeira dizendo “Parabéns, ficaste famoso” por ter sancionado duas violações de tempo no seu serviço. “Parabéns, mesmo. Ficaste famoso. Em especial com aquela do segundo serviço, parabéns”, atirou quando estava sentado. Em muitos pontos, pela forma como chegava atrasado ou como ia acumulando erros não forçados, Djokovic parecia sentir dificuldades físicas (que o levaram a receber assistência no balneário). No entanto, Thiem teve muito mérito na forma como se soube reajustar ao serviço do sérvio e abriu o terceiro set com dois breaks que o colocaram numa posição privilegiada para fechar o parcial com 6-2.

Após essa paragem, tudo voltou ao “normal” mas com Thiem mais adaptado ao jogo de Djokovic e o sérvio ainda num regime de serviços mínimos a fazer os seus pontos mas sem a combatividade habitual nos pontos mais longos que eram disputados. Com 1-1, Djokovic enfrentou grandes dificuldades no seu jogo de serviço, que segurou após uma bola que bateu na tela e passou de forma caprichosa para o outro lado da rede. Pedindo desculpa ao austríaco, o balcânico apontou para o céu. Estava ali o ponto de viragem, uma viragem confirmada com um break que fez o 5-3 antes de fechar o quarto set com um jogo em branco concluído com um ás que carimbou o 6-3. As decisões iam mesmo para um quinto e último parcial, onde a diferença esteve na capacidade de converter os breaks, algo que Djokovic conseguiu e Thiem acabou por falhar, perdendo o quinto e último set por 6-4.