Antes de embarcar em Bruxelas, onde estava desde terça-feira, António Costa ligou para Lisboa a convocar uma reunião de emergência do seu núcleo duro para São Bento. Às 21h30, já de regresso, o primeiro-ministro quis fazer um ponto da situação do IVA da luz com os seus mais próximos e acompanhar as negociações que já estavam a decorrer no Parlamento em quatro frentes. Na reunião, Costa teve ao seu lado os ministros Siza Vieira, Mariana Vieira da Silva, Pedro Nuno Santos, o secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, Tiago Antunes, e ainda o secretário-geral adjunto do PS, José Luís Carneiro. A líder da bancada e o secretário de Estados dos Assuntos Parlamentares estavam no Parlamento em comunicação permanente com o primeiro-ministro.
À hora de almoço, Rui Rio tinha “ajustado” a sua proposta para baixar o IVA da luz para 6%, adiando a entrada em vigor para outubro e resumindo as contrapartidas necessárias aos cortes nos gabinetes ministeriais. E o Bloco alinhava. Soou o alarme no Governo e ouviram-se logo várias intervenções socialistas de rajada no plenário, ainda nem o líder do PSD tinha abandonado o púlpito nos Passos Perdidos. Mas era preciso mais do que isso, perante a nova estratégia do PSD que se mostrava pronto para ir até onde fosse preciso para aprovar a redução do IVA da luz. Por isso, no Parlamento, o PS e o Governo começaram a mover peças junto das bancadas do PCP, CDS, PAN e também junto da deputada Joacine Katar Moreira.
À hora de almoço, alguns destes grupos parlamentares deram-se conta do grande nervosismo que Rio tinha provocado no PS, até porque os primeiros contactos começaram logo ali no plenário, pelos telefones internos, mal o líder do PSD acabou de falar lá fora. “Estavam em pânico”, garante fonte parlamentar. Ao Observador, a meio da tarde, um governante avisava que a “situação era dramática”. Havia o risco real de o PSD conseguir levar a sua avante e o Governo dramatizava: para o próximo ano, 2021, a redução do imposto implicaria uma perda de receita na ordem dos 800 milhões de euros. O fantasma da ingovernabilidade voltava a pairar, oito meses depois da quase coligação negativa para repor tempo de contagem dos professores e na primeira votação de peso desta legislatura. E a aposta na dramatização era tal que, de acordo com o que avançou a Renascença, o PS se preparava para fazer chumbar o orçamento caso o IVA da eletricidade fosse aprovado – fazendo com que todo o processo orçamental recomeçasse do zero.
Os socialistas perceberam cedo que as votações cruzadas de cada um dos pontos das várias propostas e a estratégia do PSD faziam com que fosse necessário ter uma maioria bem mais robusta, ou seja, em vez de se cingir a conversas com o PCP, os socialistas desdobraram-se em contactos também junto do CDS, PAN e da deputada não inscrita, Joacine Katar Moreira. Era preciso garantir que nenhuma das propostas passava nem nenhuma das conjugações que o PSD estaria a congeminar.
Quem foi contactado e o que conseguiu em troca
Além do PCP, com conversas que decorreram sobretudo por telefone, o PS tentou também negociar com o CDS. Problema: o grupo parlamentar estava em branco sobre o assunto. Com uma nova direção recém-empossada, teria de vir de Francisco Rodrigues dos Santos a indicação do voto sobre uma matéria tão central. Ainda para mais quando, na quinta-feira, o novo líder do CDS tinha desafiado o PS e o PSD resolverem em conjunto a situação do IVA, excluindo a esquerda. Foi para aí que se redirecionaram as investidas socialistas.
Cecília Meireles aguardou até ao fim da tarde, segundo apurou o Observador, pela indicação da sede no Largo do Caldas. Terá sido o próprio líder a comunicar à líder parlamentar que o CDS se absteria na proposta do PSD e votaria contra todas as outras propostas de alteração para reduzir a taxa do IVA. Na intervenção que fez na manhã desta quinta-feira, Cecília Meireles fez questão de mostrar que estava a ler a sua intervenção: “O CDS é um partido responsável” e notou o apelo de Francisco Rodrigues dos Santos ao PS e ao PSD, remetendo para ele a orientação de voto ali tomada: “Após decisão da direção do partido, o CDS votou pela abstenção”. E argumentou com a instabilidade do processo e do impacto dos valores envolvidos.
Durante a tarde dessa quarta-feira, entre a resma de votações que decorriam em catadupa, o CDS viu o PS corrigir duas votações a propostas de alteração suas que acabaram viabilizadas, depois de já terem sido postas de parte. Uma dessas propostas que foi recuperada foi a que impedia que os idosos que se mudam para casa de familiares perdessem a isenção do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) que possuam. A outra proposta do CDS em que o PS mudou o sentido de voto foi numa alteração ao IMI para que passasse a prever que “os prazos de reclamação e de impugnação se contem a partir do termo do prazo para pagamento voluntário da última ou da única prestação do imposto”.
Com o PAN, quem fez as honras da negociação terá sido a deputada do PS Constança Urbano de Sousa — que durante a tarde circulou muito pelos corredores parlamentares, muitas vezes com um dos secretários de Estados (do Orçamento ou dos Assuntos Fiscais). Pelas 23h30, já o PCP e o CDS tinham anunciado que se iam abster na proposta do PSD (tirando alguma pressão dos ombros do Governo), as três deputadas do PAN que estavam a acompanhar as votações na comissão de Orçamento e Finanças pediam cinco minutos de intervalo.
Com o PAN as negociações são sempre mais complexas e as indicações que chegavam ao núcleo do Governo é que haveria um pacote extenso de medidas pretendidas pelo partido. A negociação até começou antes, tanto que o PAN foi um dos primeiros partidos a dizer que votaria contra a descida do IVA. Mas as deputadas do partido pediram a interrupção dos trabalhos exatamente quando a comissão se preparava para começar a votar as propostas de alteração ao regime do IVA. Houve uma das medidas pretendidas pelo PAN que ficou logo sinalizada na votação do Orçamento que foi a taxa de gestão de resíduos. Aliás, um dia antes desta votação, o ministro do Ambiente já tinha admitido passar a taxa para o dobro, que era o que pretendia o PAN com a sua proposta. Outras medidas terão sido negociadas, mas nem todas no âmbito orçamental.
A outra frente de ataque para o PS foi a deputada única Joacine Katar Moreira, que se o CDS se abstivesse na proposta do PCP e na do BE, poderia ser a chave do desempate, perante um Parlamento dividido entre 112 deputados a favor (BE, PCP, PSD, IL e Chega) e 112 deputados contra (PS e PAN). O Observador sabe que os socialistas também falaram com a deputada que decidiu votar contra o PSD, não se sabendo, no entanto, se terá tido algum ganho político extra nesta negociação. No Facebook, ao fim do dia, a deputada explicou que votou contra a descida do IVA na luz por questões ambientais e também porque “colocar em causa o primeiro Orçamento seria colocar em causa a estabilidade que a muito custo foi conseguida por todas e todos”. A deputada perdeu esta semana a confiança do partido pelo qual foi eleita, o Livre, e é agora deputada não inscrita, já que decidiu manter o seu mandato de deputada.
O acordo ficou, assim, logo fechado na noite de quarta-feira e quando saiu de São Bento à noite, António Costa já ia seguro quanto à vitória sobre a estratégia do PSD, não só na especialidade, naquela noite, como no dia seguinte, quando aquelas propostas voltassem a ser votadas no plenário, antes do debate de encerramento do Orçamento. Os sociais-democratas queriam votar primeiro a proposta do PCP de redução do IVA para 6%, condicionado desta forma o PS na votação que se seguiria das compensações do PSD. O raciocínio era que com a descida generalizada aprovada, o PS quereria pelo menos reduzir o impacto orçamental, limitando a aplicação de tal medida a apenas três meses do ano, como sugeria o PSD. Mas o plenário não deixou que a proposta do PCP fosse votada antes e começou-se pelas contrapartidas do PSD. Foram chumbadas. Deixou de haver margem para continuar.
A estratégia do PSD neste Orçamento chegou a ser apelidada de “kamikaze” e fez o Governo ficar de alerta sobre uma maior possibilidade de conjugações de voto que possam contrariar as suas vontades nesta legislatura. Foi só um primeiro capítulo, é o que se teme no Executivo, e deu origem a reunião de emergência liderada por António Costa para coordenar a estratégia de contra-ataque e não perder a face logo na primeira volta do novo Parlamento.