O avanço do novo coronavírus fez aparecer no léxico dos dois principais decisores políticos portugueses uma expressão que não era usada – pelo menos com intenção de o declarar – desde novembro de 1975: estado de emergência. A questão foi falada entre Presidente da República e primeiro-ministro, na conversa por vídeoconferência que tiveram este domingo, e será tema do Conselho de Estado da próxima quarta-feira. António Costa mostrou que considera prematura esta declaração e, ao que o Observador apurou, Marcelo Rebelo de Sousa estará “em sintonia”. Mas a pressão social para medidas mais restritivas, que este estado de exceção permitiria, é muita nesta altura e a hipótese está em cima da mesa.

Na quarta-feira serão 20 os conselheiros à mesa e já sabemos que um deles, que falou este domingo da SIC, é favorável à medida. Luís Marques Mendes considerou “necessário ir mais longe”, incluindo a hipótese do estado de emergência para limitar ainda mais a liberdade de circulação e de utilização de espaços públicos.

António Costa estará mais recuado, ele que este domingo pediu “serenidade” e garantiu que o quadro legislativo já permite “implementar as restrições que são necessárias”, ainda que tenha admitido “talvez a necessidade de muscular mais a liberdade de circulação”. O primeiro-ministro até avisou – na linha de argumentação mais recuada face à necessidade de agravar medidas – que avançar com esta declaração “implica medidas de restrição de direitos que não faz sentido discutir, como a suspensão da liberdade de expressão ou de informação”. Mas isso também estaria em causa nesta situação? E quem pode declarar estado de emergência no país? E por quanto tempo? E o que isso significa?

Vamos à explicação, com base no que diz a Constituição, o regime de estado de sítio e do estado de emergência e o regimento da Assembleia da República:

O estado de emergência é o estado de exceção mais elevado?

Não. Existe o estado de sítio que é declarado apenas quando existe ou estejam iminentes “atos de força ou insurreição que ponham em causa a soberania, a independência, a integridade territorial ou a ordem constitucional democrática e não possam ser eliminados pelos meios normais previstos na Constituição e na lei”. Não é este o caso que se verifica, adverte o constitucionalista Paulo Otero, que aponta como mais adequado ao contexto em que vivemos o estado de emergência, que é para “situações de menor gravidade”. É o que diz o regime que o legisla, que até refere que situações são essas: “Quando se verifiquem ou ameacem verificar-se casos de calamidade pública”. Daí que Marcelo e Costa só tenham referido esta hipótese e não outra.

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Quem declara o estado de emergência?

É uma das competências do Presidente da República que, no entanto, não age sozinho. A declaração depende de audição do Governo, de acordo com a Constituição, e ainda de autorização da Assembleia da República. “É uma lei de autorização do Parlamento para o Presidente da República”, explica Otero. Depois de todo este processo toma forma de “decreto do Presidente da República” que ainda tem de passar pelo primeiro-ministro para a assinar.

Agora vamos imaginar que esta segunda-feira, o Parlamento suspende o funcionamento. O que aconteceria? Quem poderia desencadear o processo? Só o plenário da Assembleia da República o pode fazer? Não. Se a Assembleia da República não estiver a funcionar, será a Comissão Permanente (que funciona sempre que o Parlamento encerra, seja para férias, seja por dissolução, seja por causa do novo coronavírus) que a substitui nesta autorização. Neste caso, mal o plenário possa voltar a reunir-se, terá de confirmar a decisão.

E há apoio, no atual contexto político?

O circuito de uma eventual declaração de estado de emergência estaria livre no atual quadro político. António Costa disse este domingo que o Governo “não colocará qualquer reserva” caso o Presidente entenda que deve ir por este caminho — embora entenda que se trata de “uma medida muito excecional e muito restritiva”. E no Parlamento basta maioria simples para o autorizar, coisa que estaria garantida pelo PS (a julgar pelas palavras de Costa) e também pelo PSD, que se mostrou, também este domingo, disponível para apoiar essa decisão. Jerónimo de Sousa também admitiu esse cenário, em entrevista à RTP.

Confirmada a autorização ou recusada, ela tem sempre uma forma de resolução (recomendação) e, em caso de recusa, diz a lei que isso “não acarreta a invalidade dos atos praticados ao abrigo da declaração não confirmada e no decurso da sua vigência”. Vale na mesma.

E como se declara e o que implica?

Aquilo que António Costa disse sobre as medidas que o estado de emergência implica, como se fosse um pacote que se aplica de forma fixa, não é verdade, segundo Paulo Otero. “Não tem sentido”, diz o constitucionalista, apoiado no que diz a legislação que é clara nisto quando define o que tem de conter a declaração de estado de emergência. Um dos pontos diz que o Presidente tem de “especificar direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso ou restringido”.

Ficam apenas suspensos ou restritos os direitos e liberdades, mas na medida do “estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade”. O constitucionalista contactado pelo Observador explica que, na situação atual, poderiam, quanto muito, ser necessárias medidas como a “quarentena forçada ou o recolher obrigatório”.

O Presidente da República tinha ainda de detalhar por que razão toma a medida e as consequências que prevê nesta alteração da normalidade, a que parte do território se aplicaria, quanto tempo duraria (já vamos a estes limites) e também teria de determinar “o grau de esforço das autoridades administrativas civis e do apoio às mesmas pelas Forças Armadas”.

Mas nem todos os direitos podem ser limitados. Há os intocáveis e estão salvaguardados deste impacto, pela Constituição: “À vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião”. E os cidadãos também mantêm o direito de acesso aos tribunais.

O Governo pode nomear comissários para garantir o funcionamento de institutos públicos, empresas públicas e outras empresas de vital importância nessas circunstância.

Embora seja o Presidente a declarar, é o Governo que executa o estado de emergência, com a fiscalização da Assembleia da República. E aos tribunais cabe “velar pela observância das normas constitucionais e legais que regem” este estado.

Qual a diferença para o estado de alerta (aquele em que estamos hoje)?

É como subir vários degraus na restrição de direitos. A situação de alerta é uma das três previstas na lei de bases da Proteção Civil, as outras duas (mais gravosas) são o estado de contingência e de calamidade. Vai subindo, por esta mesma ordem, o peso das medidas que a Proteção Civil pode tomar. Só na escala mais elevada, a calamidade, chega a poder restringir alguns direitos dos cidadãos: podem exigir, por exemplo, o acesso a propriedade privada, a requisição de bens e serviços. Mas sempre sem tocar em diretos, liberdade e garantias que estão inscritos na Constituição. A atuação do Estado é mais limitada na imposição de restrições.

O estado de alerta, declarado há dois dias pelo Governo, permite “adotar medidas preventivas e ou medidas especiais de reação”. Mas já é limitado nas restrições às liberdades dos cidadãos, por exemplo a sua mobilidade. Para onde pode ir, para onde pode viajar, se tem de ficar confinado ao espaço da sua casa, não podendo circular sequer nas ruas. E isto não só para pessoas, mas também para a circulação de mercadorias.

As autoridades militares também podem ter poderes reforçados, por decisão do Presidente da República, na vigência do estado de emergência.

Quanto tempo pode durar?

O tempo de duração do estado de emergência tem de ser fixado com dia e hora e não pode exceder quinze dias. Deve ter, segundo a lei, “duração limitada ao necessário à salvaguarda dos direitos e interesses que visam proteger e ao restabelecimento da normalidade”. Pode, no entanto, ser renovado várias vezes, sempre com o mesmo limite, ou seja, é revisto a cada quinze dias. Isto se “subsistirem as causas determinantes” — no caso do novo vírus, esta hipótese seria possível, tendo em conta a incerteza sobre quanto tempo vai manter-se o risco de propagação da doença que provoca, a Covid-19.

E, nestas renovações, o Presidente pode rever as medidas necessárias. Se for para as reduzir, basta um decreto presidencial (não tem de ouvir o primeiro-ministro nem ser autorizado pela Assembleia da República). Mas, se for para aumentar as medidas, o processo de autorização tem de voltar ao início — ouvir o primeiro-ministro e receber autorização legislativa da Assembleia da República.

Caso as circunstâncias que levaram ao estado de emergência deixem de existir, a declaração “será imediatamente revogada”, por decreto do Presidente, segundo o regime do estado de sítio e do estado de emergência.

Há poderes políticos que ficam limitados?

Sim, não pode ser dissolvida a Assembleia da República durante este período, nem podem ser feitas revisões constitucionais. Este estado de exceção não pode, no entanto, afetar a “aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania”.

O que acontece em caso de não acatar as medidas inscritas na declaração?

Trata-se de um crime de desobediência. Quem cometer este crime pode ser punido com uma pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. A pena pode ser superior — até dois anos anos de prisão ou de multa até 240 dias — no caso de um crime de desobediência qualificada. E já se aplica a quem não cumprir o que for definido no atual estado de alerta.

Do crime de desobediência à propagação da doença. Se sair de casa, posso ir preso?