Hoje já é um não assunto, mas recuando a março, sobretudo às últimas três semanas de março, havia uma linha que dividia as boas e más lideranças no combate à pandemia do novo coronavírus – a celeridade de atuação de cada um dos governos. Ou seja, mais do que ter melhores ou piores medidas (a segunda parte da questão), a separação era feita pela celeridade de atuação perante o problema. A indecisão era o único caminho proibido. Mas esse acabou por ser um dos calcanhares de Aquiles na política do Reino Unido, como explica o The Times este domingo num texto com o título “Os 22 dias de tremor e atraso no coronavírus que custam milhares de vidas britânicas”.
Numa reportagem em que foram ouvidos políticos, académicos, cientistas e conselheiros, a publicação revela uma série de episódios nos bastidores que funcionam como espelho do desespero sentido pelos vários ministros (com Boris Johnson à cabeça) e que mostram também, em paralelo, como a evolução da situação na China e a forma de propagação do vírus num curto lapso de tempo não foi devidamente tida em conta. Depois, vieram os resultados. E uma análise dos dados do Serviço Nacional de Saúde (NHS) mostra o impacto direto de alguns eventos.
A questão dos jogos da Liga dos Campeões realizados numa fronteira temporal onde começavam a surgir os sinais iniciais de preocupação na Europa mas onde existia já uma realidade bem pior daquela que se estimava não é um assunto novo. Giorgio Gori, presidente de Bérgamo, tinha catalogado o Atalanta-Valencia em San Siro como uma “bomba biológica”, “um forte momento de propagação do contágio entre as pessoas” entre as viagens para Milão e a festa que se sucedeu entre cerca de 40 mil pessoas. E também houve o PSG-B. Dortmund que, apesar de ter sido jogado à porta fechada, concentrou cerca de 4 mil adeptos nas imediações do Parque dos Príncipes com alegada permissão das autoridades, havendo também aí uma cadeia de contágios, como noticiou o Le Parisien.
O terceiro encontro nessa “lista negra” dos oitavos da Champions foi o Liverpool-Atl. Madrid, a 11 de março. Um jogo que já teve alguns adeptos de máscara nas bancadas e que juntou 3.000 adeptos vindos da capital espanhola, dois momentos que mereceram especial enfoque na cobertura da partida que viria a eliminar da competição o campeão europeu. De acordo com o The Times, esse momento levou ao registo de “41 mortes adicionais”, que se registaram num período entre 25 a 35 dias depois do jogo. E acrescenta ainda um dado que com a devida distância temporal confirma uma espécie de “verdade invisível” que ninguém conseguia ter a perceção há mais de dois meses: nessa altura existiam já 640 mil casos positivos em Espanha e 100 mil no Reino Unido, segundo os valores agora contabilizados pelo Imperial College de Londres e pela Universidade de Oxford.
“Será interessante perceber no futuro, quando toda a ciência fizer a sua parte, que relação existe entre os vírus que circulam em Liverpool e os vírus que circulam em Espanha”, tinha admitido em conferência de imprensa, a 20 de abril, Angela McLean, consultora científica do governo britânico que considerou a teoria de propagação nesse jogos como uma “hipótese interessante”. Uma opinião que ia ao encontro de muitas outras que já tinham sido veiculadas por especialistas como Matthew Ashton, diretor de saúde pública de Liverpool, em declarações ao The Guardian. “Não foi correto deixar que acontecesse o jogo. Não tomamos más decisões de propósito, talvez ainda não tivéssemos compreendido a seriedade da situação. Nunca o saberemos, mas o jogo com o Atlético pode ter sido um dos eventos e momento de aglomeração que influenciou a propagação do vírus na cidade”, defendeu.
Além do Liverpool-Atl. Madrid, são referidos outros eventos com impacto direto no número de mortes no Reino Unido no estudo feito pelo Edge Health como o festival de Cheltenham, um dos grandes eventos do mundo hípico no país e que contou com a presença de 150 mil espetadores, que terá levado a mais 37 mortes.
Should the Cheltenham Festival have gone ahead? The fixture has become a lightning rod for criticism around perceived government inaction on the coronavirus crisis.
— The Times and The Sunday Times (@thetimes) April 30, 2020