A ministra da Saúde, Marta Temido, afirmou esta quarta-feira em entrevista à RTP que não existe atualmente “descontrolo” na evolução da pandemia do novo coronavírus na região de Lisboa e Vale do Tejo, mas assumiu que “é uma situação de sobressalto, que não nos deixa estar tranquilos”. E reconheceu ainda que há carências nos médicos de saúde pública em Portugal e que “não estávamos preparados”.

Lembrando que ao contrário do que acontece no resto do país, em Lisboa e Vale do Tejo o número de casos diários não tem diminuído nos últimos dois meses — “tem-se mantido num planalto persistente” e as autoridades de saúde e políticas têm tido “dificuldades em quebrar cadeiras de transmissão” —, Marta Temido assumiu ainda que “há questões por responder sobre as circunstâncias que justificam esta situação em Lisboa e Vale do Tejo”.

Em suma, ainda não existem explicações claras, técnicas e consensuais dadas por peritos de saúde sobre o que motiva o desfasamento entre o número ainda alto de contágios diários em Lisboa e Vale do Tejo — nomeadamente em concelhos como Sintra, Amadora, Loures e Odivelas — e os dados significativamente mais residuais contabilizados noutros pontos do país.

Há indícios que sugerem, até pela análise daquilo que é a evolução da pandemia em outros países, que zonas mais densamente povoadas e onde as pessoas têm elevado número de contactos têm maior risco de transmissão, geram situações mais difíceis de quebrar as cadeias de transmissão. Estas zonas [que estão a ser mais afetadas neste momento] são tipicamente zonas desse tipo, densamente povoadas, onde as pessoas circulam muito e onde é difícil intervir pela multiplicidade de contactos”, referiu.

Apesar de tudo, ainda não há “descontrolo”, diz Marta Temido — e o objetivo é que não venha a haver. “Para haver, teríamos de ter, e não estamos a ter, um crescimento exponencial [de casos] e reflexos em termos de sobreutilização do Serviço Nacional de Saúde. Não é isso, felizmente, que está a acontecer”.

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Ainda assim, se o SNS não está já sobrelotado é porque a resposta a pacientes com outras doenças foi reduzida nos concelhos mais afetados de Lisboa e Vale do Tejo. Marta Temido assumiu que a situação atual “cria dificuldade em retomar” a atividade hospitalar “normal e programada” na região e que foi necessário “manter a atividade assistencial de rotina suspensa” em vários hospitais. Tal é “uma preocupação para todos como sociedade e é uma situação de sobressalto, que não nos deixa estar tranquilos“.

A ministra da Saúde reconheceu que há “dois hospitais que têm tido maior pressão”, até por funcionarem em rede e não receberem apenas doentes Covid-19. Trata-se do Amadora-Sintra e do hospital Beatriz Ângelo. “Quando há picos de afluência, há deslocalização de doentes para outros hospitais”, reconheceu Temido, que confirmou que já houve “doentes deslocados para Santarém e para o Médio Tejo, para preservar a capacidade de resposta”.

Temido comparou nº de casos com os de outros países (com 4 a 6 vezes mais habitantes)

A ministra da Saúde revelou ainda, no programa “Grande Entrevista” da RTP, que o RT, que calcula em média quantas pessoas cada infetado contagia, baixou em Portugal na última semana. Os últimos dados, que acabaram de ser apurados pelo Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, apontam para um RT no país de 0,99 (portanto, ligeiramente inferior a 1) na última semana, entre 24 e 28 de junho.

Já questionada sobre a situação estar atualmente pior em Portugal do que em outros países europeus, Marta Temido comparou com outros países: “Se avaliarmos números, a 1 julho Suécia tinha 784 casos novos, a Roménia 388, o Reino Unido 689, França 451, Alemanha 456”. Portugal, lembrou, teve menos, 313.

Quando comparamos [número de casos diários] com Suécia, Espanha, França, não ficamos com situação de perplexidade. Quando olhamos para outros países ficamos com alguma situação de perplexidade porque já conseguiram baixar número de novos casos de forma significativa”, referiu.

A comparação do número absoluto de novos casos em cada país, porém, não permite tirar quaisquer conclusões, dado que o número de habitantes é fator determinante para perceber a prevalência da pandemia em cada território.

Na amostra de países que a ministra da Saúde comparou com Portugal, o Reino Unido e França têm mais de 60 milhões de habitantes — aproximadamente seis vezes o número dos habitantes em Portugal, ou seja, um universo de possíveis infetados aproximadamente seis vezes superior —, enquanto a Alemanha tem mais de 80 milhões de habitantes. Já Espanha tem um pouco mais de quatro vezes mais habitantes do que Portugal.

A UE considera que para um país ser considerado seguro para visitar o número de casos por 100 mil habitantes nos últimos 14 dias deve ser inferior a 16. Em Portugal, esse valor tem rondado quase o triplo (43).

A ministra teme um inverno de descontentamento, com gripe e Covid-19: “Estamos preocupados”

Quanto aos possíveis impactos de um outono-inverno com surtos de gripe a que este ano poderá somar-se uma nova vaga de doentes com Covid-19, Marta Temido respondeu, em entrevista na RTP: “Estamos obviamente preocupados com essa circunstância, que poderá não vir a verificar-se mas que tudo leva a crer que se venha a verificar e que se possa verificar numa altura especialmente sensível, a altura da gripe”.

Eis um cenário muito possível: “Teremos a circular não só o Sars-Cov-2 mas também o vírus da gripe, com alguma semelhança de sintomatologia que levará a uma maior dificuldade na identificação de casos e na separação dos casos. Estamos preocupados. Estamos a trabalhar no reforço da capacidade laboratorial. Precisamos de ampliar significativamente a nossa capacidade de testagem, que tem sido um dos sustentáculos da nossa ação. Queremos ir mais além”.

Marta Temido deu ainda uma notícia: “Comprámos este ano mais 600 mil doses de vacinas [para a gripe] do que os 2 milhões que são habituais. A intenção é administrar mais cedo e evitar o mais possível que tenhamos convivência de infeções que nos irão dificultar o trabalho”.

Há um problema e tem nome: falta de médicos de saúde pública

A ministra assumiu ainda que Portugal tem um problema: “Temos 363 médicos de saúde pública no país, no SNS. Não há mais. É claramente pouco. E a idade média são 59 anos. É uma força de trabalho envelhecida”. Este “é um problema que não é de hoje” e que tem um conjunto de causas: “É uma especialidade que tradicionalmente não era atrativa. Pela inexistência de contacto com o doente era considerada menos aliciante. Também pelas circunstâncias remuneratórias, por não haver determinadas compensações que existem em outras especialidades. Era, das especialidades, uma das últimas a serem escolhidas. E é, como estamos a ver agora, uma das mais importantes”.

Acresce que as equipas de saúde pública em Portugal são ainda “pouco multidisciplinares”, muito assentes em médicos e técnicos de saúde especializados, diz Marta Temido. É preciso complementá-las com “matemáticos, epidemiologistas, antropólogos, sociólogos. Estamos a fazer isso com protocolos com as universidades”.

A região Norte tem também melhores recursos operacionais em saúde pública do que Lisboa e Vale do Tejo. Questionada sobre isso, Marta Temido confirmou: “É um facto. Temos 38% dos médicos de saúde pública no Norte, 28% em Lisboa e Vale do Tejo — em números redondos. A capacidade de resposta é sem dúvida nenhuma melhor no Norte do que no Sul”.

Já sobre a app que poderá auxiliar as autoridades a rastrear contactos de infetados, a ministra lembrou que muito recentemente a Comissão Nacional de Proteção de Dados “veio fazer um conjunto de recomendações que será preciso acautelar, em termos de processo legislativo e de enquadramento da aplicação”.

Estamos em crer que será importante a auxiliar para este trabalho de identificação de contactos”, apontou ainda, lembrando que é preciso porém “garantir que as pessoas a utilizem” voluntariamente e que o sistema de saúde está preparado para responder à informação e encaminhar contactos de infetados. “É algo que nos preocupa, não queremos ficar com a população perdida”. Quando estará em vigor? “Gostaria que fosse muito rapidamente” mas não há previsão de datas.

Medina? “Precisamos de maior eficiência, estamos todos de acordo”

Sobre as críticas do presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, ao trabalho de chefias de saúde, Marta Temido garantiu que “não ficou surpreendida” com as palavras do autarca socialista.

“Ao longo destes quatro meses, o ministério, autoridades de Saúde e Direção Geral da Saúde têm sido objeto de muita atenção, muito escrutínio e muitos reparos. Isso aconteceu no Porto, em Ovar. Se precisamos de maior eficiência? Nisso estamos todos de acordo”, apontou.

Não me parece que possamos dizer que as chefias do nosso país na área da saúde pública, que nos ajudaram a chegar até aqui, são incompetentes”, contrapôs no entanto.

“Compreendo a enorme pressão a que todos estamos sujeitos neste processo e sou a primeira a senti-la. Cada um dos elos tem responsabilidade de referir o que não está bem, temos de continuar a trabalhar e a construir”, vincou ainda.