Quando colocou o passaporte na mala e se encaminhou para o aeroporto, evitando as câmaras de segurança da universidade, a virologista chinesa Li-Weng Yan sabia que, provavelmente, nunca mais na vida iria ver os seus amigos e familiares, incluindo o marido com quem estava casada há seis anos. Isto, claro, se conseguisse mesmo fugir e não fosse intercetada no caminho – caso isso tivesse acontecido, diz, iria ser dada como “desaparecida” e, provavelmente, seria assassinada pelo regime comunista chinês.

Mas Li-Weng Yan conseguiu mesmo embarcar no voo da Cathay Pacific para os EUA, no dia 28 de abril, e está desde essa altura escondida num local secreto nos EUA. Foi a partir daí que deu uma entrevista à Fox News que está a correr mundo – Yan garante que Pequim está a mentir sobre a Covid-19, porque já conhecia a existência e o perigo do novo coronavírus. E a virologista critica, também, a Organização Mundial de Saúde (OMS), acusando-a de ter conhecimento da existência e do perigo do novo coronavírus muito antes de se anunciar oficialmente o surto que ocorreu em Wuhan.

Foi, porém, uma outra entrevista dada pela virologista quando ainda estava na China que esteve na origem de toda esta história. Essa foi uma entrevista dada ainda em janeiro, transmitida em streaming através do Youtube, no canal de um conhecido blogger chamado Lu Deh.

Li-Weng Yan partilhou algumas das suas experiências e suspeitas com o blogger, que terá sido uma das primeiras pessoas a aconselhar a cientista a sair da China e de Hong Kong, caso contrário poderia estar em perigo – não poderia continuar a fazer aquelas afirmações sem que pudesse houver consequências para ela e para a sua família, disseram-lhe.

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Terá sido pouco depois que tomou a decisão de ir embora – e partilhou essa intenção com o marido, que era outro dos cientistas que trabalhavam no mesmo laboratório. O marido, que segundo a Fox News tinha inicialmente apoiado a virologista na sua pesquisa, mudou diametralmente de posição quando descobriu aquilo que a cientista tinha partilhado com o blogger: “Ficou irritadísismo, culpou-me, tentou deitar-me abaixo, disse que ia fazer com que nos matassem a todos“, recorda Li-Weng Yan.

Foi aí que a cientista decidiu partir sozinha, sem o marido, comprando no dia 27 de abril um bilhete para um voo já no dia seguinte, para Los Angeles.

“Por favor, protejam-me, ou o governo chinês vai matar-me”

Durou 13 horas o voo entre Hong Kong e Los Angeles. Quando aterrou, Li-Meng Yan contou à Fox News que sentiu um medo sufocante – e quando os funcionários do aeroporto a interpelaram, decidiu contar tudo: “Tive de lhes dizer a verdade. Estou a fazer aquilo que é correto. Disse-lhes ‘não me mandem de volta para a China, eu vim para cá para contar toda a verdade sobre a Covid-19. Por favor, protejam-me, caso contrário o governo chinês vai matar-me“.

Pouco tempo depois, garante a cientista, estava a ser questionada por um inspetor do FBI. Fizeram-lhe perguntas ao longo de várias horas e confiscaram-lhe o telemóvel – algo que o FBI não confirma nem desmente, questionado pela Fox News sobre a veracidade da história contada por Li-Meng Yan.

Cientista chinesa acusa China e OMS de ocultarem perigosidade do vírus

Nos primeiros dias nos EUA, conseguiu contactar com amigos em Hong Kong que a puseram a par do que estava a acontecer: agentes do governo chinês, alegadamente, acorreram à terra de Yan, Qingdao, revistaram o pequeno apartamento onde vivia, deixando-o completamente “esventrado”, e questionaram os pais da cientista, bem como amigos, para tentar saber para onde ela tinha fugido.

A cientista conseguiu, a dada altura, falar com a mãe, que lhe implorou que voltasse para casa e que parasse com tudo aquilo. Não foi isso que ela decidiu fazer – e a entrevista à Fox News é prova disso mesmo.

Terá Li-Meng Yan sido apoiada por movimento de whistleblowers?

A história da fuga da cientista contada pela Fox News, como enquadramento para a entrevista, aponta para um cenário em que Li-Meng Yan atuou basicamente sozinha, embora tenha algumas ligações que fizeram com que aparecesse no Lude Show, o blogger de Hong Kong. Mas um site ligado ao bilionário chinês Miles Guo, um dos mais ferozes críticos do regime chinês, a viver em Nova Iorque, aponta para uma história ligeiramente diferente.

No site GNews.org, um portal onde também participa o antigo conselheiro de Trump Steve Bannon, lê-se que Li-Meng Yan é uma das denunciantes que fugiram da China com a ajuda do chamado Whistleblower Movement.

Depois da aparição de Li-Meng Yan no programa do blogger, onde fez várias das críticas que repetiu agora na entrevista à Fox News, “os participantes do Whistleblower Movement tais como Miles Guo, o sr. Lude e outras corajosas almas anónimas na China ajudaram a sra. Yan a fugir de Hong Kong no final de abril”, lê-se nesse portal. E diz-se mais: “a sra. Yan foi salva depois de ter sido levada a aceitar ter um encontro [com alguém] perto do mar”.

Os dias anteriores à entrevista dada à Fox News terão sido fulgurantes, segundo a informação transmitida por este portal. “O regime chinês ameaçou encerrar os parques de diversões da Disney [que tem ligações empresariais à Fox] para tentar evitar que a Fox News colocasse a entrevista no ar”, diz o GNews, acrescentando que “o The Wall Street Journal publicou um artigo acerca das ligações entre Miles Guo e Steve Bannon, para tentar desacreditá-los e, por essa via, desacreditar a sra. Yan”.

O artigo publicado no The Wall Street Journal na altura em que a Fox News publica a entrevista.

Esse artigo, publicado no The Wall Street Journal no dia 8 de julho, aponta para uma alegada investigação do FBI a Miles Guo e aos financiamentos do enigmático bilionário chinês a iniciativas em que participa com Steve Bannon, que se auto-intitula “inimigo público número 1 do regime chinês”. Miles Guo fugiu da China em 2014, onde é acusado de variadíssimas atividades ilícitas tais como corrupção e branqueamento de capitais – e até estupro sexual (tudo acusações que o bilionário rejeita, tendo pedido asilo nos EUA).

Segundo o site GNews, a entrevista da cientista era para ter ido para o ar, na Fox News, na quinta-feira, “mas a Casa Branca recebeu várias chamadas telefónicas incluindo quatro provenientes do gabinete de Xi Jinping [o presidente chinês] avisando que os EUA iriam ‘sofrer consequências’ caso não impedissem a transmissão da entrevista”.

A entrevista acabou por ir para o ar mais tarde, causando uma vaga de reações à escala global. E uma das reações foi a da Universidade de Hong Kong (HKU), à qual Li-Meng Yan estava ligada. Em comunicado, a universidade afirmou que “a Doutora Li-Meng Yan integrou um programa de pós-doutoramento na HKU. Neste momento, já não está na universidade”.

Embora a HKU respeite a liberdade de expressão, as opiniões passadas ou atuais da Doutora não representam as opiniões da universidade”, assinala a HKU, acrescentando que “o conteúdo da entrevista não corresponde com os factos-chave, na nossa leitura: a Doutora Yan nunca fez qualquer pesquisa sobre a transmissão humano-humano do novo coronavírus entre dezembro de 2019 e janeiro de 2020, como alega na entrevista”.

A HKU acrescenta, ainda, que “aquilo que ela enfatizou na entrevista não tem qualquer base científica e assemelha-se mais a rumores. E a HKU não atua de acordo com rumores e não irá fazer qualquer comentário adicional sobre este tema”.

“Nunca ouvimos falar desta pessoa”, diz embaixada chinesa nos EUA

Também a embaixada chinesa nos EUA disse à Fox News que não fazem ideia de quem Li-Meng Yan é: “Nunca ouvimos falar desta pessoa. O governo chinês reagiu rapidamente e de forma eficaz à Covid-19 desde o início do surto”.

Não é essa a leitura que é feita pela cientista cujo perfil aparece em vários sites ligados à ciência, tais como este. A especialista em virologia e imunologia diz que foi uma das primeiras cientistas encarregadas de estudar o coronavírus, embora estivesse em Hong Kong. Terá, segundo a própria, sido incumbida, pelo seu supervisor (e alegado consultor da OMS) Leo Poon, de fazer uma investigação secreta sobre o novo coronavírus semelhante à SARS, que tinha surgido na China no final de 2019.

O governo da China negou-se a permitir que os peritos estrangeiros, incluindo os de Hong Kong, investigassem na China (…) Recorri então aos meus amigos para recolher mais informação”, explicou.

Foi então que um amigo, cientista no Centro para o Controlo e a Prevenção de Doenças da China, lhe contou em 31 de dezembro de 2019 que a transmissão pessoa a pessoa se apresentava como característica do novo coronavírus, o que tanto a China como a OMS viriam a reconhecer muito tempo depois. Uns dias depois, em 9 de janeiro de 2020, a OMS emitiu uma declaração: “Segundo as autoridades chinesas, o vírus em questão pode causar doenças graves em alguns pacientes e não se transmite facilmente entre as pessoas… Há informação limitada para determinar o risco geral deste grupo”.

Os problemas de Yan começaram quando advertiu o governo da letalidade e perigosidade do novo coronavírus, muito antes de a China reconhecer o problema, segundo disse à Fox News. “Foi como o ocultaram”, assegurou a cientista, que garante agora que, embora diga ter a cabeça a prémio, vai continuar a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para contar a sua história.

O que a China (não) fez para evitar a pandemia. O resto do mundo pode pedir contas ao regime?