Chamava-lhe a Bruxa, o mesmo nome da sua mãe. Primeiro a Jovem Bruxa e depois simplesmente a Bruxa, depois da morte súbita da feiticeira nascida antes dela. Se tinha outro nome, ninguém sabia. O seu rosto, sempre escondido sob um grosso véu negro mesmo nos dias mais quentes, era, tal como o seu verdadeiro nome, um mistério para quem vivia em La Matosa. Diziam-se muitas coisas sobre ela — que era rica, que tinha um tesouro escondido sob o chão da sua casa, que sabia feitiços poderosos e que tinha feito um pacto com o diabo. Histórias e mais histórias, que disfarçavam a verdade que apenas os jovens que participavam nas festas que organizava clandestinamente na sua cave sabiam e queriam esquecer, por conta da vergonha e, sobretudo, do preconceito — a figura sinistra que morava ao cimo da aldeia a que chamavam a Bruxa era um transexual que gostava de karaoke e de ajudar as mulheres que lhe batiam à porta em busca de uma receita milagrosa para os seus males.
É em torno desta figura misteriosa e enigmática, que alimenta a imaginação do povo de La Matosa, e do seu assassínio que o último romance de Fernanda Melchor se desenrola. Hurricane Season é o primeiro livro da autora, considerada uma das vozes mais fortes da nova literatura mexicana, a ser traduzido para a língua inglesa. Originalmente publicado em 2017, no México, chegou em fevereiro deste ano ao Reino Unido, numa edição da Fitzcarraldo Editions, e um mês depois aos Estados Unidos da América, pela New Directions.
Em ambos os países, foi recebido maioritariamente com grandes elogios — o The Guardian descreveu-o como “um trabalho intransigente e selvagem: difícil de escapar, construído para chocar”; a revista Literary Review chamou-lhe uma crónica “implacável de um processo de destruição”; o The New York Times “uma narrativa que não só desaprova uma atrocidade, como também incorpora a beleza e a vitalidade que perverte”; e o Financial Times “uma paisagem boschiana do inferno descrita com detalhe magnífico, mas angustiante”.
[O romance está nomeado para o International Booker Prize:]
Tonight at 5pm BST we celebrate Hurricane Season, by @fffmelchor translated by @hughes_sophie. Tune in on Facebook or YouTube. #InternationalBooker2020 #TranslatedFiction #FinestFiction #HurricaneSeason #FernandaMelchor #SophieHughes @fitzcarraldoeds @guardian pic.twitter.com/Yb024G3HIj
— The Booker Prizes (@TheBookerPrizes) July 9, 2020
O romance faz parte da lista de nomeados para o International Booker Prize deste ano, cujo vencedor será conhecido no final de agosto. O International Booker, que nunca premiou um escritor de língua castelhana, tem vindo a dar maior atenção à literatura central, sul americana e também espanhola. Pelo menos desde 2017 que as listas de finalistas têm integrado sempre autores que escrevem em castelhano. A presença mais constante tem sido a da argentina Samanta Schweblin, nomeada para a longlist deste ano com Little Eyes, mas excluída da shortlist. Além de Melchor, esta inclui a também argentina Gabriela Cabezón Cámara, que participa com The Adventures of China Iron, uma versão subversiva e moderna do épico El Gaucho Martín Fierro, de José Hernández. As mulheres estão, aliás, em maioria nesta edição do International Booker. Dos seis romances finalistas, apenas um foi escrito por um homem — Tyll, do alemão Daniel Kehlmann.
A sangue frio, mas no México
Hurricane Season foi originalmente concebido como uma obra de não-ficção. Melchor queria escrever um livro na onda da A Sangue Frio, de Truman Capote, baseando-se num crime que tinha ocorrido numa vila não muito longe da sua terra natal, Veracruz, onde nasceu há 38 anos: numa pequena localidade, uma mulher foi encontrada morta num canal, assassinada por um homem que a acusou de usar magia para fazer com que ele se apaixonasse por ela. É com esta mesma imagem que o livro abre — com a descoberta do corpo em decomposição da Bruxa, que boiava no canal entre os juncos e os sacos de plástico, por um grupo de crianças assustadas. O que lhe aconteceu só será desvendado mais à frente na história, relatada como de um só fôlego, através de uma torrente de linguagem que é apenas quebrada pelo fim e pelo início de cada novo capítulo.
Numa região onde muita gente acredita no sobrenatural, a justificação dada pelo assassino da mulher de Veracruz foi mais do que suficiente para a polícia. Melchor, que ficou a saber do crime por um jornal local, “ficou surpreendida” pelo tom da notícia. “O jornalista contou a história de uma maneira que fazia parecer normal que um crime fosse motivado por bruxaria. (…) Fiquei chocada e quis contar a história por detrás do crime”, admitiu em entrevista à Deutsche Welle, por altura da atribuição a Hurricane Season de um prémio de literatura internacional em Berlim, em junho do ano passado. Foi o segundo galardão recebido pela escritora na Alemanha, onde a sua obra está editada.
A escritora queria, tal como Capote, visitar o local do homicídio e falar com as pessoas, mas os traficantes de droga que vivem escondidos na região tornavam a viagem perigosa. “Uma estranha a fazer perguntas desconfortáveis ia ser logo notada. Podia tê-lo feito, mas não queria colocar-me numa situação perigosa”, contou na mesma entrevista. “Tentei consolar-me e decidi fazer alguma coisa igualmente interessante através da ficção, inventando a vida privada das pessoas que participaram no crime” cometido numa pequena localidade, fechada e “esquecida pelo Estado e pela sociedade”.
[O ator britânico Toby Jones lê um excerto de Hurricane Season:]
Este “pesadelo realista”, como lhe chamou um jornalista mexicano, surge envolto numa falsa magia, que está intimamente ligada à personagem que desencadeia a ação, a figura misteriosa que se dedica à prática de medicina tradicional, mas também às principais influências literárias de Melchor, que incluem “naturalmente” Gabriel García Márquez, mas também autores ligados ao universo do terror e do sobrenatural, como Stephen King. “Tenho dificuldades em acreditar no sobrenatural, mas tenho consciência de que as pessoas à minha volta, e especialmente em Veracruz e no México, acreditam mesmo nisso”, admitiu, explicando que “os rituais no livro são mesmo o que as bruxas em Veracruz fazem. As pessoas acreditam mesmo nessas formas de cura e neste tipo de espiritualidade”.
Apesar da aura sobrenatural, Hurricane Season não é um romance sobre feiticeiras de varinha e condão, mas sobre personagens quebradas, que sofrem as consequências de serem quem são (mulheres, homossexuais, transexuais). Há a história de Norma, uma rapariga de 13 anos que fugiu de casa porque engravidou do padrasto; de Luismi, o ex-amante da Bruxa, um jovem alucinado viciado em drogas com um dom para cantar que vive com a mãe, Chabela, uma prostituta, que desaparece vítima de um sádico membro de um cartel local; e de Brando, um homossexual reprimido que cede aos instintos mais macabros. Indivíduos que vivem e convivem no ambiente claustrofóbico de uma pequena localidade mexicana, fechada ao mundo, à justiça e a outras mentalidades, onde a violência é oferecida gratuitamente pelas autoridades, pelos membros dos cartéis e pela própria família, e onde o preconceito e a superstição estão presentes a cada minuto de cada dia.
As histórias pessoais e familiares das personagens, muitas delas menores de idade, vão sendo reveladas gradualmente, num vai e vem temporal que se vai tornando psicologicamente mais denso e perturbador à medida que o romance avança e as razões para as ações de Luismi ou Brando são explicadas. A linguagem extremamente poética de Melchor suaviza, mas sem branquear, a extrema violência que domina a paisagem — com as suas descrições cruas, que andam sempre demasiado perto da realidade brutal, este não é um livro para os fracos de coração.
É através do distanciamento com que Melchor é capaz de descrever as situações mais incómodas que faz passar subtilmente denúncias e alertas que lhe importam, mostrando a realidade através da ficção. Isso não significa que não exista sensibilidade e humanidade na sua escrita — Hurricane Season é um retrato do que existe de pior no ser humano, mas também da capacidade que este tem de suportar e sobreviver às piores atrocidades.
O vencedor do International Booker Prize será revelado a 26 de agosto, pelas 17h, num evento online transmitido em direto na página de Facebook dos Booker. O anúncio estava esteve agendado para maio, mas foi adiado devido à pandemia do novo coronavírus. Se Fernanda Melchor vencer, será a primeiro autor de língua castelhana a receber o prémio de ficção traduzida.