A primeira fase dos ensaios clínicos com a vacina russa Sputnik V foram feitos em julho. Poucos dias depois, a vacina era autorizada no país de origem, mesmo sem ter completado os ensaios clínicos ou ter quaisquer resultados publicados. Os primeiros dados foram publicados na conceituada revista científica The Lancet, no dia 4 de setembro, mas agora um grupo de cientistas questiona os resultados apresentados por apresentarem duplicação de valores e não descriminarem dos dados que foram usados nos gráficos.

“Devido à falta de dados numéricos originais, não podem ser tiradas conclusões definitivas em relação à confiança nos dados apresentados, especialmente no que diz respeito à aparente duplicação detetada”, escreve Enrico Bucci, professor de Biologia na Universidade Temple (Estados Unidos) e autor de uma nota de preocupação em relação ao artigo da Lancet.

Ao jornal The Moscow Times, Enrico Bucci esclareceu que a nota de preocupação, que esta quinta-feira já tinha sido assinada por 37 cientistas de todos os continentes, “é um pedido de clarificação”, tanto aos autores do artigo como à revista. “Não é uma alegação de nada.”

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Facto é que o biólogo e restantes signatários da nota de preocupação dizem ter encontrado dados que lhes levantaram dúvidas. “Há padrões muito estranhos nos dados. Por estranhos quero dizer que há valores duplicados para diferentes [grupos de] doentes… o que não pode acontecer”, disse Enrico Bucci ao The Moscow Times. Os grupos de voluntários que apresentaram valores idênticos tinham sido sujeitos a duas formulações, com três braços de investigação (conforme registado aqui e aqui), num total de 76 voluntários, o que torna improvável que tenham tido os mesmos resultados. Até porque, olhando para os ensaios de outras vacinas, os signatários desta carta aberta não encontraram o mesmo padrão de repetição.

“Entre os [diferentes] grupos de nove pessoas, a testarem coisas completamente diferentes, vemos exatamente os mesmos números. É altamente improvável observar um número tão grande de duplicações”, disse Enrico Bucci ao jornal de The Moscow Times.

As críticas não recaem apenas sobre os cientistas russos responsáveis pelo desenvolvimento da vacina, mas sobre a própria revista científica que aceitou publicar o artigo sem incluir as tabelas de dados em bruto como tem sido feito por outras revistas em relação à investigação em torno do novo coronavírus. Só com acesso aos dados originais, os investigadores independentes podem voltar a analisar os dados e verificar se as conclusões se mantém.

Enrico Bucci acrescentou que sem acesso aos dados não se pode dizer que se tratou de fraude, mas também não conseguem dizer se foi apenas um erro ou se há uma explicação para a situação. Verdade é que, no que diz respeito à pandemia, não é a primeira vez que a Lancet, tida como uma revista prestigiada, se vê envolvida em críticas sobre um artigo publicado.

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Em junho, a revista teve de retratar um artigo porque não foi possível garantir que dados apresentados eram fiáveis — dados esses que não foram devidamente escrutinados pelos revisores. O artigo inicialmente publicado por um grupo de autores cuja área de especialidade não é imunologia, virologia ou ensaios clínicos, concluiu que uso de hidroxicloroquina podia aumentar o risco de morte. A Organização Mundial de Saúde suspendeu temporariamente os ensaios clínicos com o medicamento com base no artigo que mais tarde se verificou não poder garantir as conclusões apresentadas.