O conteúdo é minucioso — quadros, tabelas, números e contas — e o tom é dramático: o dinheiro que vem de Bruxelas anexado ao Plano de Recuperação e Resiliência é o dobro do que tem sido aplicado em Portugal nos melhores anos de execução dos fundos comunitários e nem sequer vem na forma de “um cheque”, vem na forma de um “contrato com a União Europeia”, com metas e calendários rígidos, o que é em si mesmo uma “gigantesca responsabilidade”. António Costa foi às jornadas parlamentares do PS, que decorrem esta terça-feira no CCB, em Lisboa, dar uma espécie de aula sobre os pilares em que assenta o Plano de Recuperação e Resiliência que está a ser desenhado pelo Governo, ouvindo os partidos e tendo por base a visão estratégica apresentada pelo empresário António Costa Silva, e reduzir a “absurdas” as críticas da oposição sobre o suposto maior investimento no Estado do que nas empresas. Uma coisa depende da outra, e o Estado tem de ser “robusto” para dar instrumentos às empresas.

Depois de apresentar os pilares — Resiliência (combater as vulnerabilidades sociais, aumentar o potencial produtivo e reforçar da competitividade e coesão territorial); Transição climática (mobilidade sustentável, descarbonização e eficiência energética); e Transição digital (capacitar as escolas, as empresas e a administração pública de meios digitais) –, o primeiro-ministro, ali na qualidade de secretário-geral do PS, quis pôr pressão nos ombros de todos os presentes na sala. E ausentes. É que o plano em questão não é apenas um plano de resposta à crise, é sobretudo um plano para redesenhar o país que vai sair da pandemia e, por isso, tem de ser um plano que satisfaça todos — da esquerda à direita.

Foi nesse sentido que António Costa dramatizou o apelo aos consensos. Para que não aconteça com o Plano de Recuperação do país o mesmo que aconteceu com o aeroporto de Lisboa, em que se está há 50 anos a estudar uma solução sem se chegar a solução nenhuma. “Temos de fazer um debate público alargado e mobilizador da sociedade em torno deste programa que, por ser excecional, tem de ser um programa onde haja absoluta confiança naquilo que vamos fazer”, disse à plateia de deputados socialistas, onde estava também o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro, um dos principais negociadores do Governo com os partidos no Parlamento.

“A pior coisa que nos podia acontecer era, durante os próximos dez anos, passarmos o tempo a hesitar, a ter dúvidas, a reabrir decisões que sucessivos governos vão tomando. Se quisermos fazer nos próximos 10 anos o que fizemos nos últimos 50 sobre o aeroporto de Lisboa então chegaremos ao fim com muitos estudos mas não teremos feito nada de concreto. Nada”, disse, sublinhando que “não podemos perder tempo” e lembrando que o Plano de Bruxelas tem de assentar numa nova visão estratégica do país, que esteja acima dos partidos. Até porque na próxima década cabem três governos — três anos do atual governo, quatro anos do próximo, e mais três anos do outro que virá a seguir — e dez orçamentos do Estado.

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“Todos contam”. E, ao contrário do que dizem alguns, o Estado tem de ser “robusto”

Perante os deputados socialistas, Costa explicou ainda que o sistema de gestão destes fundos que vêm de Bruxelas nada tem a ver com a gestão dos fundos comunitários ditos normais. Desde já porque a quantia é bastante superior. Se, no melhor ano de execução de fundos comunitários, Portugal consegue executar 3 a 3,3 mil milhões de euros por ano, o que Portugal vai agora ter em mãos para executar é nada menos do que “o dobro”: 6,4 mil milhões de euros em média anual ao longo dos próximos dez anos.

E depois, porque, ao contrário dos fundos comunitários, esta verba não funciona como “um cheque”, mas sim como “um contrato que fazemos com a UE”. “Cada um destes instrumentos tem de estar inserido numa reforma, que tem de ter metas, calendário e objetivos definidos, sendo que a libertação das verbas só é feita à medida que essas metas vão sendo cumpridas”, disse. Ou seja, não se faz uma obra, como as ligações transfronteiriças que estão previstas, só por se fazer. Cada obra tem de estar inserida num objetivo estratégico mais largo.

Tudo isto, diz, é uma “enorme oportunidade”, sim, mas acarreta sobretudo uma “gigantesca responsabilidade”. Não só para com a União Europeia, mas sobretudo com o país e com as novas gerações que, no final do prazo da execução do plano (são três anos para assumir compromissos e três anos para os executar), vão querer saber o que é que foi feito com todo o dinheiro que veio de Bruxelas (não só no quadro financeiro plurianual como também no quadro extraordinário de resposta à crise).

“O nosso objetivo tem de ser o de chegarmos daqui a 6 anos à Europa, e às novas gerações, e podermos dizer que o que fizemos foi isto, nós cumprimos e hoje o país é um país diferente do que o que tínhamos em 2020 quando desenhamos este programa. Não nos limitámos a responder a crise, nós vencemos a crise e temos hoje um país diferente do ponto de vista estrutural”, disse. Esse é o objetivo, e, para o atingir, Costa diz que todos contam. Dos partidos aos parceiros sociais, passando pelas autarquias, pelas regiões autónomas, pelas empresas e pelas IPSS. “Todos são precisos para executar o programa” ou “todos contam”, como se lê no slogan das jornadas desta terça-feira.

E para quem, como Rui Rio, diz que o programa põe demasiado peso no Estado (e na administração pública), não dando tanto às empresas e ao tecido produtivo, Costa tem a resposta pronta: “A pandemia mostrou que a presença do Estado é indispensável para dar resposta nos momentos mais críticos da sociedade. E não se caia nesse debate absurdo sobre se este Plano de Recuperação e Resiliência deve investir no Estado ou nas empresas. Este plano tem de investir nas pessoas e nas empresas. E para servir melhor as pessoas e as empresas precisamos de um Estado mais robusto e eficiente“, disse. Ou seja, o Estado tem de ser forte para dar instrumentos fortes às pessoas e às empresas.

Mais: “Este investimento gera externalidades positivas para o conjunto da sociedade, seja para os cidadãos ou para as empresas. Não estamos perante um investimento autofágico na alimentação da administração pública”. E se o país “quer uma administração pública do século XXI, se quer uma administração pública mais qualificada e com recursos humanos mais motivados, tem de ter uma administração pública digital”. Estava dada a aula de António Costa.