Março de 2019. O alegado pirata informático Rui Pinto estava há três meses detido em Budapeste, na Hungria, e o inspetor da PJ, José Amador, sai de Lisboa para cumprir o mandado de extradição em seu nome. No dia seguinte regressa num avião cheio de jornalistas, com uma bagagem repleta de provas e Pinto ao seu lado. “Foi uma coisa inédita”, recordou esta terça-feira em tribunal. Só quando chegou às instalações da Polícia Judiciária e começou a abrir o saco hermético onde estariam 26 sacos com provas no interior, percebeu que faltavam dois. Mais. Dos sacos que tinham vindo para Portugal, os selos que tinham sido colocados nos discos com a assinatura do arguido tinham sido violados. Alguém tinha mexido naquele material.

Segundo o seu depoimento, nesta quinta sessão de julgamento que decorre sob apertadas medidas de segurança no Campus de Justiça, em Lisboa, a forma como a polícia de proximidade (como a PSP em Portugal) apreendeu o material a Rui Pinto, no apartamento onde vivia, foi toda monitorizada por ele. Antes da detenção, falou com um oficial de ligação e explicou como tudo teria que ser feito. Soube depois que o material foi levado para um cofre na esquadra, mas que afinal saiu de lá antes da sua chegada aquele país.

“A minha estupefação misturada com surpresa e pânico. Faltam aqui dois sacos, isto não está bem!”, disse perante o coletivo de juízes.

No dois sacos que faltavam, num estavam documentos, noutro apenas cabos. De facto, ainda na Hungria, foi dado ao inspetor um saco hermético onde o material estava acondicionado para ser protegido durante a viagem e nada se perder. “O pacote de evidências não era propriamente um saco de asas que se podia abrir”, justificou. Até o podia ter feito, desde que o tivesse registado, mas as próprias “condições da viagem” também não o permitiam, acrescentou. Quando o abriu, porém, já em Portugal, deparou com uma “amálgama de sacos” onde faltavam os tais dois.

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José Amador telefonou de imediato ao oficial de ligação na Hungria a dar-lhe conta do sucedido, percebendo que ele não sabia o que se estava a passar. Só um dia depois foi informado que outra polícia húngara, equivalente à PJ, tinha levado todas as provas informáticas recolhidas na casa de Rui Pinto para copiá-las. “Nas primeiras informações que me dão nem sequer conseguem explicar o contexto”, diz. Só mais tarde percebeu que foi na sequência de um pedido das autoridades francesas no âmbito de um processo em que Rui Pinto será testemunha.

O coletivo de juízes, presidido por Margarida Alves, quis saber essencialmente se era normal acontecer algo assim e se as provas estariam corrompidas, como alega aliás a defesa de Rui Pinto — que pede que sejam sujeitas a uma perícia porque poderão ser nulas. Amador, baseado no relatório entretanto feito pelas autoridades húngaras sobre o sucedido, afirmou que se fosse a PJ teria feito exatamente o mesmo.

“Na esmagadora maioria não faço muito diferente”, disse, ressalvando no entanto que faltaram ao relatório húngaro as imagens de como manipularam as provas.

Provas foram manipuladas? Como saber?

Os juízes insistiram também na questão da manipulação das provas e o inspetor explicou que a “esmagadora maioria” do material estava encriptada, logo era possível aferir que não. Dos 12 discos rígidos apreendidos, explicou, nove estavam encriptados. Quanto às restantes provas, acredita no relatório das suas congéneres. À tarde o coletivo de juízes voltou à carga: sim, a PJ concluiu que o material copiado pelas autoridades húngaras é exatamente o mesmo que tem nas mãos e que não foi adulterado, mas como pode garantir que tudo o que foi apreendido na casa do alegado hacker foi entregue? O inspetor às tantas acaba por dizer que, no fundo, “tudo é manipulável”. “Não sei onde é que a gente para nesta escalada de suspeição”, acabou por dizer ao fim de várias horas de  inquirição.

Ainda de manhã, por outro lado, o coletivo também quis saber se Rui Pinto teria tido conhecimento dessa recolha de provas pelas autoridades húngaras. Amador disse que sim, que foi informado disso. Rui Pinto, no entanto, mexeu-se na cadeira, corado e abanou a cabeça como quem diz que não. Um pormenor que a juíza considerou importante apurar, por poder deitar por terra a tese da defesa da nulidade das provas.

Polícia francesa pediu provas aos húngaros, mas agora pede as password à PJ

O inspetor da PJ disse mesmo que suspeitar da manipulação das provas pode ser “criar um centro de complicações”, mas que “há que ter bom senso”. Segundo ele há suspeitas levantadas nalgumas informações do relatório húngaro que poderão não passar de um lapso de escrita. E esta questão não se pode confundir com a questão da cópia das provas para dar a um país terceiro sem informar sequer a polícia titular do processo. Embora esta seja uma questão que “transcende a intervenção e a esfera da PJ”, disse. “As autoridades portuguesas não tinham a capacidade de se opor”, disse, uma vez que a legislação das autoridades húngaras o permite.

Entretanto as autoridades francesas, que pediram às autoridades húngaras as provas do processo que corria em Portugal, pediram à PJ as password dos discos para poderem desencriptar as informações que têm em mãos, segundo disse a presidente do coletivo.

O pedido da PJ ao advogado da Doyen para encontrar Rui Pinto e as cotoveladas entre arguidos. O 4.º dia do Football Leaks

Rui Pinto dominava sistema informático da PGR e terá visto os e-mails de Morgado, Joana Marques Vidal e muitos outros procuradores

Não é possível estabelecer uma ordem de grandeza para explicar o que são 23 terabytes de informação. Há sites na internet que indicam 1 giga são 100 mil folhas. “É multiplicar esse número por mil e depois por 23”, exemplificou o inspetor em tribunal. Foi este o material apreendido a Rui Pinto e que teve que ser verificado pelas autoridades (na altura não havia ainda Luanda Leaks, garantiu). Assim, a PJ optou por pesquisar uma amostra de nomes, a maior parte relacionados com o processo para encontrar o que precisava.

Pelo caminho encontrou centenas de caixas de correio eletrónico inteiras, algumas de magistrados (como Amadeu Guerra, Maria José Morgado ou Joana Marques Vidal), de jornalistas e até de cidadãos que desconhecem que os seus nomes, e-mail e password de acesso às redes sociais estão na lista que foi analisada esta tarde em tribunal. Há pelo menos 150 perfis de correios eletrónicos de terceiros nestes documentos, de entidades nacionais e internacionais. E documentos de vários processos que não chegaram a ser colocados online, como o caso de Tancos. Tudo em dois discos fundamentais que a PJ considerou fundamentais: um denominado de RP3 e outro de RP9.

“Eram uma máquina de ataque que o arguido usava”, disse.

Num dos discos apreendidos a PJ encontrou mesmo uma verdadeira máquina virtual, com um motor de busca, com programas, que terá sido criada para gerir o manancial de informação. Por outro lado, num documento chamado W, que estava num dos aparelhos aprendidos, foram encontrados endereços usados em campanhas de phishing (para burlas informáticas), documentos relacionados com o processo de Tancos e “informações de cariz privado e sigiloso”. Rui Pinto reuniria informações que muitas vezes os funcionários trocam por e-mail com os responsáveis de informática dos locais onde trabalham, para conseguir depois romper os sistemas. E a verdade é que foram encontradas muitas imagens de ambiente de trabalho de entidades em estruturas que só os mais altos responsáveis têm acesso, dando como exemplo o próprio sistema informático da Procuradoria Geral da República.

Rui Pinto é acusado de 90 crimes por ter acedido aos sistemas informáticos e caixas de emails de pessoas ligadas ao Sporting, à Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Federação Portuguesa de Futebol, à Ordem dos Advogados e à PGR. Entre os visados estão Jorge Jesus, Bruno de Carvalho, o então diretor do DCIAP Amadeu Guerra ou o advogado José Miguel Júdice. São, assim 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen.

Aníbal Pinto, o seu advogado à data dos alegados crimes, responde pelo crime de tentativa de extorsão. Isto porque, segundo a investigação, Rui Pinto terá exigido à Doyen um pagamento entre 500 mil e um milhão de euros para que não publicasse documentos relacionados com a sociedade que celebra contratos com clubes de futebol a nível mundial. Aníbal Pinto, então advogado do hacker, terá servido de seu intermediário. E é por isso que se sentam os dois, lado a lado, em frente ao coletivo de juízes.

Arguidos, crimes, vítimas, datas, segurança. Guia rápido para acompanhar o julgamento de Rui Pinto